XII DOMINGO COMUM - A

Temas

de

fundo

1ª leitura (Jr 20,10-13):  Eu ouvia insinuações de muita gente: «Anda por aí o terror! Vamos, denunciemo-lo!». Até os que eram meus amigos esperam agora a minha queda: «Talvez se deixe enganar! Então conseguiremos vencê-lo e assim teremos a nossa desforra!». Mas tu, Senhor, estás comigo como poderoso guerreiro. Por isso, os que me perseguem hão-de falhar e serão cobertos de confusão, porque não hão-de prevalecer. A sua ignomínia nunca se apagará da memória. Tu, Senhor do universo, que pões à prova o justo, sondas as entranhas dos corações. Possa eu contemplar a tua vingança contra eles, pois a ti confiei a minha causa.

* O Senhor livra a vida do pobre. 

   O livro de Jeremias contém muitos dados autobiográficos do protagonista. Jeremias viveu num dos períodos mais conturbados do povo de Israel, que coincidiram com o fim do Reino de Judá (ou Reino do Sul) e com a conquista e posterior destruição da capital, Jerusalém, por volta de 587 ou 586, sob o poder de Babilónia. Ele viu-se confrontado, por um lado, pela urgência de responder à missão de profeta que lhe tinha sido confiada (que, de resto, não previa grande futuro para a sua pátria); por outro lado, a sua tarefa era ainda mais complicada pelo facto estranho de alguns dos seus conterrâneos o acusarem inclusivamente de estar por detrás da derrocada nacional, Mas o que ele se limitava a constatar era que as coisas se estavam a encaminhar para o descalabro total. Há que acrescentar que Jeremias, pese embora o seu carácter pessimista, quando a necessidade o exige, ultrapassa-se a si mesmo e acaba por descobrir sempre que Deus está com ele. No seu caso concreto, mais se acentua que a audácia e a valentia provêm sobretudo de Deus. É precisamente isso que quer dizer o tipo de linguagem utilizado pelo profeta. Que ele expresse o desejo de contemplar momentos de vingança por parte de Deus contra os seus inimigos, pode acontecer. Mas é uma «fraqueza» compreensível humanamente falando (tal a maneira como ele era perseguido). Simplesmente, o desejo de vingança e de vitoria sobre os seus perseguidores não é desculpável e aceitável em termos de mensagem. Como lição final para todos nós, o que há a reter é que, não obstante certos momentos de fraqueza, é sempre possível levar por diante os próprios deveres e compromissos, nunca deixando de confiar na força e na proteção do Senhor.

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

2ª leitura (Rm 5,12-15):  O pecado entrou no mundo por um só homem e, pelo pecado, entrou a morte. Como resultado, a morte atingiu todos os homens, uma vez que todos pecaram. É um facto que, antes da Lei, já existia o pecado no mundo. Só que o pecado não é tido em conta quando não há Lei. Apesar disso, desde Adão até Moisés, reinou a morte, mesmo sobre os que não tinham pecado por uma transgressão idêntica à de Adão, que é figura daquele que havia de vir. Mas não se passa com a graça o mesmo que se passa com a falta. É verdade que todos morreram por causa do pecado dum só homem, mas a graça de Deus é muito maior; o dom oferecido por meio de um só homem, Jesus Cristo, foi concedido a todos com abundância.

* A graça de Deus dada em abundância. 

   Devo dizer que esta é uma de algumas das passagens difíceis das Cartas de Paulo e, com mais razão ainda, da sua Carta aos Romanos. Em todo o caso, parece-me que há aqui uma ideia bastante clara: todos nós somos descendentes de Adão enquanto criaturas humanas e todos podemos ser descendentes de Cristo enquanto novas criaturas. Ora, segundo essa lógica, a vida que recebemos de Adão não pode ser senão uma vida relativa, ao passo que de Cristo podemos receber a vida que conta, a vida que não tem fim. E então, nessa perspetiva, segundo a visão de Paulo, o papel de Cristo é tão importante que é equiparável ao papel do próprio Deus. Se Cristo nos pode dar a vida definitiva, isso é sinal de que Ele é comparável ao autor da própria vida, que é Deus. Outra mensagem que me parece bastante fácil de tirar é que, quando Paulo fala de morte, não se refere exatamente ao que se entende geralmente por morte, que é a física. Aqui o acento recai sobre um outro tipo de morte, que é a morte mais terrível, porque se trata do desencontro definitivo com Deus. E esse desencontro acontecerá mesmo se pensarmos que a simples pertença à humanidade adâmica, digamos assim, é a resposta a todas as nossas ânsias. Mas não há que desanimar, porque «a graça de Deus é muito maior».

