XII DOMINGO COMUM - A

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1ª leitura (Jr 20,10-13):  Eu ouvia insinuações de muita gente: «Anda por aí o terror! Vamos, denunciemo-lo!». Até os que eram meus amigos esperam agora a minha queda: «Talvez se deixe enganar! Então conseguiremos vencê-lo e assim teremos a nossa desforra!». Mas tu, Senhor, estás comigo como poderoso guerreiro. Por isso, os que me perseguem hão-de falhar e serão cobertos de confusão, porque não hão-de prevalecer. A sua ignomínia nunca se apagará da memória. Tu, Senhor do universo, que pões à prova o justo, sondas as entranhas dos corações. Possa eu contemplar a tua vingança contra eles, pois a ti confiei a minha causa.

* O Senhor livra a vida do pobre. 

   O livro de Jeremias contém muitos dados autobiográficos do protagonista. Jeremias viveu num dos períodos mais conturbados do povo de Israel, que coincidiram com o fim do Reino de Judá (ou Reino do Sul) e com a conquista e posterior destruição da capital, Jerusalém, por volta de 587 ou 586, sob o poder de Babilónia. Ele viu-se confrontado, por um lado, pela urgência de responder à missão de profeta que lhe tinha sido confiada (que, de resto, não previa grande futuro para a sua pátria); por outro lado, a sua tarefa era ainda mais complicada pelo facto estranho de alguns dos seus conterrâneos o acusarem inclusivamente de estar por detrás da derrocada nacional, Mas o que ele se limitava a constatar era que as coisas se estavam a encaminhar para o descalabro total. Há que acrescentar que Jeremias, pese embora o seu carácter pessimista, quando a necessidade o exige, ultrapassa-se a si mesmo e acaba por descobrir sempre que Deus está com ele. No seu caso concreto, mais se acentua que a audácia e a valentia provêm sobretudo de Deus. É precisamente isso que quer dizer o tipo de linguagem utilizado pelo profeta. Que ele expresse o desejo de contemplar momentos de vingança por parte de Deus contra os seus inimigos, pode acontecer. Mas é uma «fraqueza» compreensível humanamente falando (tal a maneira como ele era perseguido). Simplesmente, o desejo de vingança e de vitoria sobre os seus perseguidores não é desculpável e aceitável em termos de mensagem. Como lição final para todos nós, o que há a reter é que, não obstante certos momentos de fraqueza, é sempre possível levar por diante os próprios deveres e compromissos, nunca deixando de confiar na força e na proteção do Senhor.

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2ª leitura (Rm 5,12-15):  O pecado entrou no mundo por um só homem e, pelo pecado, entrou a morte. Como resultado, a morte atingiu todos os homens, uma vez que todos pecaram. É um facto que, antes da Lei, já existia o pecado no mundo. Só que o pecado não é tido em conta quando não há Lei. Apesar disso, desde Adão até Moisés, reinou a morte, mesmo sobre os que não tinham pecado por uma transgressão idêntica à de Adão, que é figura daquele que havia de vir. Mas não se passa com a graça o mesmo que se passa com a falta. É verdade que todos morreram por causa do pecado dum só homem, mas a graça de Deus é muito maior; o dom oferecido por meio de um só homem, Jesus Cristo, foi concedido a todos com abundância.

* A graça de Deus dada em abundância. 

   Devo dizer que esta é uma de algumas das passagens difíceis das Cartas de Paulo e, com mais razão ainda, da sua Carta aos Romanos. Em todo o caso, parece-me que há aqui uma ideia bastante clara: todos nós somos descendentes de Adão enquanto criaturas humanas e todos podemos ser descendentes de Cristo enquanto novas criaturas. Ora, segundo essa lógica, a vida que recebemos de Adão não pode ser senão uma vida relativa, ao passo que de Cristo podemos receber a vida que conta, a vida que não tem fim. E então, nessa perspetiva, segundo a visão de Paulo, o papel de Cristo é tão importante que é equiparável ao papel do próprio Deus. Se Cristo nos pode dar a vida definitiva, isso é sinal de que Ele é comparável ao autor da própria vida, que é Deus. Outra mensagem que me parece bastante fácil de tirar é que, quando Paulo fala de morte, não se refere exatamente ao que se entende geralmente por morte, que é a física. Aqui o acento recai sobre um outro tipo de morte, que é a morte mais terrível, porque se trata do desencontro definitivo com Deus. E esse desencontro acontecerá mesmo se pensarmos que a simples pertença à humanidade adâmica, digamos assim, é a resposta a todas as nossas ânsias. Mas não há que desanimar, porque «a graça de Deus é muito maior».

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Evangelho (Mt 10,26-33):  (Jesus dizia aos apóstolos): Não tenhais medo dos homens, pois não há nada em segredo que não venha a ser desvendado e nada de escondido que não venha a ser conhecido. O que vos digo às escuras dizei-o à luz do dia; e o que escutais em privado proclamai-o sobre os terraços. Não temais os que matam o corpo mas não podem matar a alma. Temei antes aquele que pode fazer perecer na Geena o corpo e a alma. Não se vendem dois pássaros por uma pequena moeda? Pois bem, nenhum deles cairá em terra sem o consentimento do vosso Pai. Quando a vós, até os cabelos da vossa cabeça estão contados! Por isso não temais; valeis mais do que muitos pássaros. Quem se declarar por mim diante dos homens, também Eu me declararei por ele diante do meu Pai que está no Céu. Mas quem me negar diante dos homens, também o hei-de negar diante do meu Pai que está no Céu.

* Não temais os que matam o corpo, mas não a alma. 

   O texto evangélico que temos entre mãos insere-se na seção em que Mateus fala da preparação que Jesus procurou dar aos discípulos para a missão que os esperava. É o dito «Discurso Missionário». Embora seja assim chamado, isso não quer dizer que seja um discurso apenas dirigido aos apóstolos; é-o a todos os que são «enviados» a propor a pessoa e a mensagem de Cristo aos outros. E esses são todos os que, ao fim e ao cabo, «configuram» a sua vida com as exigências contidas no que o  Evangelho nos transmite. Do contexto é possível deduzir que se torna necessário dar a cara e tomar partido pelo Evangelho. A propósito, devo acrescentar que se, porventura, nos tempos que correm, nomeadamente no contexto europeu, as coisas não estão a correr bem no que diz respeito à transmissão da mensagem cristã, não será porque os cristãos estão a falhar na sua tarefa de testemunhar o nome de Deus diante dos homens? Tantas vezes, temos muito mais medo dos que matam o corpo do que daquele que pode fazer parecer o corpo e a alma. É uma vergonha ter que admitir isto, mas se calhar é o que acontece tantas vezes. Mas não pode nem deve ser essa a nossa atitude. É que, no mesmo contexto, é-nos dada a garantia de que nada nos acontecerá de definitivamente mau, pois nem sequer um cabelo da nossa cabeça cairá sem o consentimento do nosso Pai.

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

  •  *   O Senhor livra a vida do pobre.
  •  *   A graça de   Deus dada em abundância.
  •  *   Não temais os que matam o corpo.

ATÉ OS VOSSOS CABELOS ESTÃO CONTADOS.

   

    * Perseguição, distintivo do cristão

    É um facto facilmente constatável que o Povo de Deus experimentou, durante toda a sua história, a violenta oposição e perseguição dos povos vizinhos. De resto, não era por ser povo eleito que se poderia achar com direito a outro tipo de tratamento. O mistério da perseguição, embora ligado ao problema do sofrimento, é distinto deste. Enquanto o sofrimento é próprio de toda a gente, a perseguição (que naturalmente implica, também ela, sofrimento) diz respeito apenas aos justos, precisamente na medida em que são justos e em que, pela sua vida e atitude, representam uma acusação implícita contra aqueles que não atuam em conformidade com o que os justos transmitem através do que dizem e sobretudo do que fazem.   

   No que se refere ao Antigo Testamento, a perseguição atinge especialmente os profetas, por causa da sua dedicação e amor a Javé em virtude da fidelidade e rigor que acham que devem à Palavra. O profeta Jeremias (que fornece abundante material para a reflexão de hoje) ocupa entre os perseguidos um lugar de destaque. A sua vida é a demonstração cabal da relação estreita entre perseguição e missão profética.   

   Ora bem, da mesma forma, a perseguição, bem como o sofrimento que dela deriva, será um distintivo do cristão realmente incorporado na dinâmica daquele «que fala em nome de Deus». Todo o cristão deve ter a noção clara da obrigação que lhe incumbe de falar em nome de Deus. Daí se dever afirmar que todo o cristão deve ser profeta. Mas é certo e sabido que quem está sinceramente comprometido na defesa dos interesses dos mais necessitados, bem como na difusão dos valores evangélicos, será objeto de oposição e, por vezes, de perseguição, «porque, assim como perseguiram o Mestre, assim também hão-de perseguir os seus discípulos» (cf. Jo 15, 20).

   * Figura profética: o Servo de Javé

    Jesus, nesse aspeto, também não foi exceção. Melhor dizendo, Ele é o paradigma do Justo que sofre por defender a justiça. Por isso se lhe aplica plenamente o título de «Servo de Javé». O Servo sofredor é tal na medida em que cumpre os planos de Deus. Com efeito, como os planos de Deus são diferentes dos planos dos homens, isso causa «atrito» e, por conseguinte, a aceitação da perseguição e dos sofrimentos que dela derivam é uma situação «normal» em que se encontram envolvidos tanto os profetas como quem quer fazer a vontade de Deus. Por isso, todo o profeta (e o cristão deve ser um profeta, ou seja, alguém que fala e, com a vida, é testemunha duma outra realidade em nome de Deus) tem a pagar, como tributo à sua condição de testemunha de Deus, a agonia duma vida cheia de contrariedades e perseguições. O drama do justo perseguido é descrito pelo profeta Isaías (Is 42,1-7; 49,1-6; 50,4-9; 52,13–53,12), e também pelo livro da Sabedoria, segundo o qual o justo se torna insuportável para o ímpio só em vê-lo (cf. Sb 2,12-14). Ao condenar Jesus ao supremo suplício da cruz, os judeus continuam a injustiça dos seus antepassados que, perseguindo os profetas e Jesus, se opõem ao plano de Deus. Mas, no fim, os cálculos do homem pecador revelam-se sem perspetiva. Os príncipes deste mundo, ao crucificarem o «Senhor da glória», na realidade, tornam-se instrumentos da Sabedoria divina (cf. 1Cor 2,8), porque a morte de Cristo é salvação para o mundo e glória de Deus, enquanto a fraqueza do mundo é a fortaleza de Deus.

   * Perseguição é bem-aventurança

    Segundo os ensinamentos de Jesus, a perseguição é inclusivamente tema, ou melhor, objeto das bem-aventuranças: «Felizes sereis quando vos insultarem e vos perseguirem...» (cf. Mt 5,11). A perseguição, como disse acima, é inevitável. É o próprio Jesus que o diz: «O servo não é maior que o seu senhor. Se me perseguiram a Mim, também vos hão-de perseguir a vós». Empenhar-se, pois, em viver segundo os caminhos do Senhor implica encontrar no próprio caminho uma série de dificuldades e problemas sempre novos e cada vez maiores. Num mundo dominado pelo egoísmo e pela procura do próprio interesse, quem prega o amor, a pobreza, o desapego e o perdão, será inevitavelmente perseguido.   

   Só que quem é perseguido sabe que os perseguidores não têm senão o poder de matar o corpo, mas não têm o poder de matar a alma. Por isso mesmo, o cristão até é capaz de chegar a um momento em que experimenta a capacidade de suportar a perseguição com alegria. Exemplo disso são os apóstolos, após o Pentecostes: «Eles saíram do Sinédrio contentes por terem sido ultrajados por amor do nome de Jesus» (cf. Act 5,41). S. Paulo diz o mesmo: «Estou cheio de alegria em cada tribulação» (1Cor 7,4).

   * Perseguição não é vitimismo

    Até à realização do II Concílio do Vaticano, prevaleceu uma mentalidade bastante fechada a nível de Igreja em relação ao mundo. Como que se aprendia que era necessário «odiar», desprezar e fugir do mundo. E muitos cristãos tomavam isso rigorosamente à letra (pelo menos no plano doutrinal), embora soubessem, ou pelo menos intuíssem, de alguma forma, que, tendo sido criado por Deus, o mundo era uma coisa boa.

   Infelizmente, há que reconhecer que dessa mentalidade ficaram muitos vestígios. Ora bem, a expressão «mundo», particularmente na linha de pensamento do evangelista João, indica não uma realidade física, mas sim uma realidade moral, na medida em que significa o que no mundo há de mal. E isso, como parece óbvio, existe também dentro da Igreja e dentro de cada um dos seus membros.

   A Igreja, nos tempos que correm (é uma constatação), como regra, já não é considerada como castelo encantado que é preciso defender de todas as investidas do «mundo» (antes pelo contrário). É considerada, isso sim, como fermento que quer permear com os valores evangélicos a grande massa da humanidade. Espero bem que já tenha sido ultrapassada a convicção de que toda a massa se deve tornar fermento. A massa será sempre massa e o fermento será sempre apenas uma pequena parte inserida na massa. Esta expressão tirada do próprio Evangelho talvez evite muitos mal-entendidos e muitas ilusões alimentadas de maneira incorreta. Uma atitude negativa neste campo conduz a um estado de vitimismo que não é nada saudável.   

