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Jesus Cristo, o Fiel dos fiéis e Senhor dos senhores, o único que possui a imortalidade, que habita numa luz inacessível, que nenhum homem viu e pode ver, manifestar-se-á nos tempos estabelecidos. A Ele, honra e poder eterno. Ámen.
1ª leitura (Gn 15,5-12.17-18): O Senhor levou Abraão para fora e disse: «Olha para o céu e vê se és capaz de contar as estrelas. Pois bem, tu terás tantos filhos como isso». E Abraão acreditou no Senhor que, por isso, ficou agradado com ele e o aceitou. O Senhor disse-lhe depois: «Eu sou o Senhor, que te tirou de Ur, na Babilónia, para te dar a possessão desta terra». Abraão perguntou: «Senhor, rei soberano, como é que posso ter a certeza de que esta terra será minha?». O Senhor respondeu: «Traz uma novilha, uma cabra e um carneiro, todos com três anos de idade, bem como uma pomba e uma rola». Abraão trouxe os animais a Deus, cortou-os ao meio e colocou as metades umas em frente das outras em duas filas. Mas não cortou as aves. Os abutres atacavam os corpos, mas Abraão afugentava-as. Ao pôr do sol, apoderou-se de Abraão um sono profundo e sentiu-se apavorado e envolvido em densas trevas. Então o Senhor disse-lhe: «Os teus descendentes serão estranhos em terra estrangeira, onde serão escravos e cruelmente oprimidos por quatrocentos anos... Mas eu faço contigo uma aliança: «Prometo dar aos teus descendentes toda esta terra, desde as margens do Egito até ao Rio Eufrates».
* Eu faço contigo uma aliança.
O tema da aliança percorre as páginas da Bíblia e está, se dizer, no centro da história da salvação. À aliança anda implícito um rito de sacrifício. Mas, como se parece poder deduzir com facilidade, o mais importante é o pacto pessoal de amizade que se estabelece entre Deus e a sua criatura. No caso de Abraão (e não só), como resposta a Deus, dá-se a renúncia a toda a certeza humana que se proponha como critério de juízo e comportamento. Nesse sentido, é a condição sine qua non exigida em todo e qualquer pacto, para que os efeitos sejam duradoiros. E o desrespeito, por parte do homem, a esse «compromisso» é, no fundo, a essência do pecado, que se traduz na inclinação para as coisas, tomando-as como ídolos, aos quais acaba por ser sacrificado o próprio Deus. Abraão é considerado o «pai dos crentes» e a sua fé, que será sujeita à prova e da qual ele sairá vencedor. Nesse aspecto, ele é apresentado como modelo de todos os crentes: porque confia em Deus, ele «espera contra toda a esperança». E exactamente isso que deve fazer cada um de nós.
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2ª leitura (Fl 3,17-21; 4,1): Meus irmãos, sede meus imitadores e olhai com atenção para os que procedem conforme o exemplo correto que dei. Disse-vos isto muitas vezes e agora repito-o com lágrimas: há muitos cuja vida faz deles inimigos da morte de Cristo na cruz. Vão acabar por se perder, porque o seu deus são apenas os desejos carnais. Vangloriam-se do que se deviam envergonhar, pois pensam só em coisas terrenas. Nós, porém, somos cidadãos do céu e esperamos ansiosamente pela vinda do céu do nosso Salvador, o Senhor Jesus Cristo. Ele transformará o nosso fraco corpo mortal tornando-o semelhante ao seu próprio corpo glorioso, com aquela energia pela qual Ele pode pôr todas as coisas sob um único poder...
* Cristo transfigura-nos no seu corpo glorioso.
Como se costuma dizer, o cristão, pelo batismo, como que entra em clima de aliança com Deus. Nessa ótica, como a condição da validade da aliança é a fidelidade aos compromissos assumidos, Paulo não pode deixar de apelar para essa «vertente» da vida do cristão. Quando se propõe como exemplo, não é para se exaltar, mas precisamente para realçar essa necessidade de fazer uma «rotação» de vida para ser coerente com a «aliança do batismo» que isso implica. Hoje este tipo de linguagem não está muito na moda e, por isso, é complicado insistir no tema, mas é algo a que não se pode fugir se realmente queremos ser cristãos a sério. Acenar com a «transfiguração» futura em Cristo é também uma imagem que pode passar despercebida; é uma proposição que não parece colher a concordância de toda a gente, porque se diz que não é preciso esperar pela outra vida. Mas o facto é que esse aspeto é essencial ao cristianismo, pois é uma certeza ditada pela fé que «o nosso fraco corpo mortal se tornará semelhante ao seu corpo glorioso».
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Evangelho (Lc 9,28b-36): Jesus tomou consigo Pedro, João e Tiago e foi rezar para um monte. Enquanto estava em oração, o seu rosto mudou de feição e as suas roupas tornaram-se duma brancura fulgurante. De repente, apareceram dois homens a falar com ele: Moisés e Elias, que se revestiam de toda a glória celeste. Falavam sobre a forma como Jesus em breve iria cumprir o desígnio de Deus com a sua morte em Jerusalém. Pedro e os seus companheiros estavam a cair de sono. Mas acordaram e viram a glória de Jesus e os dois homens de pé ao lado dele. Quando os homens deixaram Jesus, Pedro disse-lhe: «Mestre, como é bom estar aqui! Façamos três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias. (Mas ele não sabia realmente o que estava a dizer). Enquanto estava ainda a falar, uma nuvem envolveu-os com a sua sombra e os discípulos ficaram cheios de medo, quando ela se aproximou deles. E então ouviu-se uma voz da nuvem: «Este é o meu Filho predileto! Escutai-o!». Depois que a voz se fez ouvir, não viram mais ninguém senão apenas Jesus. Os discípulos, nessa altura, não disseram a ninguém nada do que tinham visto.
* Os discípulos viram a glória de Jesus.
Não sabemos exatamente em que monte terá ocorrido este facto, se bem que a tradição nos fale do Tabor. Mas o mais importante é olhar para o essencial da narração, que não é exclusiva do evangelista Lucas (cf. Mt 17, 1-9; Mc 9, 2-10). E o mais importante, com efeito, é o facto de os discípulos mais íntimos de Jesus (Pedro, Tiago e João) terem sido testemunhas oculares da majestade que Jesus terá depois da sua morte e ressurreição. De resto, é o que diz o próprio Pedro na sua segunda Carta (cf. 2Pe 1,16-17). O anúncio da Paixão deixou os apóstolos apreensivos e desanimados e então Jesus antecipa, de alguma maneira, aquilo que também os espera a eles. Ou seja, isso não significa que as dificuldades desapareçam - o próprio Jesus volta a falar da Paixão logo a seguir à Transfiguração - mas a luz que se antevê pela fé e pela palavra de Jesus é um motivo suficiente para ultrapassar o túnel da dúvida, do medo, do sofrimento e até da morte. Para isso, é preciso escutar o próprio Jesus, Filho predileto de Deus e, no seu encalço, seguir o trilho que leva ao Gólgota, que é como que a entrada para a Transfiguração definitiva.
PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.
* Abraão acreditou no Senhor e, por isso, o Senhor aceitou-o.
* Nós somos cidadãos do céu. Esperamos ansiosamente pela vinda de nosso Salvador, Jesus Cristo.
* Este é o meu Filho predileto! Escutai-o!