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

Evangelho (Mt 10,26-33):  (Jesus dizia aos apóstolos): Não tenhais medo dos homens, pois não há nada em segredo que não venha a ser desvendado e nada de escondido que não venha a ser conhecido. O que vos digo às escuras dizei-o à luz do dia; e o que escutais em privado proclamai-o sobre os terraços. Não temais os que matam o corpo mas não podem matar a alma. Temei antes aquele que pode fazer perecer na Geena o corpo e a alma. Não se vendem dois pássaros por uma pequena moeda? Pois bem, nenhum deles cairá em terra sem o consentimento do vosso Pai. Quando a vós, até os cabelos da vossa cabeça estão contados! Por isso não temais; valeis mais do que muitos pássaros. Quem se declarar por mim diante dos homens, também Eu me declararei por ele diante do meu Pai que está no Céu. Mas quem me negar diante dos homens, também o hei-de negar diante do meu Pai que está no Céu.

* Não temais os que matam o corpo, mas não a alma. 

   O texto evangélico que temos entre mãos insere-se na seção em que Mateus fala da preparação que Jesus procurou dar aos discípulos para a missão que os esperava. É o dito «Discurso Missionário». Embora seja assim chamado, isso não quer dizer que seja um discurso apenas dirigido aos apóstolos; é-o a todos os que são «enviados» a propor a pessoa e a mensagem de Cristo aos outros. E esses são todos os que, ao fim e ao cabo, «configuram» a sua vida com as exigências contidas no que o  Evangelho nos transmite. Do contexto é possível deduzir que se torna necessário dar a cara e tomar partido pelo Evangelho. A propósito, devo acrescentar que se, porventura, nos tempos que correm, nomeadamente no contexto europeu, as coisas não estão a correr bem no que diz respeito à transmissão da mensagem cristã, não será porque os cristãos estão a falhar na sua tarefa de testemunhar o nome de Deus diante dos homens? Tantas vezes, temos muito mais medo dos que matam o corpo do que daquele que pode fazer parecer o corpo e a alma. É uma vergonha ter que admitir isto, mas se calhar é o que acontece tantas vezes. Mas não pode nem deve ser essa a nossa atitude. É que, no mesmo contexto, é-nos dada a garantia de que nada nos acontecerá de definitivamente mau, pois nem sequer um cabelo da nossa cabeça cairá sem o consentimento do nosso Pai.

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

  •  *   O Senhor livra a vida do pobre.
  •  *   A graça de   Deus dada em abundância.
  •  *   Não temais os que matam o corpo.

ATÉ OS VOSSOS CABELOS ESTÃO CONTADOS.

   

    * Perseguição, distintivo do cristão

    É um facto facilmente constatável que o Povo de Deus experimentou, durante toda a sua história, a violenta oposição e perseguição dos povos vizinhos. De resto, não era por ser povo eleito que se poderia achar com direito a outro tipo de tratamento. O mistério da perseguição, embora ligado ao problema do sofrimento, é distinto deste. Enquanto o sofrimento é próprio de toda a gente, a perseguição (que naturalmente implica, também ela, sofrimento) diz respeito apenas aos justos, precisamente na medida em que são justos e em que, pela sua vida e atitude, representam uma acusação implícita contra aqueles que não atuam em conformidade com o que os justos transmitem através do que dizem e sobretudo do que fazem.   

   No que se refere ao Antigo Testamento, a perseguição atinge especialmente os profetas, por causa da sua dedicação e amor a Javé em virtude da fidelidade e rigor que acham que devem à Palavra. O profeta Jeremias (que fornece abundante material para a reflexão de hoje) ocupa entre os perseguidos um lugar de destaque. A sua vida é a demonstração cabal da relação estreita entre perseguição e missão profética.   