   Enfim, mais que uma doutrina ou um conjunto de regras, que é preciso defender contra todas as investidas dos «inúmeros» adversários e inimigos que andam por aí à solta, o cristianismo deve ser um fermento que leveda a massa, deve ser uma vida vivida, deve ser uma mudança constante de mentalidade segundo as teses evangélicas: um fermento para o mundo (passe a expressão!) e, antes de mais, para os cristãos.

   * A ação não é guerra defensiva

    Em todo o caso, pôr em prática as bem-aventuranças evangélicas para promover a causa da evangelização e da autêntica promoção humana conduz necessariamente à perseguição. Enfim, parece mesmo que a oposição entre a sabedoria mundana e a sabedoria divina é inevitável.

   Mas devo acrescentar que nem sempre as perseguições de que a Igreja é objeto são devidas à sua fidelidade ao Evangelho. Oxalá fosse só por isso! Por vezes, a Igreja é também perseguida e obstaculizada por não ser fiel ao Evangelho (também pode acontecer e, infelizmente, acontece mesmo isso) e por não corresponder aos anseios dos tempos, por denotar alguma preguiça ou por demonstrar falta de fé, coragem e abertura ao sopro do Espírito de Deus.

   De alguma forma, é doloroso verificar como ideias genuinamente cristãs, como sejam, por exemplo, a liberdade, a igualdade, os direitos da pessoa, e mesmo a democracia, tenham encontrado, em certos momentos e em certos setores da Igreja como cúpula e como base, opositores inflexíveis, renitentes, resistências incompreensíveis e até mesmo uma luta declarada.   

   Não há como negar que os limites humanos da Igreja e dos cristãos são visíveis nas conivências (conscientes ou inconscientes) com situações de injustiça e de poder, de medo, de hesitações, de silêncios, de faltas de coragem e confiança. Em mais do que um caso, é certo que as perseguições contra a Igreja têm a sua origem numa conceção errada que os perseguidores têm de religião. Mas a verdade é que se trata duma conceção que, com alguma frequência, é induzida, senão mesmo provocada, justamente pelos que deviam vivê-la com muito mais autenticidade. Às vezes, a hostilidade contra a Igreja nasce dum «amor desiludido» para com ela...

    * Não é só essa perseguição

    Mas, isso não significa supersimplificar as coisas de forma inconsciente. É que há, sem sombra de dúvida, também uma outra perseguição que podemos classificar de «satânica». É o fermento negro do mundo que se difunde e ramifica como um cancro que corrói o tecido da humanidade. É como uma espécie de «corpo místico do mal», com o qual, apesar de todos os gestos de boa vontade, não se pode entrar em diálogo, porque se trata do inimigo irredutível, do inimigo por excelência, que luta contra Cristo e contra o seu Reino. As suas vítimas preferidas são naturalmente as que, na construção dum mundo mais humano, seguem os passos traçados por Jesus e trilhados pelos seus discípulos.

    Seria uma atitude de menoridade não estar consciente de que o Mal existe realmente e que se consubstancia em todas as tentativas, declaradas ou não, de combater, de todas as formas, mesmo ilegítimas, os valores veiculados pelos adoradores da divindade e, de modo especial, por aqueles que se dizem cristãos. Há claramente indivíduos e grupos apostados em combater e neutralizar valores que, na ótica cristã, devem ser fermento da humanidade, a começar pelos valores da vida e da dignidade humana.

 

 

CORPO E SANGUE DE CRISTO

 (QUINTA-FEIRA DEPOIS DA SS. TRINDADE)

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 Dt 8,2-3.14b-16a: Recorda-te como o Senhor, teu Deus, te conduziu pelo deserto, durante estes quarenta anos, para te pôr à prova com humilhações e dificuldades. Era sua intenção ver o que tu decidias fazer e se tinhas em mente obedecer aos seus mandamentos. Ele, primeiro, fez-te passar fome e, depois, deu-te a comer o maná, uma comida que nem tu nem os teus antepassados conhecíeis. A sua intenção era fazer-te compreender que nem só de pão vive o homem, mas vive de tudo quanto sai da boca do Senhor. O Senhor, teu Deus, tirou-te do Egipto, onde eras escravo. Foi Ele que te conduziu através deste deserto vasto e terrível, onde havia serpentes venenosas e escorpiões. Nessa terra árida e seca, Ele fez jorrar para ti água da rocha dura e alimentou-te com maná, um alimento que os teus pais desconheciam...

* Nem só de pão vive o homem.

   Segundo os entendidos, o livro do Deuteronómio (Segunda Lei), a par dos Salmos, era provavelmente um dos livros mais utilizados pelos judeus. E é talvez por isso que ele ocupa também um lugar central como motor de reflexão no contexto do AT. O trecho escolhido para a solenidade de hoje pretende despertar a atenção do povo de então - e a nossa também - para a necessidade e obrigação de nunca esquecer tudo o que o Senhor faz ao longo da nossa existência: quer como indivíduos, quer como fazendo parte duma determinada comunidade. Todavia, há um outro aspeto que não pode deixar de ser objeto de toda a atenção: a ação de Deus não está limitada aos acontecimentos próprios da história individual ou coletiva que se esgote e resuma na dimensão terrena. Ou seja, o maná que o Senhor deu ao seu povo era o símbolo duma outra comida. É que, como é dito no texto, «nem só de pão vive o homem, mas de tudo quanto sai da boca do Senhor». Como sempre acontece com a Bíblia, nota-se um claro convite a ultrapassar a pura dimensão terrena, porque ela por si só não responde por inteiro aos anseios e necessidades mais profundas do ser humano.

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1Cor 10,16-17: O cálice de bênção, que abençoamos, não é porventura comunhão com o sangue de Cristo? E o pão que partimos não é porventura comunhão com o corpo de Cristo? Há um único pão, pelo qual nós todos, embora muitos, formamos um único corpo, pois todos partilhamos do mesmo pão.

* Formamos um só corpo.

  Nesta leitura, Paulo recorda aos cristãos de Corinto o alcance e significado da Eucaristia como sua «fusão» com Cristo e como comunhão com os irmãos (koinonia). Havia o perigo de que os cristãos se deixassem levar por usos e costumes pagãos. Com efeito, não se pode esquecer que Corinto era já então uma grande cidade cosmopolita, onde se cruzavam todas as correntes filosóficas e religiosas. Por esse facto, Paulo adverte os seus cristãos para que não confundam o banquete eucarístico com os banquetes que eram característicos dos sacrifícios pagãos. A Eucaristia não era apenas mais um «banquete», como o faziam outros, mas sim o sinal por excelência da congregação daqueles que acreditam no Senhor Jesus como Messias e Filho de Deus. Sendo o sinal por excelência da unidade do Corpo Místico de Cristo, então não é possível celebrar dignamente a Eucaristia sem que nela se construa sempre uma comunidade de solidariedade e de amor.

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 Jo 6,51-59: «Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem comer deste pão, viverá para sempre. O pão que eu darei é a minha carne que entrego para que o mundo tenha vida». Estas palavras originaram uma discussão acesa entre os judeus: «Como é que este homem pode dar-nos a comer a sua carne?». Jesus respondeu: «Em verdade, em verdade vos digo que, se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós. Mas quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna e Eu ressuscitá-lo-ei no último dia. É que a minha carne é verdadeira comida e o meu sangue é verdadeira bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue vive em mim e Eu vivo nele. Assim como o Pai, que me enviou, vive e eu vivo pelo Pai, assim também quem me come vive por mim. Isto é, pois, o pão que desceu do céu. Não é como o pão que os vossos antepassados comeram, pois morreram. Quem come deste pão vive para sempre». Jesus disse isto quando ensinava na sinagoga de Cafarnaum.

* Quem come deste pão vive para sempre.

   Este trecho evangélico faz parte do chamado «Discurso do Pão da Vida», exclusivo de João. Se é certo que alguns podem estranhar que o evangelista João não nos tenha deixado uma descrição «formal», digamos assim, da instituição da Eucaristia, por outro lado, não é menos verdade que é ele quem dá mais destaque ao tema da verdadeira comida e da verdadeira bebida (todo o capítulo sexto anda à volta do assunto). O realismo das palavras de Jesus é muito claro, pois o evangelista acrescenta que as palavras de Jesus originaram uma discussão acesa entre os judeus, que naturalmente não entendiam como é que Ele podia dar a sua carne a comer. Isso quer dizer que eles não entenderam as palavras de Jesus apenas como uma maneira de dizer, apenas como uma imagem, mas tomaram-nas à letra. E Jesus, por seu lado, não faz nenhuma tentativa para «tranquilizar» os ouvintes, já que insiste, mais que uma vez, que aquilo que está a dizer corresponde à verdade. Ou seja, Jesus desfaz claramente qualquer sentido metafórico que as suas expressões poderiam sugerir. Nesse sentido, o seu realismo é também para nós. Só quem come realmente deste pão é que vive para sempre. Mas, como é evidente, há comer e comer!

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

                             Alimentou-te com uma comida que não conhecias.

  U   Um só pão e um só corpo, embora muitos.

q   O meu corpo é verdadeira comida e o meu sangue verdadeira bebida.

* O sentido duma festa

   Pelo menos à primeira vista, pode dar a impressão que não há diferença nenhuma entre a Festa do Corpo de Cristo (em Portugal também conhecida por Festa do «Corpo de Deus») e a Instituição da Eucaristia por ocasião da Última Ceia (Quinta-Feira Santa). E, com efeito, para sermos rigorosos, há que afirmar que a realidade que se celebra é a mesma: a presença real de Jesus na Eucaristia. De qualquer forma, pode haver nuances que têm por objetivo ajudar-nos a «privilegiar», digamos assim, mais um que outro aspeto.

   Assim, pode-se dizer que, na Quinta-Feira Santa, o acento vai claramente para a íntima conexão entre a Eucaristia e a Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus. Privilegia-se, pois, o aspeto da entrega e do sacrifício. Daí a expressão tão conhecida de «Sacrifício da Missa». Por isso, não é por nada que nesse dia se celebra também a «instituição do sacerdócio». Por seu lado, na Festa do Corpo de Deus, como que se acentua mais a ideia do Pão que nos dá vida, privilegiando, portanto, mais a presença eucarística de Jesus. Daí que se convidem os fiéis, sobretudo neste dia, a adorar a Jesus e, para o efeito, se façam as tradicionais procissões do Corpo de Deus.

    A festa como «memória» do sacrifício de Cristo poderia levar a pensar tratar-se apenas de uma recordação e de uma presença desencarnada. Ora, a verdade é que se trata de uma memória que, através dos sinais do pão e do vinho, tomados e partilhados em comunidade, torna presente Cristo na sua realidade de Filho de Deus, que não cessa de se entregar sempre aos homens, para que estes tenham a vida e a tenham em abundância.

* Alguns dados úteis

    A Festa do «Corpus Christi» foi instituída por Bula papal de Urbano IV em 1264, de modo a agradecer, de modo visível, a Deus o Sacramento da Eucaristia. Esta festa propagou-se em pouco tempo a todo o mundo católico. E também não foi preciso esperar muito para que fosse proposta como dia santo de guarda, ficando logo marcada para a quinta-feira depois da solenidade da SS. Trindade. A esta celebração está associada a Procissão Eucarística pelas vias públicas.
    Pelo que se sabe, terá chegado a Portugal provavelmente já nos finais do século XIII e ficou com a denominação de Festa de Corpo de Deus (naturalmente o corpo de Jesus, o Deus feito homem, ou seja, com uma natureza humana como nós). Esta devoção popular à Eucaristia tem, pois, lugar 60 dias depois da Páscoa, numa quinta-feira, ficando assim intimamente ligada à Última Ceia, cuja instituição é tradicionalmente colocada na Quinta-Feira Santa.

* Mais que entender, é preciso contemplar

    O santo papa Paulo VI (canonizado a 14 outubro de 2018 pelo papa Francisco), na homilia da Solenidade do Corpo e Sangue de Cristo de 12 de Junho de 1977, fazia referência ao facto de que, muitas vezes, as pessoas se habituam de tal maneira às coisas que acabam por não as apreciar. E acrescentava que é, por vezes, o que acontece com os cristãos no caso da Eucaristia. Falta-lhes a capacidade de se maravilharem perante o mistério; enfim, quase que poderíamos afirmar que lhes falta a capacidade de «se escandalizarem». Isso no sentido positivo do  termo e não como sucedeu aos judeus ao ouvirem as palavras de Jesus: «Esta linguagem é dura. Quem é que a pode entender?» (cf. Jo 6,60).

    Quer dizer, estamos de tal maneira habituados às «grandes coisas» (e, no que a nós diz respeito, o mistério da Eucaristia é uma delas) que parece que já não nos dizem nada, ou, por outras palavras, como que se tornaram coisas ordinárias; quase corriqueiras. Nesse sentido, esta solenidade é então uma ótima oportunidade para refletir sobre o assunto e para constatar até que ponto muitos cristãos de hoje não se admirariam nada se, por hipótese, a Eucaristia nem sequer existisse. Seria ótimo que achassem estranho.

    O cristão que não tenha descoberto a novidade da presença de Jesus na Eucaristia não merece verdadeiramente esse nome. Jesus assumiu no meio de nós a imagem visível do Deus invisível, mas isso não podem ser apenas palavras. É sintomático que Jesus Cristo tenha instituído a Eucaristia antes do seu regresso ao Pai. De alguma forma, Ele quis também dar a entender que esta imagem não devia ser apagada do nosso horizonte. Sim, Ele continua a ser a imagem de Deus, através dos sinais do pão e do vinho; através destes sinais, não nos abandona, mas continua a estar connosco até ao fim dos tempos.

