Temas de fundo |
1ª leitura (Ex 34, 4b-6.8-9): No dia seguinte, Moisés levantou-se muito cedo e subiu ao monte Sinai, como o Senhor lhe tinha ordenado, com as duas tábuas de pedra na mão. Então, o Senhor desceu na nuvem, aproximou-se e pronunciou o seu nome sagrado: «Senhor». Depois, passou em frente dele e proclamou: «Eu, o Senhor, sou um Deus de misericórdia e clemência, lento para a ira e rico de graça e fidelidade». Moisés curvou-se logo até ao chão e prostrou-se em adoração, dizendo: «Se encontrei graça aos teus olhos, vem morar connosco. Este é um povo de dura cerviz, mas perdoa-nos as culpas e o pecado e aceita-nos como tua propriedade». Um Deus clemente e compassivo. Numa linguagem toda tecida de imagens - e só por analogia é possível falar de Deus - o autor do segundo livro bíblico, o Êxodo, nesta passagem, dá importância àquilo que, em termos teológicos, se costumam chamar os atributos de Deus. E é de realçar que o mesmo autor realce, dum modo especial, o atributo da bondade e misericórdia de Deus; ao contrário do que alguns que se julgam iluminados possam pensar. O próprio Moisés trata a Deus por tu, com intimidade, pedindo-lhe inclusivamente que venha «morar» com o povo. Ora bem, isso quer dizer que a ideia veiculada é a de que, afinal, Deus não é um ser distante, fechado no silêncio, na indiferença e na transcendência, mas Alguém que se «aproxima» das pessoas e com quem se pode estabelecer um contacto. De resto, pensando bem, a ideia de proximidade e de relação entre Deus e o homem já tinha ficado bem vincada quando o autor do primeiro livro, o Génesis, tinha afirmado que o homem tinha sido criado à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,27). PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. 2ª leitura (2Cor 13, 11-13): ... Quanto ao resto, irmãos, vivei na alegria, trabalhai na vossa perfeição, animai-vos uns aos outros, tende um mesmo sentir e vivei em paz. E o Deus do amor e da paz estará convosco. Saudai-vos mutuamente com um ósculo santo. Todos os santos (fiéis cristãos) vos saúdam. A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós. A graça de Cristo, o amor do Pai e a comunhão do Espírito. Em termos cronológicos, é possível e até é o mais provável que este escrito tenha aparecido pelos anos 56/57. O texto que, neste dia, nos é proposto é a conclusão da II Carta aos Coríntios, que é uma confissão trinitária, fruto talvez de algum rito litúrgica já em prática nos primórdios da Igreja. Mas, também neste caso, os «atributos» divinos realçados são precisamente os da bondade, do amor, da misericórdia, da comunhão e da proximidade. Mais uma vez, fica evidente que a proposta do mistério da vida trinitária não é um enigma para matar a cabeça, mas sim e, antes de mais, um convite a acolher no coração o carinho de um Deus de amor que se interessa pessoalmente por nós. PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. Evangelho (Jo 3, 16-18): Deus amou de tal maneira o mundo que lhe deu o seu Filho único, para que quem acredita nele não pereça, mas tenha a vida eterna. Deus não mandou o seu Filho ao mundo para julgar o mundo, mas para que o mundo se salve por Ele. Quem acredita no Filho não é condenado, mas quem não acredita já está condenado, pois não acreditou no nome do Filho único de Deus. Ele veio para que tenhamos a vida eterna. Este trecho faz parte da conversa entre Jesus e Nicodemos, que foi visitar Jesus de noite (cf. Jo 3,2). Provavelmente, Nicodemos era um membro do Sinédrio e chefe dos judeus; como, de resto, dá a entender o texto evangélico. Apesar de, ao início, Nicodemos ter manifestado algum receio em arriscar a sua posição (por isso, é que vai ter com Jesus de noite), a verdade é que, mais tarde, irá defender Jesus perante os chefes dos fariseus (cf. Jo 7,48-52). É o que nos conta o evangelista João. Mais ainda, ele também está presente quando Jesus é descido da cruz e colocado no túmulo (cf. Jo 19,39). Agora, este texto tem interesse para a nossa vida na medida em que, mais uma vez, nos é descrita como que a paixão de Deus pelo homem. Ele quer, a todo o custo, que o homem se salve e, por isso, não se recusa sequer a algo de inédito: fazer-se um de nós (na pessoa de Jesus Cristo) para que isso aconteça. PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. |
* O Senhor é um Deus bom e misericordioso e rico de graças. * A graça de Jesus Cristo, o amor do Pai e a comunhão do Espírito. * Deus mandou o seu Filho para que o mundo se salve. |
Se, por um lado, a salvação, em termos de elaboração teológica, pode parecer um «assunto complicado» (e realmente é assim), por outro lado, no concreto da vida, há que regressar às fontes evangélicas para ver que, afinal de contas, talvez não seja um assunto tão complicado como parece. No fundo, do texto supra de João intui-se facilmente que a salvação, em última análise, é uma iniciativa de Deus e que o homem só tem é que aceitar esse primeiro gesto de Deus e atuar em conformidade com as exigências que esse gesto implica. O que, de resto, parece evidente, se tivermos em conta que, sendo a salvação eterna algo de «infinito», não é atingível senão por um gesto gratuito de Deus.