O SEU ROSTO
MUDOU
DE FEIÇÕES
E AS SUAS
VESTES
TORNARAM-SE
DUMA
BRANCURA
FULGURANTE.
Por falta de disponibilidade, limito-me a traduzir e a adaptar o comentário do «Messale dell'Assemblea Cristiana (editado pelo Centro Catequético Salesiano de Turim).
Deus faz-se aliado do homem
Um rito sacrificial enquadra o pacto entre Deus e Abraão, na mesma linha dos ritos que todas as religiões põem em prática como expressão do seu relacionamento com a divindade. Mas alguns elementos, entre os que são postos em evidência, adquirirão sucessivamente, à luz da história da salvação, um significado bem mais profundo.
A iniciativa é tomada por Deus. Sua é a escolha de Abraão, sua a promessa duma terra e duma descendência, para lá de toda a esperança. Abraão tem fé no Senhor e isso é-lhe debitado como justiça. De agora em diante, a estrada de Abraão, amigo do Senhor, orientar-se-á segundo os projectos d'Aquele que o chamou e que caminha ao seu lado. Deus oferece a sua amizade e Abraão e a sua gente dizem «sim».
Simbolismo de um rito
A aliança é o «sentido» novo da história pessoal de Abraão e do povo que nascerá a partir dele como sinal da fidelidade de Deus. Da parte de Deus, a aliança, com as suas promessas e as suas exigências, nunca será traída: Abraão irá tomar posse da terra que Deus lhe prometera.
O povo esquecerá demasiadas vezes o seu Deus. Mas o Senhor será fiel à aliança. Ele é o «Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob», que envia Moisés para que faça sair o povo do Egipto e estabelecer com Ele um aliança no Sinai, na perspectiva dum novo ingresso na terra dos pais.
Cada aliança supõe um êxodo e uma entrada: um êxodo do Egipto e um ingresso na terra prometida ou, segundo os profetas, um êxodo do pecado, da injustiça social, do formalismo cultual, e um ingresso num reino messiânico de paz e fidelidade.
A aliança é um compromisso profundo
Cristo apresenta-se como a aliança definitiva entre Deus e o seu povo. Também para Ele a aliança acontece mediante um êxodo (no Evangelho, Moisés e Elias falam do seu êxodo, da sua morte) e um ingresso (o rosto de Jesus que muda de aspecto e a sua veste fulgurante de brancura indicam a ressurreição). E, assim como a aliança com Abraão acontece no rito de passagem pelo meio dos animais sacrificados e a aliança do Sinai na aspersão do sangue sobre o povo presente, assim a aliança definitiva se dá com o sangue do Filho de Deus.
A ceia do Senhor: celebração da aliança
Os apóstolos agora não compreendem o acontecimento da transfiguração, mas quando o Espírito descer sobre eles tornar-se-ão as testemunhas do facto decisivo da cruz e da ressurreição. A eles e a toda a comunidade suscitada pelo seu testemunho é confiado o memorial da nova aliança, selado não pelo sangue de animais imolados, mas pelo sangue de Cristo, para a remissão dos pecados.
A Igreja, herdeira de Israel e da promessa de Abraão, renova a sua aliança com Deus mediante o rito da Eucaristia, em que a palavra de agradecimento torna explícito o gesto da comunidade. O Pão e o Vinho partilhados são o sinal da nossa comunhão com Deus, dum caminho que nós fazemos com Cristo, nele e por ele, aceitando as exigências da aliança na alegria de ser seus amigos. Reconheçamos também nós que a iniciativa é de Deus e com humildade, mas também com coragem como Paulo (2ª leitura), aceitemos a nossa parte nas canseiras do anúncio do Evangelho, sabendo que a tarefa é comum, do Pai e nossa.
Bíblia: as palavras do Deus da Aliança
O homem fechado em si mesmo, bloqueado na sua exasperada autonomia, profundamente inquieto, estranho num mundo que não conhece, precisa de redescobrir algo ou alguém em quem confiar para dar segurança e sentido à própria vida. A comunidade cristã oferece ao homem assim uma proposta de solução apresentando o Deus da aliança.
É o Deus que entra em contacto connosco, o Deus que nos trata por «tu» e a quem podemos também tratar por «tu». E é na Bíblia que nós encontramos este Deus «diferente». A quem está, pois, empenhado a dar um solução e uma direcção à vida, impõe-se uma valutação atenta e responsável da proposta da Escritura e, portanto, uma leitura que procure colher o seu sentido profundo, para além duma concepção episódica e mitizada.
1ª leitura (2Re 4,8-11.14-16a): Um dia, (o profeta) Eliseu passou por Sunam (Chuném). Aí vivia uma mulher rica que insistiu que fosse comer a sua casa. Então, a partir dessa altura, sempre que por ali passava, ia lá comer. Um dia, ela disse ao marido: «Tenho a certeza de que este homem, que passa com frequência por nossa casa, é um santo homem de Deus. Preparemos-lhe no terraço um pequeno quarto, com uma cama, uma mesa, uma cadeira e uma lâmpada, de modo que ali se possa recolher quando vier a nossa casa». Um dia, quando Eliseu se recolhia ao quarto para dormir, perguntou ao criado Guiesi: «O que é que se pode fazer por ela?». Respondeu-lhe Guiezi: «Ela não tem filhos e o seu marido é idoso». Disse Eliseu: «Chama-a». Guiezi chamou-a e ela apareceu à porta. Então Eliseu disse-lhe: «Por este tempo, no próximo ano, terás um filho nos braços».
* Este é um homem de Deus, um santo.
O profeta Eliseu tem muita importância na historiografia monárquica de Israel, logo a seguir a Samuel e a Elias. A sua personalidade devia ser tão incisiva que até pessoas que aparentemente nada tinham a ver com a realeza, como era o caso da sunamita desta leitura, ficavam impressionadas com ele. É certo que, nesta passagem e no resto que se lhe segue, se nota uma certa preocupação em pôr em relevo as capacidades «milagrosas» de Eliseu, mas a verdade é que, neste caso, nos devemos ater ao facto de que a figura do profeta é secundária em relação Àquele que realmente faz os milagres, que é o próprio Deus. Há também um outro aspeto que relaciona, de alguma forma, esta leitura ao texto evangélico. O motivo por que essa senhora rica recebe o profeta Eliseu tem a ver com o facto de ele ser um homem de Deus. É exatamente por isso que ela é «compensada» não pelo profeta, mas sim por de Deus. É que, na verdade, o dom da vida - e o seguimento desta leitura continua a falar do mesmo assunto - é algo que só Deus pode conceder. Eu penso que o exemplo desta senhora nos é proposto porque tudo na sua atitude demonstra uma contínua profissão de fé; caso contrário, muito provavelmente o episódio, por mais interessante que seja, não era suficiente para ser proposto à nossa consideração.
PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.
2ª leitura (Rm 6,3-4.8-11): Certamente sabeis que, quando fomos batizados em Cristo Jesus, fomos batizados pela (eficácia da) sua morte. Pelo Batismo fomos, pois, sepultados com Ele na morte, para que, assim como Cristo foi ressuscitado dos mortos para a glória do Pai, assim também nós caminhemos numa vida nova. Mas, uma vez que somos um com Cristo pela sua morte, acreditamos que também com Ele viveremos. Sabemos que Cristo ressuscitado dos mortos já não morre mais, porque a morte não tem mais poder sobre ele. Na morte que teve, morreu pelo pecado de uma vez para sempre. E agora, na vida que tem, vive para Deus. Assim vós também deveis considerar-vos mortos para o pecado, mas vivos para Deus em Cristo Jesus.