 A Eucaristia é o novo maná

    O maná, como sabemos, serviu para manter em vida o povo peregrino no deserto rumo à Terra Prometida. Mas, como é óbvio, tratava-se de um alimento cuja utilidade era só manter a vida que designamos como física e perecível. Mas, na ótica cristã, é preciso muito mais do que isso, porque a vida não se reduz à dimensão terrena. Já a primeira leitura nos diz que «nem só de pão vive o homem, mas também de toda a palavra que sai da boca de Deus» (Lc 4,4).

    Com muito maior razão, o novo povo de Deus tem necessidade de algo mais do que o pão material para ter a vida. Sendo assim, o pão que é partilhado na mesa eucarística é o único que pode garantir um tipo de vida que dura para sempre. No fundo, através da partilha do pão e do vinho, feitos corpo e sangue do Senhor, é a própria vida de Deus que «encarna» na vida daqueles que se alimentam do próprio Filho de Deus. É o próprio Jesus que, através deste sinal eficaz, continua a realizar o mistério da encarnação, digamos assim, na comunidade que se reúne em seu nome.

 

SOLENIDADE DA SS. TRINDADE

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1ª leitura (Ex 34, 4b-6.8-9): No dia seguinte, Moisés levantou-se muito cedo e subiu ao monte Sinai, como o Senhor lhe tinha ordenado, com as duas tábuas de pedra na mão. Então, o Senhor desceu na nuvem, aproximou-se e pronunciou o seu nome sagrado: «Senhor». Depois, passou em frente dele e proclamou: «Eu, o Senhor, sou um Deus de misericórdia e clemência, lento para a ira e rico de graça e fidelidade». Moisés curvou-se logo até ao chão e prostrou-se em adoração, dizendo: «Se encontrei graça aos teus olhos, vem morar connosco. Este é um povo de dura cerviz, mas perdoa-nos as culpas e o pecado e aceita-nos como tua propriedade».

Um Deus clemente e compassivo.

   Numa linguagem toda tecida de imagens - e só por analogia é possível falar de Deus - o autor do segundo livro bíblico, o Êxodo, nesta passagem, dá importância àquilo que, em termos teológicos, se costumam chamar os atributos de Deus. E é de realçar que o mesmo autor realce, dum modo especial, o atributo da bondade e  misericórdia de Deus; ao contrário do que alguns que se julgam iluminados possam pensar. O próprio Moisés trata a Deus por tu, com intimidade, pedindo-lhe inclusivamente que venha «morar» com o povo. Ora bem, isso quer dizer que a ideia veiculada é a de que, afinal, Deus não é um ser distante, fechado no silêncio, na indiferença  e na transcendência, mas Alguém que se «aproxima» das pessoas e com quem se pode estabelecer um contacto. De resto, pensando bem, a ideia de proximidade e de relação entre Deus e o homem já tinha ficado bem vincada quando o autor do primeiro livro, o Génesis, tinha afirmado que o homem tinha sido criado à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,27).

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

2ª leitura (2Cor 13, 11-13):  ... Quanto ao resto, irmãos, vivei na alegria, trabalhai na vossa perfeição, animai-vos uns aos outros, tende um mesmo sentir e vivei em paz. E o Deus do amor e da paz estará convosco. Saudai-vos mutuamente com um ósculo santo. Todos os santos (fiéis cristãos) vos saúdam. A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós.

A graça de Cristo, o amor do Pai e a comunhão do Espírito. 

  Em termos cronológicos, é possível e até é o mais provável que este escrito tenha aparecido pelos anos 56/57. O texto que, neste dia, nos é proposto é a conclusão da II Carta aos Coríntios, que é uma confissão trinitária, fruto talvez de algum rito litúrgica já em prática nos primórdios da Igreja. Mas, também neste caso, os «atributos» divinos realçados são precisamente os da bondade, do amor, da misericórdia, da comunhão e da proximidade. Mais uma vez, fica evidente que a proposta do mistério da vida trinitária não é um enigma para matar a cabeça, mas sim e, antes de mais, um convite a acolher no coração o carinho de um Deus de amor que se interessa pessoalmente por nós.

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

Evangelho (Jo 3, 16-18): Deus amou de tal maneira o mundo que lhe deu o seu Filho único, para que quem acredita nele não pereça, mas tenha a vida eterna. Deus não mandou o seu Filho ao mundo para julgar o mundo, mas para que o mundo se salve por Ele. Quem acredita no Filho não é condenado, mas quem não acredita já está condenado, pois não acreditou no nome do Filho único de Deus.

Ele veio para que tenhamos a vida eterna.

  Este trecho faz parte da conversa entre Jesus e Nicodemos, que foi visitar Jesus de noite (cf. Jo 3,2). Provavelmente, Nicodemos era um membro do Sinédrio e chefe dos judeus; como, de resto, dá a entender o texto evangélico. Apesar de, ao início, Nicodemos ter manifestado algum receio em arriscar a sua posição (por isso, é que vai ter com Jesus de noite), a verdade é que, mais tarde, irá defender Jesus perante os chefes dos fariseus (cf. Jo 7,48-52). É o que nos conta o evangelista João. Mais ainda, ele também está presente quando Jesus é descido da cruz e colocado no túmulo (cf. Jo 19,39). Agora, este texto tem interesse para a nossa vida na medida em que, mais uma vez, nos é descrita como que a paixão de Deus pelo homem. Ele quer, a todo o custo, que o homem se salve e, por isso, não se recusa sequer a algo de inédito: fazer-se um de nós (na pessoa de Jesus Cristo) para que isso aconteça.

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

* O Senhor é    um Deus bom e misericordioso e rico de graças.

* A graça de Jesus Cristo, o amor do Pai e a comunhão do Espírito.

* Deus mandou o seu Filho para que o mundo se salve.

    

    Se, por um lado, a salvação, em termos de elaboração teológica, pode parecer um «assunto complicado» (e realmente é assim), por outro lado, no concreto da vida, há que regressar às fontes evangélicas para ver que, afinal de contas, talvez não seja um assunto tão complicado como parece. No fundo, do texto supra de João intui-se facilmente que a salvação, em última análise, é uma iniciativa de Deus e que o homem só tem é que aceitar esse primeiro gesto de Deus e atuar em conformidade com as exigências que esse gesto implica. O que, de resto, parece evidente, se tivermos em conta que, sendo a salvação eterna algo de «infinito», não é atingível senão por um gesto gratuito de Deus.

  • Deus é comunidade de amor

    A solenidade de hoje não tem por objetivo decifrar, e muito menos definir em termos de «lógica» o mistério que se esconde por detrás da expressão «um só Deus em três pessoas». Em certos temas e circunstâncias da vida, mais do que pôr-se a discorrer (o que não quer dizer que os especialistas o não possam e não devam fazer), a atitude mais prudente é a da contemplação. E isso é mais que evidente no caso da Solenidade da Santíssima Trindade.

    Para tratar do tema da solenidade de hoje, vamos pressupor que os elementos de que podemos dispor são apenas os textos bíblicos e as conclusões que a partir deles se podem tirar. Demasiadas palavras neste tema correm o risco de esvaziar de sentido o mistério diante do qual a melhor atitude é a de acatamento.

    Nesse espírito de contemplação e acatamento, gostaria de propor - sem comentários - alguns textos do evangelista João que «demonstram», por assim dizer, a identidade das três Pessoas que constituem a essência da Trindade; que nos falam, enfim, de três pessoas distintas que, porém, são um único Deus: «Quem me vê a mim, vê Aquele que me enviou» (Jo 12,45). «Se me conhecêsseis, também conheceríeis o meu Pai» (Jo 14,7). «Acreditai que Eu estou no Pai e o Pai está em mim» (Jo 14,11). «Se me amardes, guardareis os meus mandamentos. E Eu rogarei ao Pai e Ele dar-vos-á outro Consolador (trata-se do Espírito), para estar convosco para sempre» (Jo 14,15).

    «O que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é que me ama; e aquele que me ama será amado por meu Pai... Se alguém me ama, guardará a minha palavra e o meu Pai amá-lo-á e viremos a ele e faremos nele a nossa morada» (Jo 14,21.23). «Quando vier o Consolador, que vos hei-de enviar da parte do meu Pai, o Espírito da Verdade que procede do Pai, Ele testemunhará acerca de mim» (Jo 15,26).

    «Todo aquele que nega o Filho, também não reconhece o Pai e aquele que confessa o Filho reconhece o Pai» (Jo 2,23). «O mandamento (do Pai) é este: que creiamos no nome do seu Filho, Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros como Ele nos amou. Aquele que observa os seus mandamentos, permanece em Deus e Deus nele. E conhecemos que Ele permanece em nós pelo Espírito que nos deu» (1Jo 3,23-24).

  • Um Deus que é comunhão de vida

   Acontece, pelo menos de vez em quando, o homem dar consigo a olhar para a sua interioridade, a fim de analisar a própria experiência religiosa mais íntima. Todo o homem é susceptível de viver momentos destes, embora talvez o não queira admitir em público ou então se recuse a admitir expressamente que se trate de experiência religiosa. Chamemo-lhe o que quisermos, mas o que todo o homem tem é porventura o pressentimento duma profundidade cujos limites não lhe é possível abraçar.

   Ao «habitante» deste santuário de profundidade, neste fundo inatingível do nosso ser, a este mistério insondável e inexplicável, pode dar-se o nome de «Deus» ou outro qualquer (o que, de resto, é um facto, se utilizarmos uma outra língua que não a nossa). Seja qual for o termo utilizado para o designar, na ótica cristã, Deus é a profundidade última da nossa vida, a fonte inextinguível do nosso ser, a meta final dos nossos esforços e labutas.

    Esta realidade, que habita no mais profundo do nosso íntimo (e que certamente não sabemos explicar), vive em contínua tensão no sentido de se exteriorizar e manifestar numa abertura a alguém. É claro que pode ser a um «tu» qualquer, mas, bem no recôndito de nós mesmos, há momentos em que temos a sensação confusa ou nítida de que, para responder a estes anseios que não sabemos explicar, há necessidade dum «Tu» diferente de qualquer outro.

  • Um Deus em comunhão de vida

   Eu diria que como que está impressa no nosso ser a realidade exaltante do Deus cristão, que se consubstancia na Trindade. Ou seja, de alguma forma, esse algo de profundamente íntimo e inexplicável ao mesmo tempo, está como que inserido no próprio mistério dum Deus que é comunidade, ou melhor, comunhão de vida: de um Deus que é Pai, Filho e Espírito Santo.

    Pois bem, a nossa fé diz-nos que essa realidade existe, mas é tão misteriosa e «confusa» que certamente não caberia na imaginação de ninguém inventar um «quebra-cabeças» do género, se a sua fundamentação não estivesse fora do homem. Vou ver se consigo explicar-me por outras palavras. Se a proposta da Trindade (em palavras pobres, três Pessoas distintas que são um único Deus), fosse apenas a «invenção» produzida por uma mente humana, de facto, seria um absurdo. E, por ser absurdo, não estaria bom da cabeça quem se lembrasse duma «coisa tão estranha». E também não estaria bom da cabeça quem a aceitasse.

    Pressupor que a Trindade é uma invenção dos cristãos, seria atribuir-lhes, sem razão, o gosto sádico de complicar a vida das pessoas, a começar por si próprios, com mais um mistério, que viria criar ainda mais problemas. Ou seja, se fosse uma «invenção» humana, o que seria natural é que os «inventores» tivessem é procurado eliminar (e não somar) mais um «quebra-cabeças» que, pelos vistos, a nível de inteligibilidade, só causa problemas. Eis por que eu digo que, se os cristãos têm insistido e continuam a insistir na defesa do mistério da Trindade, é porque a isso devem ser obrigados por uma revelação exterior a si mesmos.

  • Comunhão com Deus: fim do homem

   Ao contrário do que era a mentalidade corrente entre os judeus, os cristãos afirmam que o próprio Deus vem habitar no coração do homem. Também para os cristãos, Ele se manifesta certamente como «Senhor», mas é um Senhor cheio de bondade e misericórdia, rico de graça e de fidelidade. Na exuberância do seu amor pelo mundo, manifestado na oferta do seu Filho único para o salvar, o Deus de amor e de paz enche o homem com a plenitude da vida em Jesus Cristo, chamando-os à comunhão consigo no Espírito Santo.

    A comunidade trinitária é a referência última e suprema, o fim último, do homem. Deus, e só Ele, é a plenitude de toda a perfeição, na medida em que a vida que «corre» entre as três Pessoas é a fonte e a causa do próprio ser da Trindade. Ora, como (de resto, segundo as primeiras páginas da Bíblia) o homem tanto mais se realiza quanto mais for «imagem e semelhança de Deus», a vida à maneira da Trindade é a resposta à sede de infinito que mora no coração do homem.

  • Amor não se «raciocina», vive-se

   Mas a comunidade trinitária é de facto um mistério, uma realidade indizivelmente maior que toda a capacidade (sempre limitada, diga-se de passagem) de compreensão do homem. Que Deus, infinitamente perfeito na sua essência, tenha decidido manifestar-se para além de si mesmo, é «assunto» que a Ele diz respeito; e não teria deixado de ser o que realmente é se não tivesse tomado essa decisão. Ou seja, mesmo que não tivesse estado na origem da criação, mesmo que não fosse Criador, nem por isso deixaria de ser Deus. Mas essa é uma hipótese que não se pode colocar, porque o mundo criado é um facto.