   Ora bem, da mesma forma, a perseguição, bem como o sofrimento que dela deriva, será um distintivo do cristão realmente incorporado na dinâmica daquele «que fala em nome de Deus». Todo o cristão deve ter a noção clara da obrigação que lhe incumbe de falar em nome de Deus. Daí se dever afirmar que todo o cristão deve ser profeta. Mas é certo e sabido que quem está sinceramente comprometido na defesa dos interesses dos mais necessitados, bem como na difusão dos valores evangélicos, será objeto de oposição e, por vezes, de perseguição, «porque, assim como perseguiram o Mestre, assim também hão-de perseguir os seus discípulos» (cf. Jo 15, 20).

   * Figura profética: o Servo de Javé

    Jesus, nesse aspeto, também não foi exceção. Melhor dizendo, Ele é o paradigma do Justo que sofre por defender a justiça. Por isso se lhe aplica plenamente o título de «Servo de Javé». O Servo sofredor é tal na medida em que cumpre os planos de Deus. Com efeito, como os planos de Deus são diferentes dos planos dos homens, isso causa «atrito» e, por conseguinte, a aceitação da perseguição e dos sofrimentos que dela derivam é uma situação «normal» em que se encontram envolvidos tanto os profetas como quem quer fazer a vontade de Deus. Por isso, todo o profeta (e o cristão deve ser um profeta, ou seja, alguém que fala e, com a vida, é testemunha duma outra realidade em nome de Deus) tem a pagar, como tributo à sua condição de testemunha de Deus, a agonia duma vida cheia de contrariedades e perseguições. O drama do justo perseguido é descrito pelo profeta Isaías (Is 42,1-7; 49,1-6; 50,4-9; 52,13–53,12), e também pelo livro da Sabedoria, segundo o qual o justo se torna insuportável para o ímpio só em vê-lo (cf. Sb 2,12-14). Ao condenar Jesus ao supremo suplício da cruz, os judeus continuam a injustiça dos seus antepassados que, perseguindo os profetas e Jesus, se opõem ao plano de Deus. Mas, no fim, os cálculos do homem pecador revelam-se sem perspetiva. Os príncipes deste mundo, ao crucificarem o «Senhor da glória», na realidade, tornam-se instrumentos da Sabedoria divina (cf. 1Cor 2,8), porque a morte de Cristo é salvação para o mundo e glória de Deus, enquanto a fraqueza do mundo é a fortaleza de Deus.

   * Perseguição é bem-aventurança

    Segundo os ensinamentos de Jesus, a perseguição é inclusivamente tema, ou melhor, objeto das bem-aventuranças: «Felizes sereis quando vos insultarem e vos perseguirem...» (cf. Mt 5,11). A perseguição, como disse acima, é inevitável. É o próprio Jesus que o diz: «O servo não é maior que o seu senhor. Se me perseguiram a Mim, também vos hão-de perseguir a vós». Empenhar-se, pois, em viver segundo os caminhos do Senhor implica encontrar no próprio caminho uma série de dificuldades e problemas sempre novos e cada vez maiores. Num mundo dominado pelo egoísmo e pela procura do próprio interesse, quem prega o amor, a pobreza, o desapego e o perdão, será inevitavelmente perseguido.   

   Só que quem é perseguido sabe que os perseguidores não têm senão o poder de matar o corpo, mas não têm o poder de matar a alma. Por isso mesmo, o cristão até é capaz de chegar a um momento em que experimenta a capacidade de suportar a perseguição com alegria. Exemplo disso são os apóstolos, após o Pentecostes: «Eles saíram do Sinédrio contentes por terem sido ultrajados por amor do nome de Jesus» (cf. Act 5,41). S. Paulo diz o mesmo: «Estou cheio de alegria em cada tribulação» (1Cor 7,4).

   * Perseguição não é vitimismo

    Até à realização do II Concílio do Vaticano, prevaleceu uma mentalidade bastante fechada a nível de Igreja em relação ao mundo. Como que se aprendia que era necessário «odiar», desprezar e fugir do mundo. E muitos cristãos tomavam isso rigorosamente à letra (pelo menos no plano doutrinal), embora soubessem, ou pelo menos intuíssem, de alguma forma, que, tendo sido criado por Deus, o mundo era uma coisa boa.