* Pelo batismo, somos sepultados em Cristo.
A noção de batismo proposta por S. Paulo neste contexto só pode ter a ver com uma nova maneira de ser, ou melhor dizendo, com uma nova vida. É também essa a ideia que ele pretende transmitir quando fala de homem velho e homem novo. De resto, é evidente para quem esteja com um pouco de atenção e seja minimamente inteligente que a vida a que S. Paulo se refere não é a vida física sujeita ao tempo e ao espaço, a que estamos habituados. O homem velho ou novo não tem nada a ver com a idade cronológica. Por vezes, a linguagem de Paulo torna-se-nos complicada exatamente porque não partimos da mesma premissa que ele. E, na verdade, enquanto não formos capazes de ultrapassar o conteúdo daquilo que constitui a vida ou a morte física, não conseguiremos entrar no «mundo de Paulo». Mas, seguindo a sua maneira de pensar e raciocinar, então podemos afirmar que, ao sujeitar-se à morte, Cristo quis ultrapassar a noção limitada de vida, para nos indicar que, para além desta, há outro tipo de vida substancialmente diferente, na medida em que não está sujeita nem ao tempo nem ao espaço e é uma vida em que não subsiste nada do que é negativo; mais, é uma vida «sem limitações», digamos assim, uma vida que nunca mais tem fim. E, no fundo, se pensarmos bem, lutar e «esfarrapar-se» por uma vida que nos deixa o gosto amargo da desilusão e da finitude, não é a resposta mais adequada aos anseios de infinito e vida sem fim que moram no nosso coração. E então a proposta que Paulo faz é de assumirmos morrer associados à vida e à morte de Cristo para termos a certeza de que alcançaremos a vida que o próprio Cristo alcançou ao ressuscitar e levar de vencida a morte.
PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.
Evangelho (Mt 10,37-42):Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim, não é digno de mim. Quem ama o filho ou a filha mais do que a mim, não é digno de mim. Quem não toma a sua cruz para me seguir, não é digno de mim. Quem ganha a vida para si próprio, perde-a; mas quem perde a sua vida por causa de mim, salva-a. Quem vos acolhe, acolhe-me a mim. E quem me acolhe a mim, acolhe aquele que me enviou. Quem acolhe um profeta por ser profeta, recebe a recompensa de profeta. E quem acolhe um justo por ser justo, receberá a recompensa de justo. E quem der de beber a um destes pequenos, mesmo que seja apenas um copo de água fresca, por ser meu discípulo, em verdade vos digo: não perderá a sua recompensa.
* Quem não toma a sua cruz não é digno de mim.
Ao ler as palavras deste trecho evangélico, podemos ser tentados a afirmar que Jesus exagera e que não segue as regras do bom senso. Como que ficamos com a impressão de que Ele está a colocar a fasquia demasiado alta. A tentação, por vezes, é atenuar estas palavras. Mas não nos é permitido modificar nada dessas palavras. A ideia que elas transmitem é clara: sim, Jesus propõe-se, sem margem para dúvidas, como o bem supremo, ao qual é preciso sacrificar tudo, incluindo todos os afetos familiares e, mais ainda, até a própria vida. Tudo isso, apesar de bom, pode constituir um obstáculo ao seguimento de Cristo. Nessa circunstância de conflito, então aquele que quer ser realmente cristão, não tem outra opção senão escolher a Cristo. São palavras duras? São, mas são evangélicas. Sim, ao ler esta passagem, pode-se ser tentado a passar ao lado, mas estamos a fazer mal, porque Jesus Cristo quer dizer isso mesmo: tudo tem que ser sacrificado por amor dele. É claro que, com isso, Ele não pretende desvalorizar os afetos familiares e o amor à própria vida (esses mandamentos continuam a ser válidos), mas é por demais evidente que Ele está acima de tudo. Isso é uma indicação óbvia de que Ele se propõe como alguém diferente de todos os outros, sendo que a conclusão que se pode tirar é que Ele se equipara ao próprio Deus, porque só Deus se pode propor como critério supremo das escolhas do homem. Se não arriscamos tudo, até a própria vida, por Jesus Cristo - é essa a ideia do trecho evangélico - que corremos o perigo de perder a Vida que importa. Mas - há que dizê-lo - porquê ter medo de arriscar a vida em Jesus, se Ele próprio nos dá a garantia que nada do que se fizer em nome dele ficará sem recompensa?
PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.
* Este é um homem de Deus, um santo.
* Pelo baptismo, somos sepultados em Cristo.
* Quem não toma a sua cruz e me segue não é digno de mim.
DEUS
NUNCA
SE DEIXA
VENCER
EM
GENEROSIDADE.
* Seguir Jesus não é brincadeira
A liturgia da palavra deste domingo contém dois temas distintos que me parecem complementares. Por um lado, são descritas as condições para seguir a Jesus: a liberdade interior, a cruz e a disponibilidade total. Por outro lado, o tema do acolhimento e da hospitalidade insere-se no tema mais geral das condições para o ingresso no Reino do Pai. De resto, dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede, vestir os nus, visitar os enfermos e os prisioneiros, requer uma disponibilidade que é fruto do desapego interior. Seguir Jesus é vê-lo nos últimos, naqueles que não têm possibilidade de contracambiar e nem sequer de agradecer.
Como é evidente, tudo no texto evangélico de hoje parece ir contra a maneira humana de reagir. Como foi também evidenciado no comentário do domingo anterior, esse tipo de atitude e procedimento é objeto de perseguição por parte daqueles que, de alguma forma, se veem ameaçados nos seus privilégios. Nessa linha, o seguimento de Jesus será sempre uma fonte de problemas e de sofrimento. E, portanto, aqueles que se dispuserem a seguir a Cristo, sabem que o que os espera não é fácil. Sendo assim, aqueles para quem seguir a Jesus seja uma coisa fácil, seja uma brincadeira, devem começar a desconfiar se realmente serão cristãos.
* Dialéctica entre o «sim» e o «não»
Na base da existência cristã, há, digamos assim, uma tensão dialética entre o «sim» às exigências da vocação de pessoas que se dizem cristãs, entre o apelo incessante e inequívoco do Espírito, e o «não» das seduções do mundo, da preguiça e do egoísmo. Seja dito de passagem que, na realização prática, não é fácil traçar uma linha divisória clara entre aquilo que são as exigências evangélicas e as vozes do mundo. E, de facto, há casos em que não se sabe ao certo qual é o apelo que vem do espírito e o apelo que vem da «carne». Ora, tudo isso representa cruz e sofrimento.
Tomar a cruz, fazer dolorosas renúncias, perder a própria vida, são expressões evangélicas sinónimas de morte para o pecado e abertura aos apelos da graça. O cristianismo não é, pois, sinónimo de facilidade nem de fuga do sofrimento. O esplendor da manhã da Ressurreição é sempre precedido pelas trevas da Sexta-Feira Santa. Para seguir a Jesus, é necessário passar pela porta estreita da dor e do abandono. Mas é só percorrendo esta via que se chega à vida.
* Seguir o Senhor é aceitar os outros
Acolher com generosidade os outros (quer sejam os apóstolos, quer sejam os pobres e os pequenos) é sinal de fidelidade ao mandamento novo do amor fraterno sem fronteiras. Não é só acolhimento (como, de resto, temos a tendência a fazer) do companheiro, do familiar ou do amigo, mas é também o acolhimento do estranho que pode causar dificuldades, daquele que vem de longe, do pobre, daquele que não pode pagar.