   Que Deus, no seu projeto de criação, tenha «decidido» amar o homem, é já um mistério, que só Ele compreende e que, precisamente por ser mistério, não é compreensível pelo homem. Mais: é próprio do mistério estar sempre a reservar-nos surpresas. Sendo assim, Deus nunca cessa de maravilhar o homem, porque a sua maneira de proceder não é a maneira de proceder do homem (cf. Is 55, 8).

    Por exemplo, o patriarca Abraão, também conhecido por «nosso pai na fé», sabe isso por experiência pessoal. Conhecedor das suas limitações e da precariedade das suas seguranças, o pai do Povo de Israel intui a absoluta soberania de Deus sobre o seu destino e, por isso, coloca-se numa disponibilidade total para se deixar desenraizar do húmus que alimentava os seus projetos humanos. Esse «deixar fazer» a Deus certamente significou uma mudança radical na sua vida, mas foi a condição indispensável para encontrar o sentido para ela.

  • É preciso «apostar» tudo

   Também Abraão, no uso das suas faculdades intelectuais, terá pesado, digamos assim, os prós e os contras da sua atitude vital de «submissão» a um Deus que se lhe revelava de maneira estranha e também «absurda» (segundo as categorias humanas).

    À sua capacidade de raciocínio terá parecido uma temeridade tomar a iniciativa de tudo largar para seguir o apelo de Deus. Mas, apesar da sensação de «escuro» e absurdo das atitudes que lhe eram propostas e exigidas, soube intuir que as decisões essenciais da vida passam ao largo da racionalidade e da «razoabilidade» humanas. Abraão intui que, muito para além da componente humana, há dentro de si uma outra componente de cuja natureza ele não faz a mínima ideia, mas que sabe que está lá algures no seu íntimo, nem ele sabe bem onde.

  • Um só Deus em três Pessoas

   Um só Deus em três Pessoas: esta sempre foi uma proposição que só levanta problemas. E para quê levantar esses problemas? Por isso, não seria muito mais fácil lidar com ela eliminando-a pura e simplesmente? Humanamente falando, não tenhamos dúvidas que essa seria a atitude mais natural e mais «lógica». Mas o cristão não o faz nem o pode fazer, porque ele sabe bem, repito, que essa «proposição» não é da sua lavra e, por isso, não a pode modificar.

    É isso! Talvez tenhamos que abandonar um pouco a mania de resolver as questões em termos de racionalidade no sentido humano do termo. Aliás, digo mais: deveríamos ter a noção de que a inteligência humana não é necessariamente a referência da razoabilidade. Não é verdade que apenas seja razoável o que cabe na inteligência humana. De resto, o que é isso de inteligência humana considerada em abstrato? Por outras palavras, quais são os critérios objetivos para determinar se algo é razoável ou não? A minha inteligência? Ou a inteligência de outro qualquer?

    Ora bem, a grande novidade é que, segundo a visão bíblica, o termo de referência da realidade globalmente considerada não é o homem, mas Deus. E, sob uma certa perspetiva, é claro que isso tem muito mais razoabilidade do que se a referência fosse o homem. No fundo, a questão é esta: o que assenta em Deus não terá muito mais razoabilidade do que aquilo que assenta simplesmente no homem? Assim, na ótica bíblica, uma determinada realidade não é razoável por não contradizer a razão humana, mas sim por não contradizer a «razão» de Deus.

    Pretender, pois, compreender a natureza do próprio Deus com a razão humana seria tentar moldar o próprio Deus às formas (limitadas, repito) da razão humana. O que seria certamente ainda mais absurdo do que aceitar o mistério de um só Deus em três Pessoas. Um Deus «explicável», um Deus «controlável», um Deus «encapturado», não existe...

  • Mistério não se acorrenta, acolhe-se

  A expressão «o homem, esse desconhecido» (que até é título dum livro célebre) é uma referência ao mistério que cada homem é sempre para o outro homem. Mas é também a confirmação de que o homem não pode ser compreendido senão a partir de Deus. Na ótica bíblica, sendo feito à imagem e semelhança de Deus, o homem é modelado, pelo Espírito Santo, segundo a imagem de Cristo, o qual, por sua vez, é a imagem perfeita do Pai. E o homem tanto mais aperfeiçoará a construção da sua «essência», digamos assim, quanto mais se deixar atrair e moldar por esta corrente de regeneração do Espírito, de forma que, por um aprofundamento da semelhança com Deus, possa continuamente e de forma progressiva retribuir a iniciativa do amor do Pai.

    Na nossa experiência quotidiana, às vezes cinzenta e outras trágica, a luz do caminho é o amor de Deus. Para este devemos orientar-nos, se não quisermos falhar em relação à verdadeira finalidade da nossa vida. Claro que nós gostaríamos de poder controlar a realidade «Deus», gostaríamos tanto de poder dizer: «Deus está aqui... Deus é assim!». Mas não é possível. Ele sai dos nossos esquemas, sai dos quadros e das imagens que possamos construir para o «definir» e para o aprisionar. Ele rompe sempre com os nossos esquemas, porque «os seus planos não são os nossos planos» (cf. Is 55,8). As nossas representações acerca dele, por mais rigor e perfeição que atinjam, pecam sempre por defeito. Quem quiser viver por e em Deus não se encontra perante um ponto de chegada ou perante uma conclusão (que Ele não é conclusão de nenhum silogismo), mas sempre perante um início, um desafio, uma aposta, um início novo como cada dia que desponta.

Temas

de

fundo

 XV DOMINGO COMUM - A

1ª leitura (Is 55,10-11):  Assim como a chuva e a neve que caem do céu não voltam mais para lá sem terem irrigado a terra, sem a terem fecundado e feito germinar, para que dê semente ao semeador e pão para comer, assim é com a palavra que sai da minha boca – diz o Senhor: não voltará para mim sem ter produzido efeito, sem ter realizado a minha vontade e sem ter cumprido aquilo para que Eu a mandei.


* A Palavra não volta ao Senhor sem produzir efeito.

  Tanto esta leitura de Isaías como o trecho evangélico têm por tema a eficácia da palavra de Deus na nossa vida. O autor do Segundo Isaías (cc. 40-55) é uma espécie de poeta que enche as suas páginas de imagens para que a mensagem fique bem clara. Neste caso concreto, ele diz, sem margem para quaisquer dúvidas, que a natureza da Palavra de Deus é produzir efeito. Esta é uma «Boa Nova», se bem que nem sempre nos demos conta disso. Todavia, há uma condição para que essa eficácia surta efeito: é preciso acolher essa Palavra, como a terra acolhe a chuva e a neve. Se o nosso coração não estiver lá para a acolher, a Palavra perde-se, como se perde a semente lançada à beira do caminho. Ora, o que acontece é que o coração nem sempre está lá: para a ouvir ou para a ler. Perdemos, por exemplo, tanto tempo com leituras que não têm utilidade (sobretudo para entender a vida autêntica) e somos tão negligentes quando se trata de pormos em dia as leituras que contêm a Palavra de Deus, fonte de vida eterna! Sabemos o nome dos desportistas e dos atores das telenovelas de trás para a frente e de frente para trás e, no que se refere à Palavra de Deus, tantas vezes a nossa ignorância é deveras confrangedora. Dito doutra maneira,  com a da Palavra de Deus, pode acontecer o mesmo que acontece com qualquer outra leitura: quanto mais lermos, mais gostamos de ler, mais entendemos e mais claros se nos tornam os planos de Deus a nosso respeito.

 

  PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

  2ª leitura (Rm 8,18-23):  Estou convencido que os sofrimentos do tempo         presente não têm comparação com a glória futura que nos será revelada. A criação inteira vive em expetativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus. De facto, a criação foi sujeita à caducidade – não por vontade própria, mas por decisão daquele que a sujeitou – mas também ela espera ser libertada da escravidão da corrupção, para chegar à liberdade na glória dos filhos de Deus. Com efeito, sabemos perfeitamente que toda a criação geme e como que sofre as dores de parto até ao presente. E não só ela, mas também nós, que possuímos as primícias do Espírito; nós próprios gememos no nosso íntimo, aguardando a adoção como filhos, a libertação do nosso corpo.


* A criação espera a revelação de Deus.

  Eis um texto que é também uma «boa notícia» que nos reconforta. É certo que o sofrimento é uma herança da nossa caducidade. Mas vamos, por causa disso, cair no desânimo, no desespero e na derrota? Com certeza que não - garante-nos num tom otimista S. Paulo - pois os sofrimentos por que passamos na vida presente não se comparam com a glória que teremos um dia por sermos filhos de Deus. Saberá porventura um pouco a exagero dizer que toda a criação como que experimenta as dores de parto, mas essa é apenas uma imagem para nos dizer que, perante o futuro que Deus nos prepara, de pouco ou nada valem os sofrimentos a que possamos estar sujeitos. Em todo o caso, o trecho é muito claro. O que nos falta é aplicá-lo à nossa vida. Eu diria até que o melhor comentário o podemos ler, na mesma Carta aos Romanos, um pouco mais à frente: «Sabemos que tudo contribui para o bem daqueles que amam a Deus». A dificuldade está, de facto, em descobrir essa vertente «redentora» do sofrimento e das dificuldades que tecem a vida de todos os dias. Mas quem está, em termos vivenciais, convencido a sério da relatividade do sofrimento, chega mesmo ao ponto de desejar ver-se livre dos grilhões do próprio do corpo para poder assim estar mais livre e perto de Deus.

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

Evangelho (Mt 13,1-23):  ... Jesus falou-lhes de muitas coisas em parábolas. «O semeador foi semear a sua semente. Enquanto semeava, parte das sementes caiu à beira da estrada e vieram as aves e comeram-na. Outra caiu em sítio pedregoso. Como a terra não era muito profunda, as sementes brotaram logo, mas, quando despontou o sol, ficaram queimadas e, como não tinham raízes, secaram. Outras sementes caíram entre espinhos que cresceram e as sufocaram. E, finalmente, outras caíram em terra boa e deram fruto: umas, cem; outras, sessenta; e outras, trinta. Aquele que tiver ouvidos, oiça!» (segue-se toda a explicação da parábola que me dispenso de copiar) ......

 

  * A SEMENTE QUE CAI NA TERRA É A PALAVRA DE DEUS.

  Com o Evangelho de hoje, tem início uma série de domingos cujo tema principal é constituído pelas parábolas. Dispenso-me de dizer que a semente é a Palavra de Deus, porque isso está claro na explicação que Jesus dá da mesma a pedido dos apóstolos. O núcleo essencial do trecho evangélico de hoje, à semelhança da primeira leitura, é a eficácia da Palavra de Deus, se bem que sujeita às condições de aceitação por parte de quem a ouve. Por outras palavras, os «protagonistas» desta Parábola são a semente e o terreno em que ela cai. No que ao semeador diz respeito, sabe-se que o seu papel é importante, na medida em que tem obrigação de lançar a semente à terra, mas a verdade é que a semente tem em si todas as potencialidades para se multiplicar, a partir do momento em que encontre terra onde possa desabrochar e produzir. Até os níveis de produtividade não são essenciais, porque a semente será eficaz mesmo quando não produz a cem por um, mas apenas a trinta por um. Não se poderá daí concluir que a Palavra de Deus, semeada no coração das pessoas, é eficaz mesmo quando produz apenas o mínimo? Seja como for, neste caso, um pormenor é importante: a semente só produz quando cai em boa terra. Então, neste aspeto, faz todo o sentido examinarmo-nos para saber se tudo fazemos para que o nosso coração não seja um caminho árido, retirando as pedras que há na nossa vida e arrancando os espinhos e as preocupações que sufocam a Palavra de Deus.

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

*A Palavra não volta ao Senhor sem produzir efeito.

 *A criação espera a revelação de Deus.  

 *O semeador saiu a semear a sua semente.

A SEMENTE 

QUE CAI 

NA TERRA 

É A PALAVRA 

DE DEUS.

  

  

      Mateus reúne no capítulo 13 as parábolas que falam do Reino de Deus. Como é óbvio, as parábolas são comparações e, por isso, não se devem interpretar senão como tal. O que interessa, pois, não são os pormenores em si, mas a mensagem essencial ou, como se costuma dizer, a lição.

 

  • A importância da Palavra 

    Pode parecer quase uma ofensa informar o leitor que o tema geral da liturgia da palavra de hoje é a própria «Palavra de Deus», tal é a evidência do asserto, dedutível das leituras em si. Por um lado, pelo que se refere ao «papel» de Deus, a palavra é eficaz: opera sempre e, nesse sentido, não há nada que a possa tornar infecunda, por assim dizer. Esta é, no fundo, a mensagem da 1ª leitura, uma das mais belas páginas da segunda parte do livro do profeta Isaías. 

    Mas, por outro lado, também não deixa de ser verdade que, se há alguém que respeita «religiosamente» a liberdade do homem, é Deus. Por isso, não deixa de ser uma realidade o facto de que a Palavra de Deus, em atenção à liberdade do homem, pode ser rejeitada. Isso aconteceu durante toda a história do Povo de Deus e continua a suceder na história dos homens de hoje e de todos os tempos. Mas também pode acontecer - e acontece realmente - que, quando alguém não ouve a sua Palavra, Deus se dirija a outros que a façam frutificar abundantemente. Ela continua a ser eficaz, embora em outros «terrenos».

 

  • A Palavra é experiência de vida

   O Deus apresentado e representado na Bíblia não é um Deus inventado pelos filósofos, que devemos acolher vencidos pelo peso da razão. Pois bem: também a Palavra de Deus não é um conjunto de teorias filosóficas.