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Deus é comunidade de amor
A solenidade de hoje não tem por objetivo decifrar, e muito menos definir em termos de «lógica» o mistério que se esconde por detrás da expressão «um só Deus em três pessoas». Em certos temas e circunstâncias da vida, mais do que pôr-se a discorrer (o que não quer dizer que os especialistas o não possam e não devam fazer), a atitude mais prudente é a da contemplação. E isso é mais que evidente no caso da Solenidade da Santíssima Trindade.
Para tratar do tema da solenidade de hoje, vamos pressupor que os elementos de que podemos dispor são apenas os textos bíblicos e as conclusões que a partir deles se podem tirar. Demasiadas palavras neste tema correm o risco de esvaziar de sentido o mistério diante do qual a melhor atitude é a de acatamento.
Nesse espírito de contemplação e acatamento, gostaria de propor - sem comentários - alguns textos do evangelista João que «demonstram», por assim dizer, a identidade das três Pessoas que constituem a essência da Trindade; que nos falam, enfim, de três pessoas distintas que, porém, são um único Deus: «Quem me vê a mim, vê Aquele que me enviou» (Jo 12,45). «Se me conhecêsseis, também conheceríeis o meu Pai» (Jo 14,7). «Acreditai que Eu estou no Pai e o Pai está em mim» (Jo 14,11). «Se me amardes, guardareis os meus mandamentos. E Eu rogarei ao Pai e Ele dar-vos-á outro Consolador (trata-se do Espírito), para estar convosco para sempre» (Jo 14,15).
«O que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é que me ama; e aquele que me ama será amado por meu Pai... Se alguém me ama, guardará a minha palavra e o meu Pai amá-lo-á e viremos a ele e faremos nele a nossa morada» (Jo 14,21.23). «Quando vier o Consolador, que vos hei-de enviar da parte do meu Pai, o Espírito da Verdade que procede do Pai, Ele testemunhará acerca de mim» (Jo 15,26).
«Todo aquele que nega o Filho, também não reconhece o Pai e aquele que confessa o Filho reconhece o Pai» (Jo 2,23). «O mandamento (do Pai) é este: que creiamos no nome do seu Filho, Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros como Ele nos amou. Aquele que observa os seus mandamentos, permanece em Deus e Deus nele. E conhecemos que Ele permanece em nós pelo Espírito que nos deu» (1Jo 3,23-24).
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Um Deus que é comunhão de vida
Acontece, pelo menos de vez em quando, o homem dar consigo a olhar para a sua interioridade, a fim de analisar a própria experiência religiosa mais íntima. Todo o homem é susceptível de viver momentos destes, embora talvez o não queira admitir em público ou então se recuse a admitir expressamente que se trate de experiência religiosa. Chamemo-lhe o que quisermos, mas o que todo o homem tem é porventura o pressentimento duma profundidade cujos limites não lhe é possível abraçar.
Ao «habitante» deste santuário de profundidade, neste fundo inatingível do nosso ser, a este mistério insondável e inexplicável, pode dar-se o nome de «Deus» ou outro qualquer (o que, de resto, é um facto, se utilizarmos uma outra língua que não a nossa). Seja qual for o termo utilizado para o designar, na ótica cristã, Deus é a profundidade última da nossa vida, a fonte inextinguível do nosso ser, a meta final dos nossos esforços e labutas.
Esta realidade, que habita no mais profundo do nosso íntimo (e que certamente não sabemos explicar), vive em contínua tensão no sentido de se exteriorizar e manifestar numa abertura a alguém. É claro que pode ser a um «tu» qualquer, mas, bem no recôndito de nós mesmos, há momentos em que temos a sensação confusa ou nítida de que, para responder a estes anseios que não sabemos explicar, há necessidade dum «Tu» diferente de qualquer outro.