É, pois, um acolhimento que convida à renúncia, à disponibilidade, à gratuitidade, porque se vê nessas pessoas o grande Peregrino que não tinha sequer uma pedra onde reclinar a cabeça (cf. Mt 8,20). No que tem fome, no que tem sede, no que morre por falta dos alimentos necessários, no peregrino e no estranho e no estrangeiro, nos que nada têm para se cobrir e não têm onde morar (ou onde cair mortos), no prisioneiro e em todos os que sofrem física ou moralmente... é Jesus que bate à porta do cristão e pede hospitalidade (cf. Mt 25, 35ss).
* Acolhimento como empatia
Mas as modalidades do acolhimento não se reduzem a essas situações de extrema miséria e carência. Manifestam-se também em outras situações: na atenção ao outro (sobretudo quando não temos nenhuma vontade disso), na capacidade de diálogo (significa também aceitar ser objeto de contradição, começando por deixar falar também os outros), no esforço de compreensão das razões dos outros (tenham elas ou não peso lógico).
No fundo, é uma atitude, uma disponibilidade, afinal de contas, um amor, que sabe acolher sem espírito hipercrítico, sem desconfianças e preconceitos de base, mesmo quando se notam aspectos limitativos e até de má vontade por parte de quem «está diante de nós». Acolher com simpatia é ser capaz de não «apagar o Espírito», que se manifesta e vive em certos movimentos eclesiais, que anima grupos e instituições cujos métodos e opções talvez não partilhemos; é ser capaz de respeitar e confiar mais na pessoa que nas organizações, instituições ou movimentos, sejam elas quais forem.
* A medida do nosso cristianismo
Para os antigos, a hospitalidade era sagrada. E, como regra, ainda o é hoje para vários povos, sobretudo os pobres, onde o hóspede é recebido e respeitado com espontaneidade e humanidade. E, a propósito, devo acrescentar que é um facto comprovado pela experiência que os pobres repartem com mais facilidade o pouco que têm com quem tem menos que eles.
Ao contrário, especialmente nos países ricos e opulentos, o estrangeiro (e os tempos de hoje são férteis em constatações destas) é considerado um intruso, um inimigo a combater e a eliminar. Mais: podemos dizer que, quando a hospitalidade ainda se pratica nesses países, é condicionada ao interesse. Tornou-se uma indústria, uma fonte de receita.
Dito doutra maneira, não se aceitam de bom grado senão os que vêm como turistas. E, como se sabe, o turista é recebido porque traz dinheiro e riqueza. E, quando se «suporta» o intruso ou o imigrante ilegal, é por motivos que, afinal, se resumem todos à exploração de uma mão de obra mais barata. Os exemplos multiplicam-se a todo o instante. Não é caso para entrar na polémica política que radicaliza as discussões sobre o problema da imigração, mas é necessário que fique claro que os princípios de solidariedade e de ajuda a quem realmente precisa são sempre válidos.
É isso mesmo! Também os trabalhadores estrangeiros e os migrantes de outras zonas da mesma nação encontram um lugar na nossa sociedade, sobretudo enquanto fornecem, em condições económicas mais vantajosas, a mão-de-obra que é necessária. Mas, não será que, mais do que «acolhidos», são «suportados» como um mal menor? Em muitos caos, vivem em «guetos» e em situações infra-humanas, sujeitando-se a condições de trabalho injustas. Pois bem, o cristão não se pode esquecer do citado capítulo 25 de S. Mateus. Aí temos a medida do nosso cristianismo.
* Renunciar a nós próprios
A hospitalidade e o acolhimento, sem esper interesses escondidos e sem segundas intenções, devem ser um dos sinais que contradistinguem o cristão. De qualquer forma, falhar neste campo essencial deve ser motivo de um sério exame de consciência. O sentido do acolhimento (material e moral) é um dos sinais mais seguros para medir a real fidelidade ao Evangelho por parte das nossas comunidades cristãs e também dos indivíduos.
As manifestações de xenofobia, os gestos de intolerância e as reacções violentas contra os estrangeiros - e, claro, também contra os que fazem parte do nosso mundo quotidiano - revelam o rosto anti-cristão e anti-evangélico de comunidades só aparentemente cristãs e praticantes. Tudo isso está em contradição com aquilo que deveria ser a nossa própria maneira de ser e de sentir. Por isso, Jesus não duvida mesmo em usar uma linguagem dura para nos convencer de que os critérios da actuação dos cristãos devem ser traçados não segundo a nossa, mas sim segundo a mentalidade dele. Só os seus critérios são critérios de salvação e de promoção para nós e para os outros.
«A festa hodierna é antiquíssima: foi inserida no Santoral romano muito antes da do Natal. No século IV, celebravam-se já três missas: uma em S. Pedro, no Vaticano; outra em S. Paulo extra-muros, e a terceira nas Catacumbas de S. Sebastião, onde provavelmente terão sido escondidos os corpos dos dois apóstolos durante um certo período de tempo».
S. Pedro
«Simão era um pescador de Betsaida (cf. Lc 5,3; Jo 1,14) que se tinha estabelecido mais tarde em Cafarnaum (cf. Mc 1,21.29). Foi o irmão André que o convidou a seguir a Jesus (cf. Jo 1,42). Mas Simão certamente terá sido preparado para este encontro por João Baptista. Cristo muda-lhe o nome e chama-lhe «Pedra» (cf. Mt 16 ,17-19; Jo 21,15-17), para consubstanciar na sua pessoa o tema da pedra fundamental. Simão Pedro é uma das primeiras testemunhas que vê o túmulo vazio (cf. Jo 20,6) e tem uma aparição especial de Jesus ressuscitado (cf. Lc 24,34)».
«Depois da ascensão, Pedro assume logo a direcção da comunidade cristã (cf. Act 1,15; 15,7), enuncia o esquema da Boa Nova (cf. Act 2,14-41) e é o primeiro a tomar consciência da necessidade de abrir a Igreja aos pagãos (cf. Act, cc 10-11). Esta missão espiritual, porém, não o isenta da sua condição humana nem das deficiências do seu temperamento (cf. Mt 10,41; 14,29.66-72; Jo 13,6; 18,10; Mt 14,29-31). Por sua vez, Paulo não se exime em o criticar e contradizer na famosa discussão de Antioquia (cf. Act 15; Gl 2,11-14), convidando-o a livrar-se das práticas hebraicas. Com efeito, parece que, sob este ponto de vista, Pedro tenha levado algum tempo a abrir o espírito e que fosse levado a considerar os cristãos de origem pagã como uma comunidade inferior à dos cristãos de origem hebraica (cf. Act 6,1-2). Quando Pedro chega a Roma, torna-se o apóstolo de todos. É então que cumpre plenamente a sua missão de "pedra angular", reunindo em um só "edifício" os judeus e os pagãos e corroborando esta missão com o derramamento do seu sangue».