 

   Já no Antigo Testamento, a Palavra de Deus é, antes de mais, um facto, uma experiência de vida. Deus fala directamente a homens escolhidos e, por intermédio deles, a todo o povo, mas fala também no interior do coração. Com a sua Palavra (que, de alguma forma, é a exteriorização de si mesmo, ou seja, como que a revelação da sua essência), Deus vai formando um povo especial. Quando chegar a altura apropriada, Ele vai revelar-se ainda mais claramente, pois a sua Palavra irá tornar-se presente de maneira visível: «O Verbo (a Palavra) far-se-á carne», como dirá o evangelista S. João no Prólogo do seu evangelho (cf. Jo 1,14).

   Ainda no Antigo Testamento, esta Palavra é como que personificada na figura da Sabedoria. É uma palavra que actua, que opera, que se move com poder. É como uma espécie de personagem que se mete na vida das pessoas e só volta para a sua origem após ter cumprido a sua missão junto dos homens...

 

  • A força agregadora da Palavra 

    Na história do Povo de Israel, e também na história da Igreja, as épocas de renovação levaram sempre a um reencontro, digamos assim, com a escuta e com o confronto com a Palavra de Deus. Ou, melhor, a escuta dessa Palavra é que provoca essa renovação. É o que acontece também hoje. Também hoje, como no tempo dos profetas e como no tempo de Jesus, é a Palavra que convoca e reúne a Igreja à volta do Pai. E é pelo aprofundamento dessa Palavra que os cristãos tomam consciência de que formam a família de Deus. 

    Essa Palavra é eficaz. Mas é evidente que a sua eficácia não é automática. Prova disso temo-la na parábola do semeador contada por Jesus. E, bem vistas as coisas, esta é uma ideia que está também implícita no pequeno trecho da primeira leitura. O terreno tem que estar preparado para que a semente da Palavra produza frutos abundantes em nós. De resto, é isso que está implícito na frase de Jesus: «Felizes os que escutam a minha Palavra e a põem em prática» (cf. Lc 11,28).

 

  • Indiferença em relação à Palavra 

    A atitude de recusa da Palavra de Deus por parte das pessoas no tempo de Jesus tem termo de comparação nos tempos de hoje na atitude de indiferença por parte do homem moderno. Às vezes, os pastores, os pregadores e os missionários têm a impressão de estar a falar uma língua, senão estrangeira, pelo menos estranha. Dever-se-á à indiferença de quem os escuta? Sem dúvida, mas não me parece que seja só isso. Não quer dizer que a culpa seja necessariamente de quem escuta. Também é preciso aprimorar a arte de semear, para que se aproveite ao máximo a semente. 

    Os próprios cristãos terão, por vezes, a impressão que há um fosso intransponível entre aquilo que é a realidade de todos os dias e aquilo que lhes parece o «anacronismo» que lhes é anunciado nas assembleias eucarísticas. Ou seja, a Palavra de Deus como que lhes parece demasiado ligada a esquemas do passado, sem relação nenhuma com as exigências da vida presente.

    Tratar-se-á de desculpas para justificar um certo tipo de atitude de recusa perante a Palavra? Certamente é isso que se verifica em muitos casos, mas também temos que reconhecer que há um certo desfasamento entre a forma como a Palavra é anunciada e a vida quotidiana. É culpa da Palavra de Deus? Ou é só devido ao facto de o homem de hoje ainda não ter encontrado a correcta frequência de onda? Talvez encontremos na parábola do semeador alguma resposta a estas perguntas.

    De qualquer forma, no curso dos séculos, houve sempre falhas de sintonização e problemas de desfasamento. Sempre se insistiu (e isso é certamente uma coisa boa), mas quase exclusivamente (e isso é um mal) sobre o facto de que a Palavra é um «dado» que é preciso transmitir fielmente, como se faz com um depósito precioso. No entanto, não se insistiu bastante no facto de que a Palavra tem que ser «enterrada» lá bem na interioridade das pessoas para produzir alguma coisa, tem que ser semeada, que tem que ser assimilada e que (o que também é importante) nem sempre produz cem por um. Em suma, não se pode esquecer que, mesmo quando produz apenas trinta por um (ou mesmo menos do que isso), a Palavra de Deus já está a cumprir a sua missão; e que, talvez na próxima colheita, já seja possível obter sessenta por um; e que depois, em determinadas circunstâncias, chegue mesmo a produzir cem por um.

 

  • Mais que fonema, a Palavra é sinal

    É sabido que a linguagem humana não se confina ao código linguístico propriamente dito. Ou seja, a linguagem humana não é composta apenas de fonemas. Da linguagem humana fazem parte outros sinais não linguísticos, também chamados paralinguísticos, que levam a uma melhor compreensão daquilo que são os conceitos ou ideias que se querem transmitir. Sem entrar em questões complicadas de ordem semântica (que não vêm ao caso), baste-nos considerar que é possível a transmissão de mensagens (ou de pelo menos parte delas), mesmo quando o recetor não seja possuidor do código linguístico do emissor. Mas esse não é o ideal. 

    Pois bem, também estas noções são aplicáveis à Palavra de Deus, na medida em que a Palavra de Deus é mensagem de Deus, mas transmitida em linguagem humana. E, de há uns tempos a esta parte, tem-se compreendido melhor esta realidade. Tem-se descoberto, pouco a pouco, que o Deus da fé não se descobre apenas através da Palavra, mas também através de todos os sinais da natureza e dos eventos da história. Dizem os teólogos que a revelação de Deus é uma revelação histórica. E têm razão, porque nós não temos outra hipótese de ouvir essa Palavra a não ser inseridos na história. A vida vivida do povo de Deus é também terreno fértil para a manifestação de Deus.

 

  • A Palavra passada à vida

    Na práxis pastoral e na catequese, a experiência vivencial do homem vem sendo tomada cada vez mais como o terreno privilegiado em que a Palavra de Deus manifesta toda a sua riqueza e poder. E, como sempre, é também a Palavra de Deus que se adapta ao homem, na medida em que o homem é incapaz de lhe captar o sentido profundo todo duma vez.

    Por outras palavras, a «encarnação» da Palavra de Deus na vida do homem não é só um processo divino; é também um processo humano e, por isso, leva o seu tempo; como, de resto, qualquer outro tipo de aprendizagem ou «encarnação». Um dos efeitos da Palavra é provocar uma mudança de mentalidade, uma mudança de perspetiva, uma mudança da forma de ver o mundo. Mas seria irrealístico esperar que isso acontecesse dum momento para o outro, no espaço de um minuto, como que por encanto.

    A mensagem de Cristo deve iluminar a existência, mas vai seguir os «trâmites» ou processos naturais. Quer dizer, vai acontecer segundo a maneira de crescer do homem e de cada homem em concreto. É a mensagem de Deus que vai conferir à existência o seu significado, mas isso vai ser um processo gradual. De resto, só assim essa Palavra ressoa profundamente no interior da experiência do homem; não por culpa ou incapacidade da Palavra em si, mas por incapacidade do receptor que é o homem.

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CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA
DEI VERBUM 
SOBRE A REVELAÇÃO DIVINA

PROÉMIO

 
Intenção do Concílio

1. O sagrado Concilio, ouvindo religiosamente a Palavra de Deus proclamando-a com confiança, faz suas as palavras de S. João: «anunciamo-vos a vida eterna, que estava junto do Pai e nos apareceu: anunciamo-vos o que vimos e ouvimos, para que também vós vivais em comunhão connosco, e a nossa comunhão seja com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo" (1 Jo. 1, 2-3). Por isso, segundo os Concílios Tridentino e Vaticano I, entende propor a genuína doutrina sobre a Revelação divina e a sua transmissão, para que o mundo inteiro, ouvindo, acredite na mensagem da salvação, acreditando espere, e esperando ame (1).

  

CAPÍTULO I

A REVELAÇÃO EM SI MESMA

Natureza e objecto da revelação

2. Aprouve a Deus. na sua bondade e sabedoria, revelar-se a Si mesmo e dar a conhecer o mistério da sua vontade (cfr. Ef. 1,9), segundo o qual os homens, por meio de Cristo, Verbo encarnado, têm acesso ao Pai no Espírito Santo e se tornam participantes da natureza divina (cfr. Ef. 2,18; 2 Ped. 1,4). Em virtude desta revelação, Deus invisível (cfr. Col. 1,15; 1 Tim. 1,17), na riqueza do seu amor fala aos homens como amigos (cfr. Ex. 33, 11; Jo. 15,1415) e convive com eles (cfr. Bar. 3,38), para os convidar e admitir à comunhão com Ele. Esta «economia» da revelação realiza-se por meio de acções e palavras ìntimamente relacionadas entre si, de tal maneira que as obras, realizadas por Deus na história da salvação, manifestam e confirmam a doutrina e as realidades significadas pelas palavras; e as palavras, por sua vez, declaram as obras e esclarecem o mistério nelas contido. Porém, a verdade profunda tanto a respeito de Deus como a respeito da salvação dos homens, manifesta-se-nos, por esta revelação, em Cristo, que é, simultâneamente, o mediador e a plenitude de toda a revelação (2).

Preparação da revelação evangélica

3. Deus, criando e conservando todas as coisas pelo Verbo (cfr. Jo. 1,3), oferece aos homens um testemunho perene de Si mesmo na criação (cfr. Rom. 1, 1-20) e, além disso, decidindo abrir o caminho da salvação sobrenatural, manifestou-se a Si mesmo, desde o princípio, aos nossos primeiros pais. Depois da sua queda, com a promessa de redenção, deu-lhes a esperança da salvação (cfr. Gén. 3,15), e cuidou contìnuamente do género humano, para dar a vida eterna a todos aqueles que, perseverando na prática das boas obras, procuram a salvação (cfr. Rom. 2, 6-7). No devido tempo chamou Abraão, para fazer dele pai dum grande povo (cfr. Gén. 12,2), povo que, depois dos patriarcas, ele instruiu, por meio de Moisés e dos profetas, para que o reconhecessem como único Deus vivo e verdadeiro, pai providente e juiz justo, e para que esperassem o Salvador prometido; assim preparou Deus através dos tempos o caminho ao Evangelho.

Consumação e plenitude da revelação em Cristo

4. Depois de ter falado muitas vezes e de muitos modos pelos profetas, falou-nos Deus nestes nossos dias, que são os últimos, através de Seu Filho (Heb. 1, 1-2). Com efeito, enviou o Seu Filho, isto é, o Verbo eterno, que ilumina todos os homens, para habitar entre os homens e manifestar-lhes a vida íntima de Deus (cfr. Jo. 1, 1-18). Jesus Cristo, Verbo feito carne, enviado «como homem para os homens» (3), «fala, portanto, as palavras de Deus» (Jo. 3,34) e consuma a obra de salvação que o Pai lhe mandou realizar (cfr. Jo. 5,36; 17,4). Por isso, Ele, vê-lo a Ele é ver o Pai (cfr. Jo. 14,9), com toda a sua presença e manifestação da sua pessoa, com palavras e obras, sinais e milagres, e sobretudo com a sua morte e gloriosa ressurreição, enfim, com o envio do Espírito de verdade, completa totalmente e confirma com o testemunho divino a revelação, a saber, que Deus está connosco para nos libertar das trevas do pecado e da morte e para nos ressuscitar para a vida eterna.

Portanto, a economia cristã, como nova e definitiva aliança, jamais passará, e não se há-de esperar nenhuma outra revelação pública antes da gloriosa manifestação de nosso Senhor Jesus Cristo (cfr. 1 Tim. 6,14; Tit. 2,13).

Aceitação da revelação pela fé

5. A Deus que revela é devida a «obediência da fé» (Rom. 16,26; cfr. Rom. 1,5; 2 Cor. 10, 5-6); pela fé, o homem entrega-se total e livremente a Deus oferecendo «a Deus revelador o obséquio pleno da inteligência e da vontade» (4) e prestando voluntário assentimento à Sua revelação. Para prestar esta adesão da fé, são necessários a prévia e concomitante ajuda da graça divina e os interiores auxílios do Espírito Santo, o qual move e converte a Deus o coração, abre os olhos do entendimento, e dá «a todos a suavidade em aceitar e crer a verdade» (5). Para que a compreensão da revelação seja sempre mais profunda, o mesmo Espírito Santo aperfeiçoa sem cessar a fé mediante os seus dons

Necessidade da revelação

6. Pela revelação divina quis Deus manifestar e comunicar-se a Si mesmo e os decretos eternos da Sua vontade a respeito da salvação dos homens, «para os fazer participar dos bens divinos, que superam absolutamente a capacidade da inteligência humana»(6).

O sagrado Concílio professa que Deus, princípio e fim de todas as coisas, se pode conhecer com certeza pela luz natural da razão a partir das criaturas» (cfr. Rom. 1,20); mas ensina também que deve atribuir-se à Sua revelação «poderem todos os homens conhecer com facilidade, firme certeza e sem mistura de erro aquilo que nas coisas divinas não é inacessível à razão humana, mesmo na presente condição do género humano» (7).