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Um Deus em comunhão de vida
Eu diria que como que está impressa no nosso ser a realidade exaltante do Deus cristão, que se consubstancia na Trindade. Ou seja, de alguma forma, esse algo de profundamente íntimo e inexplicável ao mesmo tempo, está como que inserido no próprio mistério dum Deus que é comunidade, ou melhor, comunhão de vida: de um Deus que é Pai, Filho e Espírito Santo.
Pois bem, a nossa fé diz-nos que essa realidade existe, mas é tão misteriosa e «confusa» que certamente não caberia na imaginação de ninguém inventar um «quebra-cabeças» do género, se a sua fundamentação não estivesse fora do homem. Vou ver se consigo explicar-me por outras palavras. Se a proposta da Trindade (em palavras pobres, três Pessoas distintas que são um único Deus), fosse apenas a «invenção» produzida por uma mente humana, de facto, seria um absurdo. E, por ser absurdo, não estaria bom da cabeça quem se lembrasse duma «coisa tão estranha». E também não estaria bom da cabeça quem a aceitasse.
Pressupor que a Trindade é uma invenção dos cristãos, seria atribuir-lhes, sem razão, o gosto sádico de complicar a vida das pessoas, a começar por si próprios, com mais um mistério, que viria criar ainda mais problemas. Ou seja, se fosse uma «invenção» humana, o que seria natural é que os «inventores» tivessem é procurado eliminar (e não somar) mais um «quebra-cabeças» que, pelos vistos, a nível de inteligibilidade, só causa problemas. Eis por que eu digo que, se os cristãos têm insistido e continuam a insistir na defesa do mistério da Trindade, é porque a isso devem ser obrigados por uma revelação exterior a si mesmos.
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Comunhão com Deus: fim do homem
Ao contrário do que era a mentalidade corrente entre os judeus, os cristãos afirmam que o próprio Deus vem habitar no coração do homem. Também para os cristãos, Ele se manifesta certamente como «Senhor», mas é um Senhor cheio de bondade e misericórdia, rico de graça e de fidelidade. Na exuberância do seu amor pelo mundo, manifestado na oferta do seu Filho único para o salvar, o Deus de amor e de paz enche o homem com a plenitude da vida em Jesus Cristo, chamando-os à comunhão consigo no Espírito Santo.
A comunidade trinitária é a referência última e suprema, o fim último, do homem. Deus, e só Ele, é a plenitude de toda a perfeição, na medida em que a vida que «corre» entre as três Pessoas é a fonte e a causa do próprio ser da Trindade. Ora, como (de resto, segundo as primeiras páginas da Bíblia) o homem tanto mais se realiza quanto mais for «imagem e semelhança de Deus», a vida à maneira da Trindade é a resposta à sede de infinito que mora no coração do homem.
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Amor não se «raciocina», vive-se
Mas a comunidade trinitária é de facto um mistério, uma realidade indizivelmente maior que toda a capacidade (sempre limitada, diga-se de passagem) de compreensão do homem. Que Deus, infinitamente perfeito na sua essência, tenha decidido manifestar-se para além de si mesmo, é «assunto» que a Ele diz respeito; e não teria deixado de ser o que realmente é se não tivesse tomado essa decisão. Ou seja, mesmo que não tivesse estado na origem da criação, mesmo que não fosse Criador, nem por isso deixaria de ser Deus. Mas essa é uma hipótese que não se pode colocar, porque o mundo criado é um facto.
Que Deus, no seu projeto de criação, tenha «decidido» amar o homem, é já um mistério, que só Ele compreende e que, precisamente por ser mistério, não é compreensível pelo homem. Mais: é próprio do mistério estar sempre a reservar-nos surpresas. Sendo assim, Deus nunca cessa de maravilhar o homem, porque a sua maneira de proceder não é a maneira de proceder do homem (cf. Is 55, 8).
Por exemplo, o patriarca Abraão, também conhecido por «nosso pai na fé», sabe isso por experiência pessoal. Conhecedor das suas limitações e da precariedade das suas seguranças, o pai do Povo de Israel intui a absoluta soberania de Deus sobre o seu destino e, por isso, coloca-se numa disponibilidade total para se deixar desenraizar do húmus que alimentava os seus projetos humanos. Esse «deixar fazer» a Deus certamente significou uma mudança radical na sua vida, mas foi a condição indispensável para encontrar o sentido para ela.