   Infelizmente, há que reconhecer que dessa mentalidade ficaram muitos vestígios. Ora bem, a expressão «mundo», particularmente na linha de pensamento do evangelista João, indica não uma realidade física, mas sim uma realidade moral, na medida em que significa o que no mundo há de mal. E isso, como parece óbvio, existe também dentro da Igreja e dentro de cada um dos seus membros.

   A Igreja, nos tempos que correm (é uma constatação), como regra, já não é considerada como castelo encantado que é preciso defender de todas as investidas do «mundo» (antes pelo contrário). É considerada, isso sim, como fermento que quer permear com os valores evangélicos a grande massa da humanidade. Espero bem que já tenha sido ultrapassada a convicção de que toda a massa se deve tornar fermento. A massa será sempre massa e o fermento será sempre apenas uma pequena parte inserida na massa. Esta expressão tirada do próprio Evangelho talvez evite muitos mal-entendidos e muitas ilusões alimentadas de maneira incorreta. Uma atitude negativa neste campo conduz a um estado de vitimismo que não é nada saudável.   

   Enfim, mais que uma doutrina ou um conjunto de regras, que é preciso defender contra todas as investidas dos «inúmeros» adversários e inimigos que andam por aí à solta, o cristianismo deve ser um fermento que leveda a massa, deve ser uma vida vivida, deve ser uma mudança constante de mentalidade segundo as teses evangélicas: um fermento para o mundo (passe a expressão!) e, antes de mais, para os cristãos.

   * A ação não é guerra defensiva

    Em todo o caso, pôr em prática as bem-aventuranças evangélicas para promover a causa da evangelização e da autêntica promoção humana conduz necessariamente à perseguição. Enfim, parece mesmo que a oposição entre a sabedoria mundana e a sabedoria divina é inevitável.

   Mas devo acrescentar que nem sempre as perseguições de que a Igreja é objeto são devidas à sua fidelidade ao Evangelho. Oxalá fosse só por isso! Por vezes, a Igreja é também perseguida e obstaculizada por não ser fiel ao Evangelho (também pode acontecer e, infelizmente, acontece mesmo isso) e por não corresponder aos anseios dos tempos, por denotar alguma preguiça ou por demonstrar falta de fé, coragem e abertura ao sopro do Espírito de Deus.

   De alguma forma, é doloroso verificar como ideias genuinamente cristãs, como sejam, por exemplo, a liberdade, a igualdade, os direitos da pessoa, e mesmo a democracia, tenham encontrado, em certos momentos e em certos setores da Igreja como cúpula e como base, opositores inflexíveis, renitentes, resistências incompreensíveis e até mesmo uma luta declarada.   

   Não há como negar que os limites humanos da Igreja e dos cristãos são visíveis nas conivências (conscientes ou inconscientes) com situações de injustiça e de poder, de medo, de hesitações, de silêncios, de faltas de coragem e confiança. Em mais do que um caso, é certo que as perseguições contra a Igreja têm a sua origem numa conceção errada que os perseguidores têm de religião. Mas a verdade é que se trata duma conceção que, com alguma frequência, é induzida, senão mesmo provocada, justamente pelos que deviam vivê-la com muito mais autenticidade. Às vezes, a hostilidade contra a Igreja nasce dum «amor desiludido» para com ela...

    * Não é só essa perseguição

    Mas, isso não significa supersimplificar as coisas de forma inconsciente. É que há, sem sombra de dúvida, também uma outra perseguição que podemos classificar de «satânica». É o fermento negro do mundo que se difunde e ramifica como um cancro que corrói o tecido da humanidade. É como uma espécie de «corpo místico do mal», com o qual, apesar de todos os gestos de boa vontade, não se pode entrar em diálogo, porque se trata do inimigo irredutível, do inimigo por excelência, que luta contra Cristo e contra o seu Reino. As suas vítimas preferidas são naturalmente as que, na construção dum mundo mais humano, seguem os passos traçados por Jesus e trilhados pelos seus discípulos.

    Seria uma atitude de menoridade não estar consciente de que o Mal existe realmente e que se consubstancia em todas as tentativas, declaradas ou não, de combater, de todas as formas, mesmo ilegítimas, os valores veiculados pelos adoradores da divindade e, de modo especial, por aqueles que se dizem cristãos. Há claramente indivíduos e grupos apostados em combater e neutralizar valores que, na ótica cristã, devem ser fermento da humanidade, a começar pelos valores da vida e da dignidade humana.