CAPÍTULO II

A TRANSMISSÃO DA REVELAÇÃO DIVINA


Os apóstolos e seus sucessores, transmissores do Evangelho

7. Deus dispôs amorosamente que permanecesse integro e fosse transmitido a todas as gerações tudo quanto tinha revelado para salvação de todos os povos. Por isso, Cristo Senhor, em quem toda a revelação do Deus altíssimo se consuma (cfr. 2 Cor. 1,20; 3,16-4,6), mandou aos Apóstolos que pregassem a todos, como fonte de toda a verdade salutar e de toda a disciplina de costumes, o Evangelho prometido antes pelos profetas e por Ele cumprido e promulgado pessoalmente (1), comunicando-lhes assim os dons divinos. Isto foi realizado com fidelidade, tanto pelos Apóstolos que, na sua pregação oral, exemplos e instituições, transmitiram aquilo que tinham recebido dos lábios, trato e obras de Cristo, e o que tinham aprendido por inspiração do Espírito Santo, como por aqueles Apóstolos e varões apostólicos que, sob a inspiração do mesmo Espírito Santo, escreveram a mensagem da salvação (2).

Porém, para que o Evangelho fosse perenemente conservado integro e vivo na Igreja, os Apóstolos deixaram os Bispos como seus sucessores, «entregando lhes o seu próprio ofício de magistério» (3). Portanto, esta sagrada Tradição e a Sagrada Escritura dos dois Testamentos são como um espelho no qual a Igreja peregrina na terra contempla a Deus, de quem tudo recebe, até ser conduzida a vê-lo face a face tal qual Ele é (cfr. 1 Jo. 3,2).

A sagrada Tradição

8. E assim, a pregação apostólica, que se exprime de modo especial nos livros inspirados, devia conservar-se, por uma sucessão contínua, até à consumação dos tempos. Por isso, os Apóstolos, transmitindo o que eles mesmos receberam, advertem os fiéis a que observem as tradições que tinham aprendido quer por palavras quer por escrito (cfr. 2 Tess. 2,15), e a que lutem pela fé recebida dama vez para sempre (cfr. Jud. 3)(4). Ora, o que foi transmitido pelos Apóstolos, abrange tudo quanto contribui para a vida santa do Povo de Deus e para o aumento da sua fé; e assim a Igreja, na sua doutrina, vida e culto, perpetua e transmite a todas as gerações tudo aquilo que ela é e tudo quanto acredita.

Esta tradição apostólica progride na Igreja sob a assistência do Espírito Santo (5). Com efeito, progride a percepção tanto das coisas como das palavras transmitidas, quer mercê da contemplação e estudo dos crentes, que as meditam no seu coração (cfr. Lc. 2, 19. 51), quer mercê da íntima inteligência que experimentam das coisas espirituais, quer mercê da pregação daqueles que, com a sucessão do episcopado, receberam o carisma da verdade. Isto é, a Igreja, no decurso dos séculos, tende contìnuamente para a plenitude da verdade divina, até que nela se realizem as palavras de Deus.

Afirmações dos santos Padres testemunham a presença vivificadora desta Tradição, cujas riquezas entram na prática e na vida da Igreja crente e orante. Mediante a mesma Tradição, conhece a Igreja o cânon inteiro dos livros sagrados, e a própria Sagrada Escritura entende-se nela mais profundamente e torna-se incessantemente operante; e assim, Deus, que outrora falou, dialoga sem interrupção com a esposa do seu amado Filho; e o Espírito Santo - por quem ressoa a voz do Evangelho na Igreja e, pela Igreja, no mundo - introduz os crentes na verdade plena e faz com que a palavra de Cristo neles habite em toda a sua riqueza (cfr. Col. 3,16).

Relação entre a sagrada Tradição e a Sagrada Escritura

9. A sagrada Tradição, portanto, e a Sagrada Escritura estão ìntimamente unidas e compenetradas entre si. Com efeito, derivando ambas da mesma fonte divina, fazem como que uma coisa só e tendem ao mesmo fim. A Sagrada Escritura é a palavra de Deus enquanto foi escrita por inspiração do Espírito Santo; a sagrada Tradição, por sua vez, transmite integralmente aos sucessores dos Apóstolos a palavra de Deus confiada por Cristo Senhor e pelo Espírito Santo aos Apóstolos, para que eles, com a luz do Espírito de verdade, a conservem, a exponham e a difundam fielmente na sua pregação; donde resulta assim que a Igreja não tira só da Sagrada Escritura a sua certeza a respeito de todas as coisas reveladas. Por isso, ambas devem ser recebidas e veneradas com igual espírito de piedade e reverência (6).

Relação de uma e outra com a Igreja e com o Magistério eclesiástico

10. A sagrada Tradição e a Sagrada Escritura constituem um só depósito sagrado da palavra de Deus, confiado à Igreja; aderindo a este, todo o Povo santo persevera unido aos seus pastores na doutrina dos Apóstolos e na comunhão, na fracção do pão e na oração (cfr. Act. 2,42 gr.), de tal modo que, na conservação, actuação e profissão da fé transmitida, haja uma especial concordância dos pastores e dos fiéis (7).

Porém, o encargo de interpretar autênticamente a palavra de Deus escrita ou contida na Tradição (8), foi confiado só ao magistério vivo da Igreja (9), cuja autoridade é exercida em nome de Jesus Cristo. Este magistério não está acima da palavra de Deus, mas sim ao seu serviço, ensinando apenas o que foi transmitido, enquanto, por mandato divino e com a assistência do Espírito Santo, a ouve piamente, a guarda religiosamente e a expõe fielmente, haurindo deste depósito único da fé tudo quanto propõe à fé como divinamente revelado.

É claro, portanto, que a sagrada Tradição, a sagrada Escritura e o magistério da Igreja, segundo o sapientíssimo desígnio de Deus, de tal maneira se unem e se associam que um sem os outros não se mantém, e todos juntos, cada um a seu modo, sob a acção do mesmo Espírito Santo, contribuem eficazmente para a salvação das almas.

CAPÍTULO III

A INSPIRAÇÃO DIVINA DA SAGRADA ESCRITURA
E A SUA INTERPRETAÇÃO


Natureza da inspiração e verdade da Sagrada Escritura

11. As coisas reveladas por Deus, contidas e manifestadas na Sagrada Escritura, foram escritas por inspiração do Espírito Santo. Com efeito, a santa mãe Igreja, segundo a fé apostólica, considera como santos e canónicos os livros inteiros do Antigo e do Novo Testamento com todas as suas partes, porque, escritos por inspiração do Espírito Santo (cfr. Jo. 20,31; 2 Tim. 3,16; 2 Ped. 1, 19-21; 3, 15-16), têm Deus por autor, e como tais foram confiados à própria Igreja (1). Todavia, para escrever os livros sagrados, Deus escolheu e serviu-se de homens na posse das suas faculdades e capacidades (2), para que, agindo Ele neles e por eles (3), pusessem por escrito, como verdadeiros autores, tudo aquilo e só aquilo que Ele queria (4).

E assim, como tudo quanto afirmam os autores inspirados ou hagiógrafos deve ser tido como afirmado pelo Espírito Santo, por isso mesmo se deve acreditar que os livros da Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro a verdade que Deus, para nossa salvação, quis que fosse consignada nas sagradas Letras (5). Por isso, «toda a Escritura é divinamente inspirada e útil para ensinar, para corrigir, para instruir na justiça: para que o homem de Deus seja perfeito, experimentado em todas as obras boas» ( Tim. 3, 7-17 gr.).

Interpretação da Sagrada Escritura

12. Como, porém, Deus na Sagrada Escritura falou por meio dos homens e à maneira humana (6), o intérprete da Sagrada Escritura, para saber o que Ele quis comunicar-nos, deve investigar com atenção o que os hagiógrafos realmente quiseram significar e que aprouve a Deus manifestar por meio das suas palavras.

Para descobrir a intenção dos hagiógrafos, devem ser tidos também em conta, entre outras coisas, os «géneros literários». Com efeito, a verdade é proposta e expressa de modos diversos, segundo se trata de géneros histéricos, proféticos, poéticos ou outros. Importa, além disso, que o intérprete busque o sentido que o hagiógrafo em determinadas circunstâncias, segundo as condições do seu tempo e da sua cultura, pretendeu exprimir e de facto exprimiu servindo se os géneros literários então usados (7). Com efeito, para entender rectamente o que autor sagrado quis afirmar, deve atender-se convenientemente, quer aos modos nativos de sentir, dizer ou narrar em uso nos tempos do hagiógrafo, quer àqueles que costumavam empregar-se frequentemente nas relações entre os homens de então (8).

Mas, como a Sagrada Escritura deve ser lida e interpretada com o mesmo espírito com que foi escrita (9), não menos atenção se deve dar, na investigação do recto sentido dos textos sagrados, ao contexto e à unidade de toda a Escritura, tendo em conta a Tradição viva de toda a Igreja e a analogia da fé. Cabe aos exegetas trabalhar, de harmonia com estas regras, por entender e expor mais profundamente o sentido da Escritura, para que, mercê deste estudo de algum modo preparatório, amadureça o juízo da Igreja. Com efeito, tudo quanto diz respeito à interpretação da Escritura, está sujeito ao juízo último da Igreja, que tem o divino mandato e o ministério de guardar e interpretar a palavra de Deus (10).

Condescendência de Deus

13. Portanto, na Sagrada Escritura, salvas sempre a verdade e a santidade de Deus, manifesta-se a admirável «condescendência» da eterna sabedoria, «para conhecermos a inefável benignidade de Deus e com quanta acomodação Ele falou, tomando providência e cuidado da nossa natureza» (11). As palavras de Deus com efeito, expressas por línguas humanas, tornaram-se ìntimamente semelhantes à linguagem humana, como outrora o Verbo do eterno Pai se assemelhou aos homens tomando a carne da fraqueza humana. 

CAPÍTULO IV

O ANTIGO TESTAMENTO

A história da salvação consignada nos livros do Antigo Testamento

14. Deus amantíssimo, desejando e preparando com solicitude a salvação de todo o género humano, escolheu por especial providência um povo a quem confiar as suas promessas. Tendo estabelecido aliança com Abraão (cfr. Gén. 15,18), e com o povo de Israel por meio de Moisés (cfr. Ex. 24,8), revelou-se ao Povo escolhido como único Deus verdadeiro e vivo, em palavras e obras, de tal modo que Israel pudesse conhecer por experiência os planos de Deus sobre os homens, os compreendesse cada vez mais profunda e claramente, ouvindo o mesmo Deus falar por boca dos profetas, e os difundisse mais amplamente entre os homens (cfr. Salm. 21, 28-29; 95, 1-3; Is. 2, 1-4; Jer. 3,17). A «economia» da salvação de antemão anunciada, narrada e explicada pelos autores sagrados, encontra-se nos livros do Antigo Testamento como verdadeira palavra de Deus. Por isso, estes livros divinamente inspirados conservam um valor perene: «Tudo quanto está escrito, para nossa instrução está escrito, para que, por meio da paciência e consolação que nos vem da Escritura, tenhamos esperança» (Rom. 15,4).

Importância do Antigo Testamento para os cristãos

15. A «economia» do Antigo Testamento destinava-se sobretudo a preparar, a anunciar profèticamente (cfr. Lc. 24,44; Jo. 5,39; 1 Ped. 1,10) e a simbolizar com várias figuras (cfr. 1 Cor. 10,11) o advento de Cristo, redentor universal, e o do reino messiânico. Mas os livros do Antigo Testamento, segundo a condição do género humano antes do tempo da salvação estabelecida por Cristo, manifestam a todos o conhecimento de Deus e do homem, e o modo com que Deus justo e misericordioso trata os homens. Tais livros, apesar de conterem também coisas imperfeitas e transitórias, revelam, contudo, a verdadeira pedagogia divina (1). Por isso, os fieis devem receber com devoção estes livros que exprimem o vivo sentido de Deus, nos quais se encontram sublimes doutrinas a respeito de Deus, uma sabedoria salutar a respeito da vida humana, bem como admiráveis tesouros de preces, nos quais, finalmente, está latente o mistério da nossa salvação.

Unidade de ambos ao Testamentos

16. Foi por isso que Deus, inspirador e autor dos livros dos dois Testamentos, dispôs tão sàbiamente as coisas, que o Novo Testamento está latente no Antigo, e o Antigo está patente no Novo (2). Pois, apesar de Cristo ter alicerçado à nova Aliança no seu sangue (cfr. Lc. 22,20; 1 Cor. 11,25), os livros do Antigo Testamento, ao serem integralmente assumidos na pregação evangélica (3) adquirem e manifestam a sua plena significação no Novo Testamento (cfr. Mt. 5,17; Lc. 24,27; Rom. 16, 25-26; 2 Cor. 3, 1416), que por sua vez iluminam e explicam.

CAPÍTULO V

O NOVO TESTAMENTO

Excelência do Novo Testamento

17. A palavra de Deus, que é virtude de Deus para a salvação de todos os crentes (cfr. Rom. 1,16), apresenta-se e manifesta o seu poder dum modo eminente nos escritos do Novo Testamento. Com efeito, quando chegou a plenitude dos tempos (cfr. Gál. 4,4), o Verbo fez-se carne e habitou entre nós cheio de graça e verdade (cfr. Jo. 1,14). Cristo estabeleceu o reino de Deus na terra, manifestou com obras e palavras o Pai e a Si mesmo, e levou a cabo a Sua obra com a Sua morte, ressurreição, e gloriosa ascensão, e com o envio do Espírito Santo. Sendo levantado da terra, atrai todos a si (cfr. Jo. 12,32 gr.), Ele que é o único que tem palavras de vida eterna (cfr. Jo. 6,68). Este mistério, porém, não foi descoberto a outras gerações como foi agora revelado aos seus santos Apóstolos e aos profetas no Espírito Santo (cfr. Ef. 3, 46 gr.) para que pregassem o Evangelho, e despertassem a fé em Jesus Cristo e Senhor, e congregassem a Igreja. Os escritos do Novo Testamento são um testemunho perene e divino de todas estas coisas.