S. Paulo
«Paulo, depois da sua conversão na estrada de Damasco, percorre, em quatro ou cinco viagens, o Mediterrâneo. Faz a primeira viagem em companhia de Barnabé (cf. Act 13-14). Partem de Antioquia, fazem uma paragem na Ilha de Chipre e depois percorrem a actual Turquia. Depois do convenho dos apóstolos em Jerusalém, Paulo inicia uma segunda viagem, desta vez expressamente como "enviado dos Doze" (cf. Act 13,16-18,22). Volta a atravessar a Turquia, evangeliza a Frígia e a Galácia, onde adoece (cf. Gl 4,13). Passa depois à Europa juntamente com Lucas e funda a comunidade de Filipos (Grécia setentrional). Depois de um período de detenção, evangeliza a Grécia: em Atenas, a sua missão encalha perante as teorias dos filósofos; em Corinto, funda a comunidade que lhe causa mais problemas. Depois disso, regressa a Antioquia».
«Uma terceira viagem (cf. Act 18,23-21,17) vê-o de volta às Igrejas fundadas na actual Turquia, especialmente Éfeso e, depois, na Grécia e Corinto. De passagem por Mileto, anuncia aos anciãos as suas próximas provas. Com efeito, pouco depois do seu regresso a Jerusalém, é aprisionado pelos hebreus e metido na prisão (cf. Act 21). Sendo, porém, cidadão romano, Paulo apela a Roma».
«Inicia assim uma quarta viagem em direcção a Roma, mas não já em estado de liberdade (cf. Act 21-26). Chega a Roma por volta do ano 60 ou 61, sendo detido na prisão até ao ano de 63. Entretanto, aproveitando algumas facilidades, entra em contacto frequente com os cristãos da cidade e escreve as chamadas "epístolas da prisão". Libertado da prisão em 63, com alguma probabilidade, faz a sua última viagem a Espanha (cf. Rm 15,24-28) ou às comunidades a cargo de Timóteo e Tito, aos quais escreve Cartas que deixam entrever o seu próximo fim. Feito de novo prisioneiro, Paulo sofre o martírio por volta do ano 67».
Pedro e Paulo
«Pedro e Paulo: dois nomes que, ao longo dos séculos, personificaram a Igreja inteira na sua ininterrupta Tradição. Aos dois primeiros mestres da fé chegou-se até a "confessar" os pecados no Confiteor (da missa), reconhecendo justamente neles a Igreja histórica. Também para os orientais os dois "irmãos" são sinónimo de todo o colégio apostólico, como pedras fundamentais da fé».
«Ainda hoje, o Papa invoca a autoridade dos santos apóstolos Pedro e Paulo quando, nos seus actos oficiais, pretende referir a Tradição à sua fonte: a Palavra de Deus. Só da escuta dessa Palavra no Espírito, a Igreja pode "tornar-se perfeita no amor em união com o Papa, com os Bispos e toda a ordem sacerdotal"» (traduzido de Messale dell'Assemblea Cristiana).
1ª leitura (Zc 12,10-11; 13,1): Derramarei sobre os descendentes de David e sobre os outros povos de Jerusalém o espírito de misericórdia e o espírito da oração. Eles hão-de olhar para aquele que trespassaram e farão luto por ele, como aqueles que choram pelo seu único filho. Hão-de fazer um luto a sério, como os que perderam o seu primogénito. Nesse dia, o luto em Jerusalém será tão grande como o luto por Hadad-Rimon na planície de Meguido. Nesse dia, jorrará uma nascente para a casa de David e para os habitantes de Jerusalém, a fim de lavar o pecado a impureza.
Derramarei sobre todos o espírito de misericórdia e oração.
Não se sabe exatamente a quem se refere Zacarias quando fala de um justo e inocente que é «trespassado» e pelo qual se faz luto a sério. Também nada se sabe das circunstâncias dramáticas em que isso terá acontecido. Ou não será que esta dificuldade nos sugere para ver nas palavras de Zacarias algo mais do que a simples leitura material? À primeira vista, não parece nenhuma possibilidade descabida. Mas, mesmo assim, é mera especulação. É que, mesmo que se soubesse, continuaria de pé a questão de saber por que motivo a leitura é escolhida para este domingo. De qualquer forma, a escolha óbvia parece-me dever-se ao facto de este trecho ter a ver com o texto evangélico. Sendo assim, há o propósito de associar, digamos, a profecia de Zacarias a Cristo trespassado na cruz pela lança dum soldado. Agora, uma outra coisa é certa: a leitura de Zacarias associa também a esta figura do justo trespassado a capacidade de ele ser como que uma nascente para Israel e para os habitantes de Jerusalém. Então, graças ao seu sofrimento, as pessoas receberem o espírito de graça e de oração.
PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTE, VEJA EM BAIXO.
2ª leitura (Gl 3,26-29): É pela fé que todos sois filhos de Deus em união com Cristo Jesus. Vós fostes batizados pela união com Cristo e agora, pela fé, estais revestidos com a vida do próprio Cristo. Por isso, não há diferença entre judeu e gentio, entre escravo e livre, entre homem e mulher. Todos vós sois um só em união com Cristo Jesus. Se pertenceis a Cristo, então sois descendentes de Abraão e, assim, recebereis o que Deus prometeu.
É pela fé e em união com Cristo que somos filhos de Deus.
Esta leitura está inserida num contexto em que S. Paulo polemiza contra os chamados judaizantes, que defendem que a salvação das pessoas depende do facto de as elas aderirem às prescrições da Lei de Moisés. Ora, embora respeitando essa Lei (até porque assim Paulo o confessa por ser, de facto, um fervoroso judeu), o que ele pretende é acentuar que, na base da construção cristã, deve estar claramente Cristo. Sem esse princípio, poderá ser o que quisermos mas não construção cristã. E então, nesse aspeto, talvez tenhamos que nos questionar nos dias de hoje quanto àquilo que na nossa vida cristã tem mais importância. Ou seja, não será que, hoje, como nos primeiros tempos, «ligamos» demais a uma série de prescrições e devoções que, embora dignas de todo o respeito, não têm sentido se se prescinde de Cristo na atuação de todos os dias? Por isso, é justo repetir com Paulo que «é pela fé que todos somos filhos de Deus em união com Jesus Cristo».
PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.
Evangelho (Lc 9,18-24):Um dia, quando Jesus estava sozinho em oração, os discípulos foram ter com Ele e Ele perguntou-lhes: «Quem dizem as multidões que Eu sou?». «Há quem diga que tu és João Baptista» - responderam eles - «outros dizem que és Elias, e outros ainda que és um dos profetas de antigamente que ressuscitou». Disse-lhes Ele: «E vós quem dizeis que Eu sou?». Pedro respondeu: «Tu és o Messias de Deus». Jesus deu-lhes ordens severas para não falarem disto a ninguém. E disse-lhes também: «O Filho do Homem tem que sofrer muito e ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos doutores da Lei. Será condenado à morte, mas, três dias depois, ressuscitará». Depois, disse a todos: «Se alguém quer ser meu discípulo, tem que se esquecer de si mesmo, tomar a sua cruz todos os dias e seguir-me. Pois quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á, mas quem perder a sua vida por causa de mim ganhá-la-á».
Quem perder a sua vida por minha causa salvá-la-á.