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É preciso «apostar» tudo
Também Abraão, no uso das suas faculdades intelectuais, terá pesado, digamos assim, os prós e os contras da sua atitude vital de «submissão» a um Deus que se lhe revelava de maneira estranha e também «absurda» (segundo as categorias humanas).
À sua capacidade de raciocínio terá parecido uma temeridade tomar a iniciativa de tudo largar para seguir o apelo de Deus. Mas, apesar da sensação de «escuro» e absurdo das atitudes que lhe eram propostas e exigidas, soube intuir que as decisões essenciais da vida passam ao largo da racionalidade e da «razoabilidade» humanas. Abraão intui que, muito para além da componente humana, há dentro de si uma outra componente de cuja natureza ele não faz a mínima ideia, mas que sabe que está lá algures no seu íntimo, nem ele sabe bem onde.
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Um só Deus em três Pessoas
Um só Deus em três Pessoas: esta sempre foi uma proposição que só levanta problemas. E para quê levantar esses problemas? Por isso, não seria muito mais fácil lidar com ela eliminando-a pura e simplesmente? Humanamente falando, não tenhamos dúvidas que essa seria a atitude mais natural e mais «lógica». Mas o cristão não o faz nem o pode fazer, porque ele sabe bem, repito, que essa «proposição» não é da sua lavra e, por isso, não a pode modificar.
É isso! Talvez tenhamos que abandonar um pouco a mania de resolver as questões em termos de racionalidade no sentido humano do termo. Aliás, digo mais: deveríamos ter a noção de que a inteligência humana não é necessariamente a referência da razoabilidade. Não é verdade que apenas seja razoável o que cabe na inteligência humana. De resto, o que é isso de inteligência humana considerada em abstrato? Por outras palavras, quais são os critérios objetivos para determinar se algo é razoável ou não? A minha inteligência? Ou a inteligência de outro qualquer?
Ora bem, a grande novidade é que, segundo a visão bíblica, o termo de referência da realidade globalmente considerada não é o homem, mas Deus. E, sob uma certa perspetiva, é claro que isso tem muito mais razoabilidade do que se a referência fosse o homem. No fundo, a questão é esta: o que assenta em Deus não terá muito mais razoabilidade do que aquilo que assenta simplesmente no homem? Assim, na ótica bíblica, uma determinada realidade não é razoável por não contradizer a razão humana, mas sim por não contradizer a «razão» de Deus.
Pretender, pois, compreender a natureza do próprio Deus com a razão humana seria tentar moldar o próprio Deus às formas (limitadas, repito) da razão humana. O que seria certamente ainda mais absurdo do que aceitar o mistério de um só Deus em três Pessoas. Um Deus «explicável», um Deus «controlável», um Deus «encapturado», não existe...
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Mistério não se acorrenta, acolhe-se
A expressão «o homem, esse desconhecido» (que até é título dum livro célebre) é uma referência ao mistério que cada homem é sempre para o outro homem. Mas é também a confirmação de que o homem não pode ser compreendido senão a partir de Deus. Na ótica bíblica, sendo feito à imagem e semelhança de Deus, o homem é modelado, pelo Espírito Santo, segundo a imagem de Cristo, o qual, por sua vez, é a imagem perfeita do Pai. E o homem tanto mais aperfeiçoará a construção da sua «essência», digamos assim, quanto mais se deixar atrair e moldar por esta corrente de regeneração do Espírito, de forma que, por um aprofundamento da semelhança com Deus, possa continuamente e de forma progressiva retribuir a iniciativa do amor do Pai.
Na nossa experiência quotidiana, às vezes cinzenta e outras trágica, a luz do caminho é o amor de Deus. Para este devemos orientar-nos, se não quisermos falhar em relação à verdadeira finalidade da nossa vida. Claro que nós gostaríamos de poder controlar a realidade «Deus», gostaríamos tanto de poder dizer: «Deus está aqui... Deus é assim!». Mas não é possível. Ele sai dos nossos esquemas, sai dos quadros e das imagens que possamos construir para o «definir» e para o aprisionar. Ele rompe sempre com os nossos esquemas, porque «os seus planos não são os nossos planos» (cf. Is 55,8). As nossas representações acerca dele, por mais rigor e perfeição que atinjam, pecam sempre por defeito. Quem quiser viver por e em Deus não se encontra perante um ponto de chegada ou perante uma conclusão (que Ele não é conclusão de nenhum silogismo), mas sempre perante um início, um desafio, uma aposta, um início novo como cada dia que desponta.