Origem apostólica dos Evangelhos

18. Ninguém ignora que entre todas as Escrituras, mesmo do Novo Testamento, os Evangelhos têm o primeiro lugar, enquanto são o principal testemunho da vida e doutrina do Verbo encarnado, nosso salvador.

A Igreja defendeu e defende sempre e em toda a parte a origem apostólica dos quatro Evangelhos. Com efeito, aquelas coisas que os Apóstolos, por ordem de Cristo, pregaram, foram depois, por inspiração do Espírito Santo, transmitidas por escrito por eles mesmos e por varões apostólicos como fundamento da fé, ou seja, o Evangelho quadriforme, segundo Mateus, Marcos, Lucas e João (1).

Carácter histórico dos Evangelhos

19. A santa mãe Igreja defendeu e defende firme e constantemente que estes quatro Evangelhos, cuja historicidade afirma sem hesitação, transmitem fielmente as coisas que Jesus, Filho de Deus. durante a sua vida terrena, realmente operou e ensinou para salvação eterna dos homens, até ao dia em que subiu ao céu (cfr. Act. 1. 1-2). Na verdade, após a ascensão do Senhor, os Apóstolos transmitiram aos seus ouvintes, com aquela compreensão mais plena de que eles, instruídos pelos acontecimentos gloriosos de Cristo e iluminados pelo Espírito de verdade (2) gozavam (3), as coisas que Ele tinha dito e feito. Os autores sagrados, porém, escreveram os quatro Evangelhos, escolhendo algumas coisas entre as muitas transmitidas por palavra ou por escrito, sintetizando umas, desenvolvendo outras, segundo o estado das igrejas, conservando, finalmente, o carácter de pregação, mas sempre de maneira a comunicar-nos coisas autênticas e verdadeiras acerca de Jesus (4). Com efeito, quer relatassem aquilo de que se lembravam e recordavam, quer se baseassem no testemunho daqueles «que desde o princípio foram testemunhas oculares e ministros da palavra», fizeram-no sempre com intenção de que conheçamos a «verdade» das coisas a respeito das quais fomos instruídos (cfr. Lc. 1, 2-4).

Os restantes escritos do Novo Testamento

20. O cânon do Novo Testamento contém igualmente além dos quatro Evangelhos, as Epístolas de S. Paulo e outros escritos apostólicos redigidos por inspiração do Espírito Santo, com os quais, segundo o plano da sabedoria divina, é confirmado o que diz respeito a Cristo Senhor, é explicada mais e mais a sua genuína doutrina, é pregada a virtude salvadora da obra divina de Cristo, são narrados os começos da Igreja e a sua admirável difusão, e é anunciada a sua consumação gloriosa.

Com efeito, o Senhor Jesus assistiu os seus Apóstolos como tinha prometido (cfr. Mt. 28,20) e enviou-lhes o Espírito consolador que os devia introduzir na plenitude da verdade (cfr. Jo. 16,13).

CAPÍTULO VI

A SAGRADA ESCRITURA NA VIDA DA IGREJA

A Igreja venera as Sagradas Escrituras

21. A Igreja venerou sempre as divinas Escrituras como venera o próprio Corpo do Senhor, não deixando jamais, sobretudo na sagrada Liturgia, de tomar e distribuir aos fiéis o pão da vida, quer da mesa da palavra de Deus quer da do Corpo de Cristo. Sempre as considerou, e continua a considerar, juntamente com a sagrada Tradição, como regra suprema da sua fé; elas, com efeito, inspiradas como são por Deus, e exaradas por escrito duma vez para sempre, continuam a dar-nos imutàvelmente a palavra do próprio Deus, e fazem ouvir a voz do Espírito Santo através das palavras dos profetas e dos Apóstolos. É preciso, pois, que toda a pregação eclesiástica, assim como a própria religião cristã, seja alimentada e regida pela Sagrada Escritura. Com efeito, nos livros sagrados, o Pai que está nos céus vem amorosamente ao encontro de Seus filhos, a conversar com eles; e é tão grande a força e a virtude da palavra de Deus que se torna o apoio vigoroso da Igreja, solidez da fé para os filhos da Igreja, alimento da alma, fonte pura e perene de vida espiritual. Por isso se devem aplicar por excelência à Sagrada Escritura as palavras: «A palavra de Deus é viva e eficaz» (Hebr. 4,12), «capaz de edificar e dar a herança a todos os santificados», (Act. 20,32; cfr. 1 Tess. 2,13).

Traduções da Sagrada Escritura

22. É preciso que os fiéis tenham acesso patente à Sagrada Escritura. Por esta razão, a Igreja logo desde os seus começos fez sua aquela tradução grega antiquíssima do Antigo Testamento chamada dos Setenta; e sempre tem em grande apreço as outras traduções, quer orientais quer latinas, sobretudo a chamada Vulgata. Mas, visto que a palavra de Deus deve estar sempre acessível a todos, a Igreja procura com solicitude maternal que se façam traduções aptas e fiéis nas várias línguas, sobretudo a partir dos textos originais dos livros sagrados. Se porém, segundo a oportunidade e com a aprovação da autoridade da Igreja, essas traduções se fizerem em colaboração com os irmãos separados, poderão ser usadas por todos os cristãos.

Investigação Bíblica

23. A esposa do Verbo encarnado, isto é, a Igreja, ensinada pelo Espírito Santo, esforça-se por conseguir uma inteligência cada vez mais profunda da Sagrada Escritura, para poder alimentar contìnuamente os seus filhos com os divinos ensinamentos; por isso, vai fomentando também convenientemente o estudo dos santos Padres do Oriente e do Ocidente, bem como das sagradas liturgias. É preciso, porém, que os exegetas católicos e os demais estudiosos da sagrada teologia, trabalhem em íntima colaboração de esforços, para que, sob a vigilância do sagrado magistério, lançando mão de meios aptos, estudem e expliquem as divinas Letras de modo que o maior número possível de ministros da palavra de Deus possa oferecer com fruto ao Povo de Deus o alimento das Escrituras, que ilumine o espírito, robusteça as vontades, e inflame os corações dos homens no amor de Deus (1). O sagrado Concilio encoraja os filhos da Igreja que cultivam as ciências bíblicas para que continuem a realizar com todo o empenho, segundo o sentir da Igreja, a empresa felizmente começada, renovando constantemente as suas forças (2).

Importância da Sagrada Escritura para a Teologia

24. A sagrada Teologia apoia-se, como em seu fundamento perene, na palavra de Deus escrita e na sagrada Tradição, e nela se consolida firmemente e sem cessar se rejuvenesce, investigando, à luz da fé, toda a verdade contida no mistério de Cristo. As Sagradas Escrituras contêm a palavra de Deus, e, pelo facto de serem inspiradas, são verdadeiramente a palavra de Deus; e por isso, o estudo destes sagrados livros deve ser como que a alma da sagrada teologia (3). Também o ministério da palavra, isto é, a pregação pastoral, a catequese, e toda a espécie de instrução cristã, na qual a homilia litúrgica deve ter um lugar principal, com proveito se alimenta e santamente se revigora com a palavra da Escritura.

Leitura da Sagrada Escritura

25. É necessário, por isso, que todos os clérigos e sobretudo os sacerdotes de Cristo e outros que, como os diáconos e os catequistas, se consagram legìtimamente ao ministério da palavra, mantenham um contacto íntimo com as Escrituras, mediante a leitura assídua e o estudo aturado, a fim de que nenhum deles se torne «pregador vão e superficial da palavra de Deus. por não a ouvir de dentro» (4), tendo, como têm, a obrigação de comunicar aos fiéis que lhes estão confiados as grandíssimas riquezas da palavra divina, sobretudo na sagrada Liturgia. Do mesmo modo, o sagrado Concílio exorta com ardor e insistência todos os fiéis, mormente os religiosos, a que aprendam «a sublime ciência de Jesus Cristo» (Fil. 3,8) com a leitura frequente das divinas Escrituras, porque «a ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo» (5). Debrucem-se, pois, gostosamente sobre o texto sagrado, quer através da sagrada Liturgia, rica de palavras divinas, quer pela leitura espiritual, quer por outros meios que se vão espalhando tão louvàvelmente por toda a parte, com a aprovação e estímulo dos pastores da Igreja. Lembrem-se, porém, que a leitura da Sagrada Escritura deve ser acompanhada de oração para que seja possível o diálogo entre Deus e o homem; porque «a Ele falamos, quando rezamos, a Ele ouvimos, quando lemos os divinos oráculos» (6).

Compete aos sagrados pastores «depositários da doutrina apostólica» (7), ensinar oportunamente os fiéis que lhes foram confiados no uso recto dos livros divinos, de modo particular do Novo Testamento, e sobretudo dos Evangelhos. E isto por meio de traduções dos textos sagrados, que devem ser acompanhadas das explicações necessárias e verdadeiramente suficientes, para que os filhos da Igreja se familiarizem dum modo seguro e. útil com a Sagrada Escritura, e se penetrem do seu espírito.

Além disso, façam-se edições da Sagrada Escritura, munidas das convenientes anotações, para uso também dos não cristãos, e adaptadas às suas condições; e tanto os pastores de almas como os cristãos de qualquer estado procuram difundi-las com zelo e prudência.

Influência e importância da renovação escriturística

 26. Deste modo, pois, com a leitura e estudo dos livros sagrados, «a palavra de Deus se difunda e resplandeça (2 Tess. 3,1), e o tesouro da revelação confiado à Igreja encha cada vez mais os corações dos homens. Assim como a vida da Igreja cresce com a assídua frequência do mistério eucarístico, assim também é lícito esperar um novo impulso de vida espiritual, se fizermos crescer a veneração pela palavra de Deus, que «permanece para sempre» (Is. 40,8; cfr. l Pedr. 1, 23-25).

Roma, 18 de Novembro de 1965

PAPA PAULO VI

Notas

1. Cfr. S. Agostinho, De catechizandis rudibus, c. IV, 8: PL 40, 316.

2. Cfr. Mt. 11,27; Jo. 1,14 e 17; 14,6; 17, 1-3; 2 Cor. 3,16 e 4,6; Ef. 1, 3-14.

3. Epist. ad Diognetum, c. VII, 4: Funk, Patres Apostolici, I, p. 403.

4. Conc. Vat. I, Const. dogmatica De fide catholica, Dei Filius, cap. 3: Denz. 1789 (3008).

5. Conc. Araus. II, can. 7: Denz, 180 (377); Conc. Vat. I, 1. c.: Denz. 1791 (3010).

6. Conc. Vat. I, Const. dogmatica De fide catholica, Dei Filius, cap. 2 Denz. 1786 (3005).

7. Ibid.: Denz. 1785 e 1786 (3004 e 3005).

Capítulo II

1. Cfr. Mt. 28, 19-20 e Mc. 16,15; Concilio Tridentino decr. De canonicis Scripturis: Denz. 783 (1501).

2. Cfr. Concílio Tridentino, I. c.; Concílio Vat I, sess. III, Const. dogmatica De fide catholica, Dei Filius, cap. 2. Denz. 1787 (3006).

3. S. Ireneu, Adv. Haer. III, 3, 1: PG 7, 848: Harvey, 2, p. 9.

4. Cfr. II Concílio Niceno, Denz. 303 (602); IV Concilio Constantinopolitano, sess. X, can. 1: Denz. 336 (650-652).

5. Cfr. Concílio Vat. I, Const. dogm. De fide catholica, Dei Filius, cap. 4: Denz. 1800 (3020).

6. Cfr. Concílio Tridentino, Decr. De canonicis scripturis: Denz. 783 (1501).

7. Cfr. Pio XII, Const. apost. Munificentissimus Deus, 1 nov. 1950: AAS 42 (1950) 756; conforme as palavras de S. Cipriano, Epist. 66,8: CSEL, 3,2, 733: «A Igreja e o povo unido ao sacerdote e o rebanho unido ao seu pastor».

8. Cfr. Concilio Vat. I, Const. dogmatica De fide catholica, Dei Filius, cap. 3: Denz. 1792 (3011).

9. Cfr. Pio XII, Enciclica Humani generis, 12 ago. 1950: AAS 42 (1950) 568-569: Denz. 2314 (3886).

Capítulo III

1. Cfr. Conc. Vat. I, Const. dogm. de fide cath., Dei Filius, cap. 2: Denz. 1787 (3006). Denz. da Comissão Biblica, 18 jun. 1915: Denz. 2180 (3629) ; EB 420. Santo Officio, Epist.; 22 dez. 1923: EB 499.

2. Cfr. Pio XII, Encíclica Divino afflante Spiritu, 30 set. 1944: AAS 35 (1943) 314; EB 556.

3. Em o por o homem: cfr. Hebr. 1,1 e 4,7 (Em); 2 Sam. 23,2; Mt. 1,22 e passim (por); Conc. Vat. I: schema de doctr. cath., nota 9: Coll. Lac. VII, 522.

4. Leão XIII, Encíclica Providentissimus Deus, 18 nov. 1893: Denz. 1952 (3293) EB 125.

5. Cfr. S. Agostinho, De Gen. ad Litt. 2, 9, 20: PL 34, 270-271; CSEL 28, 1, 46-47 e Epist. 82, 3: PL 33, 277: CSEL 34, 2, p. 354.—S. Tomás, De Ver. q. 12, a. 2 c. —Conc. de Trento, decr. De canonicis Scripturis: Denz. 783 (1501) —Ledo XIII, Enc. Providentissimus: EB 121, 124, 126-127—Pio XII, Enc. Divino afflante Spiritu: EB 539.