Quando Jesus pergunta aos seus discípulos o que se diz da sua pessoa, trata-se, de alguma forma, de uma pergunta retórica. A sua intenção é claramente fazer-lhes uma pergunta mais pessoal, mais importante e mais empenhativa: «E, para vós, quem sou Eu»? Ora, há entre estas duas perguntas uma diferença que acho essencial: o que os outros pensam de Jesus faz parte da história, digamos assim; não tem a ver com a minha vida senão indiretamente. De alguma forma, a Jesus não interessa saber o que os outros pensam e dizem dele. O que lhe interessa é o que eu penso e digo dele. Ora, saber o que eu (e não só os outros) penso de Jesus, isso corresponde a dizer o que é que Ele é para mim hoje. Por outras palavras, isso significa conhecê-lo pessoalmente, como amigo, não só como uma «matéria» de estudo e do passado. Esta forma de pensar muda totalmente a perspetiva e significa pô-lo acima de todos os problemas e de todas as preocupações. Isso quer dizer também que devo levar a sério a resposta e profissão de fé de Pedro: «Tu és o Messias de Deus». Ora, não é possível pronunciar essa frase com superficialidade. Dizer que Ele é o Messias e o Filho de Deus é algo que empenha toda a vida. E então, nesse caso, entende-se que fiquemos habilitados a sacrificar tudo o que é a nossa vida pela causa de Jesus. E, nessa perspetiva, então «perder» a vida por Ele é o mesmo que ganhá-la de verdade.
PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.
* Derramarei sobre todos o espírito de misericórdia e de oração.
* É pela fé que todos somos filhos de Deus em união com Cristo Jesus.
* Quem perder a sua vida por minha causa salvá-la-á.
E VÓS,
QUEM
DIZEIS
QUE
EU SOU?
Por motivos imprevistos, são propostos, neste lugar, os comentários - algo complicados, devo admitir - do Messale dell'Assemblea Cristiana, sendo a tradução e a adaptação da minha responsabilidade, bem como os subtítulos.
* A morte como via para a vida
Jesus Cristo tem uma identidade pessoal a salvar e a revelar e uma missão a cumprir. Ora, para revelar a sua identidade e para cumprir a sua missão, para salvar a verdade da sua vida, Ele está disposto a tudo, até a perder a sua vida física. A decisão «incondicional» e absoluta de ser Ele mesmo e levar a cabo a sua missão a «todo o custo» é o ato supremo de fidelidade (obediência) a Deus.
* Cumprimento da promessa
O perder a própria vida física (morrer) é o «sinal», a verificação, a «prova» absoluta da fidelidade à própria identidade e à missão recebida do Pai. É, por isso, o ato com o qual a vida é salva. Ora, qual é a identidade de Cristo? Ele é verdadeiro homem e verdadeiro Deus. Jesus salva-nos por aquilo que «é». Ele é a «reconciliação» entre o homem e Deus, a comunhão «perfeita» do homem com Deus. Mas é preciso acrescentar de imediato: Jesus salva-nos com o que «faz». E o que faz (a missão) depende da aceitação ou recusa da parte daqueles que O escutam.
Jesus provoca os apóstolos a dizerem o que pensam dele, da sua identidade e missão (Evangelho). Pedro responde por todos: «Tu és o Cristo de Deus!». Há divergência entre como os apóstolos entendem o conceito de Messias e o que Ele é de facto. (Os apóstolos) refletem a mentalidade corrente, de cariz político, ao contrário de Jesus. Eles entendem o Messias como poder, e não Jesus como amor. Se Deus é amor, abertura, comunhão, a Ele, que é Homem-Deus, não resta outra via senão o amor. Só um homem-amor pode ser a revelação de Deus-amor.
* A economia do amor de Deus
Em termos rigorosos, Jesus poderia ter reconduzido o homem a Deus, levar a cabo a obra de «pacificação» do homem com Deus e dos homens entre si, também através do poder usado por amor. Mas o Homem-Jesus opta por cumprir a sua missão mediante o amor «puro», ou seja, unicamente com o amor, com o apelo às consciências, com a doação, o serviço, a paciência, a doçura, os meios pobres. Porque´esta é a única via para a transformação dos corações.
* Amor fiel ao Pai e aos irmãos
Jesus jamais poderá aceitar ser o que os seus co-nacionais querem que ele seja. Ele será o que Pai quer que seja, a verdadeira imagem de Deus e a verdadeira imagem do homem, o verdadeiro rosto de Deus e o verdadeiro rosto do homem.
Jesus sabe que a fidelidade a esta decisão, para atuar o projeto do Pai, num mundo dominado pelo pecado, lhe causará muito sofrimento, a recusa por parte do poder (anciãos do povo, sumos-sacerdotes e escribas) e, por fim, uma morte violenta. Todavia, Ele aceita livremente esta consequência da sua decisão para não trair o amor fiel ao Pai e ao homem.
Pode-se imaginar o drama de consciência de Jesus: Ele encarrega-se de cumprir uma vocação messiânica, e tem intenção de a levar até ao fim com doçura e com meios pobres e, ao mesmo tempo, vê que não poderá levar a bom termo a sua obra porque virá a morte antes da sua realização. E então? Sem dúvida, Deus quer que seja para além da morte que Jesus cumpra a sua missão messiânica. Sem dúvida, Deus não o abandonará na sua morte. A morte violenta de Jesus tem duas faces: por um lado, revela o poder do pecado e, por outro, o poder do amor mais forte que a morte. Paradoxalmente, a morte violenta de Jesus, enquanto ato de amor absoluto, é, ao mesmo tempo, a revelação de Deus ao homem e do homem a si mesmo.
* Morte de Cristo - ressurreição do homem
Enquanto ato de amor absoluto, a morte de Cristo é a «ressurreição do homem», é a fonte da vida. Porque a vida alimenta as suas raízes no amor. Uma fonte a que acorre, consciente ou inconscientemente, a humanidade. Jesus é o homem totalmente aberto, no qual as paredes da existência são totalmente abatidas, de modo que Ele é integralmente «passagem» (Páscoa)... O futuro do homem depende da cruz, a redenção do homem é a cruz. E o homem não se atingirá verdadeiramente a si mesmo de outra maneira; a não ser permitindo o derrube das paredes da sua própria existência, voltando o olhar para o «trespassado» (1ª leitura) e seguindo Aquele que, em vestes de trespassado, de homem de lado aberto, abriu a via do futuro (J. Ratzinger).
* Perseguição, distintivo do cristão
É um facto facilmente constatável que o Povo de Deus experimentou, durante toda a sua história, a violenta oposição e perseguição dos povos vizinhos. De resto, não era por ser povo eleito que se poderia achar com direito a outro tipo de tratamento. O mistério da perseguição, se bem que ligado ao problema do sofrimento, é distinto deste. Enquanto o sofrimento é próprio de toda a gente, a perseguição (que naturalmente implica, também ela, sofrimento) diz respeito apenas aos justos. Precisamente na medida em que são justos e, pela sua vida e atitude, representam uma acusação contra aqueles que não atuam em conformidade com o que os justos transmitem sobre Jesus.
No que se refere ao AT, a perseguição atinge especialmente os profetas, por causa da sua dedicação e amor a Javé, como consequência da fidelidade e rigor que devem à Palavra. O profeta Jeremias (que fornece abundante material para a reflexão de hoje) ocupa entre os perseguidos um lugar de destaque. A sua vida é a demonstração cabal da relação estreita entre perseguição e missão profética.
Ora bem, da mesma forma, a perseguição, bem como o sofrimento que dela deriva, será um distintivo do cristão realmente incorporado na dinâmica daquele «que fala em nome de Deus». Todo o cristão deve ter a noção clara da obrigação que lhe incumbe de falar em nome de Deus. Daí ter que se afirmar que todo o cristão deve ser profeta. E é certo e sabido que quem está de forma sincera comprometido na defesa dos interesses dos mais necessitados, bem como na difusão dos valores evangélicos, será objeto de oposição e, por vezes, de perseguição, «porque, assim como perseguiram o Mestre, assim também hão-de perseguir os seus discípulos» (cf. Jo 15, 20).