6. S. Agostinho, De civ. Dei, XVII, 6, 2: PL 41, 537: CSEL XL 2, 228.

7. S. Agostinho, De doct. christ., III, 18, 26: PL 34, 75-76; CSEL 80, 95.

8. Pio XII, 1. c.: Denz. 2294 (3829-3830); EB 557-562.

9. Cfr. Bento XV, Enc. Spiritus Paraclitus, 15 set. 1920: EB 469.- S. Jerónimo, In Gal., 5, 19-21: PL 26, 417 A.

10. Cfr. Conc. Vat. I, Const. dogm. De fide catholica, Dei Filius, cap. 2: Denz. 1788 (3007).

11. S. João Crisóstomo, In Gen. 3,8 (hom. 17,1): PG 53, 134. «Acomodação», em grego synkatábasis.

Capítulo IV

1. Pio XI, Enc. Mit brennender Sorge, 14 mar. 1937: AAS 29 (1937) 151.

2. S. Agostinho, Quaest. in Hept. 2, 73: PL 34, 623.

3. S. Ireneu, Adv.: Haer. III, 21, 3: PG 7, 950: ( = 25, 1: Harvey 2, p. 115). S. Cirilo de Jerusalém, Caech. 4, 35: PG 33, 497, Teodoro de Mopsuesta, In Soph. 1, 4-6: PG 66, 452 D-453 A.

Capítulo V

1. Cfr. S, Ireneu, Adv. Haer. III, 11, 8: PG. 7, 885; ed. Sagnard, p. 194.

2. Cfr. Jo. 14,26; 16,13,

3. Cfr. Jo. 2,22; 12,16; de acordo com 14,26; 16, 12-13; 7,39.

4. Cfr. Instrução Sancta Mater Ecclesia, da Pontifícia Comissão Bíblica: AAS 56 (1964) 715.

Capítulo VI

1. Cfr. Pio XII, Enc. Divino afflante, 30. set. 1943: EB 551, 553, 567. — Pontifícia Comissão Bíblica, Instructio de S. Scriptura in Clericorum seminariis et Religiosorum Collegiis recte docenda, 13 maio 1950: AAS 42 (1950) 495-505.

2. Cfr. Pio XII, 1. c.: EB 569.

3. Cfr. Leão XIII, Enc. Providentissimus Deus: EB 114; Bento XV, Enc., Spiritus Paraclitus, 15. set. 1920: EB 483.

4. S. Agostinho, Serm. 179, 1: PL 38, 966.

5. S. Jerónimo, Comm. in Is. Prol.: PL 24, 17. — Cfr. Bento XV, Enc. Spiritus Paraclitus: EB 475-480; Pio XII, Enc. Divino afflante: EB 544.

6. S. Ambrósio, De officiis ministrorum I, 20, 88: PL 16, 50.

7. S. Ireneu, Adv. Haer. IV, 32, 1: PG 7, 1071; ( = 49, 2), Harvey, 2, p. 255.

 

 

 

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Veneráveis Irmãos no episcopado e no sacerdócio,
Caríssimos Irmãos e Irmãs!

  1. O dia do Senhor — como foi definido o domingo, desde os tempos apostólicos —,(1) mereceu sempre, na história da Igreja, uma consideração privilegiada devido à sua estreita conexão com o próprio núcleo do mistério cristão. O domingo, de facto, recorda, no ritmo semanal do tempo, o dia da ressurreição de Cristo. É a Páscoa da semana, na qual se celebra a vitória de Cristo sobre o pecado e a morte, o cumprimento n'Ele da primeira criação e o início da « nova criação » (cf. 2 Cor 5,17). É o dia da evocação adorante e grata do primeiro dia do mundo e, ao mesmo tempo, da prefiguração, vivida na esperança, do « último dia », quando Cristo vier na glória (cf. Act 1,11; 1 Tes 4,13-17) e renovar todas as coisas (cf. Ap 21,5).

   Ao domingo, portanto, aplica-se, com muito acerto, a exclamação do Salmista: « Este é o dia que Senhor fez: exultemos e cantemos de alegria » (118 [117], 24). Este convite à alegria, que a liturgia de Páscoa assume como próprio, traz em si o sinal daquele alvoroço que se apoderou das mulheres — elas que tinham assistido à crucifixão de Cristo — quando, dirigindo-se ao sepulcro « muito cedo, no primeiro dia depois di sábado » (Mc 16,2), o encontraram vazio. É convite a reviver, de algum modo, a experiência dos dois discípulos de Emaús, que sentiram « o coração a arder no peito », quando o Ressuscitado caminhava com eles, explicando as Escrituras e revelando-Se ao « partir do pão » (cf. Lc 24,32.35). É o eco da alegria, ao princípio hesitante e depois incontida, que os Apóstolos experimentaram na tarde daquele mesmo dia, quando foram visitados por Jesus ressuscitado e receberam o dom da sua paz e do seu Espírito (cf. Jo 20,1923).

  1. A ressurreição de Jesus é o dado primordial sobre o qual se apoia a fé cristã (cf. 1 Cor 15,14): estupenda realidade, captada plenamente à luz da fé, mas comprovada historicamente por aqueles que tiveram o privilégio de ver o Senhor ressuscitado; acontecimento admirável que não só se insere, de modo absolutamente singular, na história dos homens, mas que se coloca no centro do mistério do tempo. Com efeito, a Cristo « pertence o tempo e a eternidade », como lembra o rito de preparação do círio pascal, na sugestiva liturgia da noite de Páscoa. Por isso, a Igreja, ao comemorar, não só uma vez ao ano mas em cada domingo, o dia da ressurreição de Cristo, deseja indicar a cada geração aquilo que constitui o eixo fundamental da história, ao qual fazem referência o mistério das origens e o do destino final do mundo.

   Portanto, pode-se com razão dizer, como sugere a homilia de um autor do século IV, que o « dia do Senhor » é o « senhor dos dias ».(2) Todos os que tiveram a graça de crer no Senhor ressuscitado não podem deixar de acolher o significado deste dia semanal, com o grande entusiasmo que fazia S. Jerónimo dizer: « O domingo é o dia da ressurreição, é o dia dos cristãos, é o nosso dia ».(3) De facto, ele é para os cristãos o « principal dia de festa »,(4) estabelecido não só para dividir a sucessão do tempo, mas para revelar o seu sentido profundo.

  1. A sua importância fundamental, reconhecida continuamente ao longo de dois mil anos de história, foi reafirmada vigorosamente pelo Concílio Vaticano II: « Por tradição apostólica, que nasceu do próprio dia da Ressurreição de Cristo, a Igreja celebra o mistério pascal todos os oito dias, no dia que bem se denomina do Senhor ou domingo ».(5) Paulo VI ressaltou novamente a sua importância, quando aprovou o novo Calendário Geral romano e as Normas universais que regulam o ordenamento do Ano Litúrgico.(6) A iminência do terceiro milénio, ao solicitar os crentes a reflectirem, à luz de Cristo, sobre o caminho da história, convida-os também a redescobrir, com maior ímpeto, o sentido do domingo: o seu « mistério », o valor da sua celebração, o seu significado para a existência cristã e humana.

   Com satisfação, vou tomando conhecimento das inúmeras intervenções do Magistério e das iniciativas pastorais que, vós, veneráveis Irmãos no episcopado, quer individualmente quer em conjunto — coadjuvados pelo vosso clero — realizastes sobre este tema importante nestes anos pós-conciliares. No limiar do Grande Jubileu do ano 2000, quis oferecer-vos esta Carta Apostólica para alentar o vosso empenho pastoral num sector tão vital. Mas simultaneamente desejo dirigir-me a todos vós, caríssimos fiéis, tornando-me de algum modo presente espiritualmente nas várias comunidades onde, cada domingo, vos reunis com os vossos respetivos Pastores para celebrar a Eucaristia e o « dia do Senhor ». Muitas das reflexões e sentimentos que animam esta Carta Apostólica maturaram durante o meu serviço episcopal em Cracóvia e mais tarde, depois de ter assumido o ministério de Bispo de Roma e Sucessor de Pedro, nas visitas às paróquias romanas, realizadas com regularidade precisamente nos domingos dos diversos períodos do ano litúrgico. Deste modo, parece-me prosseguir o diálogo vivo que gosto de manter com os fiéis, refletindo convosco sobre o sentido do domingo e sublinhando as razões para vivê-lo como verdadeiro « dia do Senhor », inclusivamente nas novas circunstâncias do nosso tempo.

  1. Ninguém desconhece, com efeito, que, num passado relativamente recente, a « santificação » do domingo era facilitada, nos países de tradição cristã, por uma ampla participação popular e, inclusive, pela organização da sociedade civil, que previa o descanso dominical como ponto indiscutível na legislação relativa às várias actividades laborativas. Hoje, porém, mesmo nos países onde as leis sancionam o carácter festivo deste dia, a evolução das condições socioeconómicas acabou por modificar profundamente os comportamentos coletivos e, consequentemente, a fisionomia do domingo. Impôs-se amplamente o costume do « fim de semana », entendido como momento semanal de distensão, transcorrido, talvez, longe da morada habitual e caracterizado, com frequência, pela participação em atividades culturais, políticas e desportivas, cuja realização coincide precisamente com os dias festivos. Trata-se de um fenómeno social e cultural que não deixa, por certo, de ter elementos positivos, na medida em que pode contribuir, no respeito de valores autênticos, para o desenvolvimento humano e o progresso no conjunto da vida social. Isto é devido, não só à necessidade do descanso, mas também à exigência de « festejar » que está dentro do ser humano. Infelizmente, quando o domingo perde o significado original e se reduz a puro « fim de semana », pode acontecer que o homem permaneça cerrado num horizonte tão restrito, que não mais lhe permite ver o « céu ». Então, mesmo bem trajado, torna-se intimamente incapaz de « festejar ».(7)

   Aos discípulos de Cristo, contudo, é-lhes pedido que não confundam a celebração do domingo, que deve ser uma verdadeira santificação do dia Senhor, com o « fim de semana » entendido fundamentalmente como tempo de mero repouso ou de diversão. Urge, a este respeito, uma autêntica maturidade espiritual, que ajude os cristãos a « serem eles próprios », plenamente coerentes com o dom da fé, sempre prontos a mostrar a esperança neles depositada (cf. 1 Ped 3,15). Isto implica também uma compreensão mais profunda do domingo, para poder vivê-lo, inclusivamente em situações difíceis, com plena docilidade ao Espírito Santo.

  1. Deste ponto de vista, a situação apresenta-se bastante diversificada. Por um lado, temos o exemplo de alguns Igrejas jovens que demonstram com quanto fervor seja possível animar a celebração do domingo, tanto nas cidades como nas aldeias mais afastadas. Ao contrário, noutras regiões, por causa das dificuldades sociológicas mencionadas e talvez da falta de fortes motivações de fé, regista-se uma percentagem significativamente baixa de participantes na liturgia dominical. Na consciência de muitos fiéis parece enfraquecer não só o sentido da centralidade da Eucaristia, mas até mesmo o sentido do dever de dar graças ao Senhor, rezando-Lhe unido com os demais no seio da comunidade eclesial.

   A tudo isto há que acrescentar que, não somente nos países de missão, mas também nos de antiga evangelização, pela insuficiência de sacerdotes, não se pode, às vezes, garantir a celebração eucarística dominical em todas as comunidades.

  1. Diante deste cenário de novas situações e questões anexas, parece hoje mais necessário que nunca recuperar as profundas motivações doutrinais que estão na base do preceito eclesial, para que apareça bem claro a todos os fiéis o valor imprescindível do domingo na vida cristã. Agindo assim, prosseguimos no rasto da tradição perene da Igreja, evocada firmemente pelo Concílio Vaticano II quando ensinou que, ao domingo, « os fiéis devem reunir-se para participarem na Eucaristia e ouvirem a palavra de Deus, e assim recordarem a Paixão, Ressurreição e glória do Senhor Jesus e darem graças a Deus que os "regenerou para uma esperança viva pela Ressurreição de Jesus Cristo de entre os mortos" (1 Ped 1,3) ».(8)
  2. Com efeito, o dever de santificar o domingo, sobretudo com a participação na Eucaristia e com um repouso permeado de alegria cristã e de fraternidade, é fácil de compreender se se consideram as múltiplas dimensões deste dia, que serão objecto da nossa atenção na presente Carta.

   O domingo é um dia que está no âmago mesmo da vida cristã. Se, desde o início do meu Pontificado, não me cansei de repetir: « Não tenhais medo! Abri, melhor, escancarai as portas a Cristo »,(9) hoje neste mesmo sentido, gostaria de convidar vivamente a todos a redescobrirem o domingo: Não tenhais medo de dar o vosso tempo a Cristo! Sim, abramos o nosso tempo a Cristo, para que Ele possa iluminá-lo e dirigi-lo. É Ele quem conhece o segredo do tempo e o segredo da eternidade, e nos entrega o « seu dia », como um dom sempre novo do seu amor. Há-de-se implorar a graça da descoberta sempre mais profunda deste dia, não só para viver em plenitude as exigências próprias da fé, mas também para dar resposta concreta aos anseios íntimos e verdadeiros existentes em todo ser humano. O tempo dado a Cristo, nunca é tempo perdido, mas tempo conquistado para a profunda humanização das nossas relações e da nossa vida.