* Figura profética: o Servo de Javé
Jesus, nesse aspeto, não foi exceção. Melhor dizendo, Ele é que é o paradigma do Justo que sofre por defender a justiça. Por isso se lhe aplica plenamente o título de «Servo de Javé». O Servo sofredor é tal na precisa medida em que cumpre os planos de Deus. Com efeito, como os planos de Deus são diferentes dos planos dos homens, isso causa «atrito» e, por isso, pode levar à perseguição. E os sofrimentos que dela derivam são uma situação «normal» em que se encontram envolvidos tanto os profetas como quem quer que procure fazer a vontade de Deus. Por isso, todo o profeta (e o cristão deve ser um profeta, ou seja, alguém que fala e, com a vida, é testemunha duma outra realidade em nome de Deus) tem a pagar como tributo à sua condição de testemunha de Deus a agonia duma vida cheia de contrariedades e perseguições. O drama do justo perseguido é descrito pelo profeta Isaías (Is 42,1-7; 49,1-6; 50,4-9; 52,13–53,12), e é também o conteúdo do livro da Sabedoria, segundo o qual o justo se torna insuportável para o ímpio só em vê-lo (cf. Sb 2,12-14).
Ao condenar Jesus ao supremo suplício da cruz, os judeus continuam a injustiça dos seus antepassados que, perseguindo os profetas e Jesus, se opõem ao plano de Deus. Mas, no fim, os cálculos do homem pecador revelam-se sem perspetiva. Os «príncipes deste mundo», ao crucificarem o «Senhor da glória», na realidade, tornam-se instrumentos da sabedoria divina (cf. 1Cor 2,8), porque a morte de Cristo é salvação para o mundo e glória de Deus, enquanto a fraqueza do mundo é a fortaleza de Deus.
* Perseguição é bem-aventurança
Nesse aspeto, segundo os ensinamentos de Jesus, a perseguição é inclusivamente tema, ou melhor, objeto das bem-aventuranças: «Felizes sereis quando vos insultarem e vos perseguirem...» (cf. Mt 5,11). A perseguição, como disse acima, é inevitável. É o próprio Jesus que o diz: «O servo não é maior que o seu senhor. Se me perseguiram a Mim, também vos hão-de perseguir a vós». Empenhar-se, pois, em viver segundo os caminhos do Senhor implica encontrar no próprio caminho uma série de dificuldades e problemas sempre novos e cada vez maiores. Num mundo dominado pelo egoísmo e pela procura do próprio interesse, quem prega o amor, a pobreza, o desapego e o perdão, será perseguido.
Todavia, quem é perseguido sabe que os perseguidores só têm o poder de matar o corpo, mas não têm o poder de matar a alma. Por isso mesmo, o cristão até é capaz de atingir um momento em que experimenta a capacidade de suportar a perseguição com alegria. Exemplo disso são os apóstolos, após o Pentecostes: «Eles saíram do Sinédrio contentes por terem sido ultrajados por amor do nome de Jesus» (cf. Act 5,41). S. Paulo diz o mesmo de forma bem clara na sua primeira Carta aos Coríntios: «Estou cheio de alegria em cada tribulação» (1Cor 7,4).
* Perseguição não é vitimismo
Até à realização do II Concílio do Vaticano, prevaleceu uma mentalidade bastante fechada a nível de Igreja em relação ao mundo. Aprendia-se que era necessário «odiar», desprezar e fugir do mundo. E muitos cristãos tomavam isso rigorosamente à letra (pelo menos no plano teórico e doutrinal), embora soubessem, ou pelo menos intuíssem, de alguma forma, que, tendo sido criado por Deus, o mundo era uma coisa boa. Infelizmente, há que reconhecer que dessa mentalidade restam ainda muitos sinais.
Ora bem, a expressão «mundo», particularmente na linha de pensamento do evangelista João, indica não uma realidade física, mas sim uma realidade moral, na medida em que significa o que no mundo há de mal. E isso, como parece óbvio, existe também dentro da Igreja e dentro de cada um dos seus membros. Mas a Igreja, digamos assim, não está propriamente em contraposição ao Mundo, mas sim em contraposição ao Mal. A Igreja, sobretudo nos tempos que correm (é fácil constatá-lo), como regra, já não é considerada como castelo encantado que é preciso defender de todas as investidas do «mundo» (antes pelo contrário).
Nem é preciso que continue a alimentar uma semelhante pretensão. Ela é considerada, isso sim, como o fermento que quer permear com os valores evangélicos a grande massa da humanidade. Espero bem que já tenha sido ultrapassada a convicção - que parecia comum e indiscutível - de que toda a massa se deve tornar fermento. Não, a massa será sempre massa e o fermento será sempre apenas uma pequena parte inserida na massa. Isso talvez evite muitos mal-entendidos e muitas ilusões alimentadas de maneira incorreta. Uma atitude negativa neste campo conduz a um estado de vitimismo que não resolve os problemas e não é nada saudável.
Mais do que uma doutrina ou um conjunto de regras, que é preciso defender contra todas as investidas dos «inúmeros» inimigos que andam por aí à solta, o cristianismo deve ser um fermento que leveda a massa, deve ser uma vida vivida, deve ser uma mudança constante de mentalidade segundo as teses evangélicas: um fermento para o mundo (passe a expressão!) sem excluir, naturalmente e antes de mais, os cristãos.
* A ação não é guerra defensiva
Em todo o caso, por mais que se queira dourar a pílula, é um facto que «pregar» e pôr em prática as bem-aventuranças (Sermão da Montanha) a favor da evangelização e da autêntica promoção humana conduz necessariamente à perseguição. A oposição entre a sabedoria mundana e a sabedoria divina é inevitável. Disso, acho eu, não nos deveremos admirar.
Mas devo acrescentar que nem sempre as perseguições de que a Igreja é objeto são devidas à sua fidelidade ao Evangelho. Oxalá fosse só por isso! Espero que isto não cause estranheza, mas, por vezes, a Igreja é também perseguida e obstaculizada por não ser fiel ao Evangelho (também pode acontecer e, infelizmente, acontece) e por não corresponder aos anseios dos tempos. Por vezes, a atitude dos cristãos denota alguma preguiça, o que se traduz em falta de fé, coragem e abertura ao sopro do Espírito. É doloroso verificar como ideias originalmente cristãs, tais como, por exemplo, a liberdade, a igualdade, os direitos da pessoa, e mesmo a democracia, tenham encontrado, em certos momentos e em certos setores da Igreja, quer na cúpula quer na base, opositores inflexíveis contra algo que, afinal, são valores; resistências incompreensíveis e até mesmo uma luta declarada.
Os limites humanos da Igreja e dos cristãos são visíveis assim nas conivências (conscientes ou inconscientes) com situações de injustiça e de poder, de medo, de hesitações, de silêncios, de falta de coragem e confiança. É certo que, em mais que um caso, as perseguições contra a Igreja têm a sua origem numa conceção errada que os perseguidores têm de religião. Mas é verdade também que se trata de uma conceção que, com alguma frequência, é induzida, senão mesmo provocada, justamente pelos que deviam vivê-la com muito mais autenticidade. Enfim, por outras palavras, às vezes, a hostilidade contra a Igreja parece nascer dum «amor desiludido» para com ela...
* Não é só essa perseguição
Mas, isso não significa uma super-simplificação das coisas? Até a um certo ponto, é isso mesmo. Nem sempre a perseguição é o resultado de uma atitude pouco autêntica da Igreja. É que há, sem sombra de dúvida, também uma outra perseguição que podemos classificar de «satânica». O agente do Mal continua a ser um facto e o fermento negro do mundo continua a difundir-se e ramificar-se como um cancro que corrói o tecido da humanidade. É assim como que uma espécie de «corpo místico do mal», com o qual, apesar de todos os gestos de boa vontade, não se pode entrar em diálogo, porque se trata de um inimigo irredutível, do inimigo por excelência, que luta contra Cristo e contra o seu Reino. As suas vítimas preferidas são naturalmente aquelas que, na construção dum mundo mais humano, procuram seguiros passos traçados por Jesus e trilhados pelos seus discípulos.
Seria uma atitude de menoridade não estar consciente de que o Mal existe realmente e que se consubstancia em todas as tentativas, declaradas ou não, de combater, de todas as formas, mesmo ilegítimas, os valores veiculados pelos adoradores da divindade e, de modo especial, por aqueles que se dizem cristãos. Há claramente indivíduos e grupos apostados em combater e neutralizar os valores que, na ótica de Cristo, devem ser fermento da humanidade, a começar pelos valores da vida e da dignidade humana.
Veneráveis Irmãos no episcopado e no sacerdócio, Caríssimos Irmãos e Irmãs!
O dia do Senhor — como foi definido o domingo, desde os tempos apostólicos —,(1) mereceu sempre, na história da Igreja, uma consideração privilegiada devido à sua estreita conexão com o próprio núcleo do mistério cristão. O domingo, de facto, recorda, no ritmo semanal do tempo, o dia da ressurreição de Cristo. É a Páscoa da semana, na qual se celebra a vitória de Cristo sobre o pecado e a morte, o cumprimento n'Ele da primeira criação e o início da « nova criação » (cf. 2 Cor 5,17). É o dia da evocação adorante e grata do primeiro dia do mundo e, ao mesmo tempo, da prefiguração, vivida na esperança, do « último dia », quando Cristo vier na glória (cf. Act 1,11; 1 Tes 4,13-17) e renovar todas as coisas (cf. Ap 21,5).
Ao domingo, portanto, aplica-se, com muito acerto, a exclamação do Salmista: « Este é o dia que Senhor fez: exultemos e cantemos de alegria » (118 [117], 24). Este convite à alegria, que a liturgia de Páscoa assume como próprio, traz em si o sinal daquele alvoroço que se apoderou das mulheres — elas que tinham assistido à crucifixão de Cristo — quando, dirigindo-se ao sepulcro « muito cedo, no primeiro dia depois di sábado » (Mc 16,2), o encontraram vazio. É convite a reviver, de algum modo, a experiência dos dois discípulos de Emaús, que sentiram « o coração a arder no peito », quando o Ressuscitado caminhava com eles, explicando as Escrituras e revelando-Se ao « partir do pão » (cf. Lc 24,32.35). É o eco da alegria, ao princípio hesitante e depois incontida, que os Apóstolos experimentaram na tarde daquele mesmo dia, quando foram visitados por Jesus ressuscitado e receberam o dom da sua paz e do seu Espírito (cf. Jo 20,1923).
A ressurreição de Jesus é o dado primordial sobre o qual se apoia a fé cristã (cf. 1 Cor 15,14): estupenda realidade, captada plenamente à luz da fé, mas comprovada historicamente por aqueles que tiveram o privilégio de ver o Senhor ressuscitado; acontecimento admirável que não só se insere, de modo absolutamente singular, na história dos homens, mas que se coloca no centro do mistério do tempo. Com efeito, a Cristo « pertence o tempo e a eternidade », como lembra o rito de preparação do círio pascal, na sugestiva liturgia da noite de Páscoa. Por isso, a Igreja, ao comemorar, não só uma vez ao ano mas em cada domingo, o dia da ressurreição de Cristo, deseja indicar a cada geração aquilo que constitui o eixo fundamental da história, ao qual fazem referência o mistério das origens e o do destino final do mundo.
Portanto, pode-se com razão dizer, como sugere a homilia de um autor do século IV, que o « dia do Senhor » é o « senhor dos dias ».(2) Todos os que tiveram a graça de crer no Senhor ressuscitado não podem deixar de acolher o significado deste dia semanal, com o grande entusiasmo que fazia S. Jerónimo dizer: « O domingo é o dia da ressurreição, é o dia dos cristãos, é o nosso dia ».(3) De facto, ele é para os cristãos o « principal dia de festa »,(4) estabelecido não só para dividir a sucessão do tempo, mas para revelar o seu sentido profundo.
A sua importância fundamental, reconhecida continuamente ao longo de dois mil anos de história, foi reafirmada vigorosamente pelo Concílio Vaticano II: « Por tradição apostólica, que nasceu do próprio dia da Ressurreição de Cristo, a Igreja celebra o mistério pascal todos os oito dias, no dia que bem se denomina do Senhor ou domingo ».(5) Paulo VI ressaltou novamente a sua importância, quando aprovou o novo Calendário Geral romano e as Normas universais que regulam o ordenamento do Ano Litúrgico.(6) A iminência do terceiro milénio, ao solicitar os crentes a reflectirem, à luz de Cristo, sobre o caminho da história, convida-os também a redescobrir, com maior ímpeto, o sentido do domingo: o seu « mistério », o valor da sua celebração, o seu significado para a existência cristã e humana.
Com satisfação, vou tomando conhecimento das inúmeras intervenções do Magistério e das iniciativas pastorais que, vós, veneráveis Irmãos no episcopado, quer individualmente quer em conjunto — coadjuvados pelo vosso clero — realizastes sobre este tema importante nestes anos pós-conciliares. No limiar do Grande Jubileu do ano 2000, quis oferecer-vos esta Carta Apostólica para alentar o vosso empenho pastoral num sector tão vital. Mas simultaneamente desejo dirigir-me a todos vós, caríssimos fiéis, tornando-me de algum modo presente espiritualmente nas várias comunidades onde, cada domingo, vos reunis com os vossos respetivos Pastores para celebrar a Eucaristia e o « dia do Senhor ». Muitas das reflexões e sentimentos que animam esta Carta Apostólica maturaram durante o meu serviço episcopal em Cracóvia e mais tarde, depois de ter assumido o ministério de Bispo de Roma e Sucessor de Pedro, nas visitas às paróquias romanas, realizadas com regularidade precisamente nos domingos dos diversos períodos do ano litúrgico. Deste modo, parece-me prosseguir o diálogo vivo que gosto de manter com os fiéis, refletindo convosco sobre o sentido do domingo e sublinhando as razões para vivê-lo como verdadeiro « dia do Senhor », inclusivamente nas novas circunstâncias do nosso tempo.
Ninguém desconhece, com efeito, que, num passado relativamente recente, a « santificação » do domingo era facilitada, nos países de tradição cristã, por uma ampla participação popular e, inclusive, pela organização da sociedade civil, que previa o descanso dominical como ponto indiscutível na legislação relativa às várias actividades laborativas. Hoje, porém, mesmo nos países onde as leis sancionam o carácter festivo deste dia, a evolução das condições socioeconómicas acabou por modificar profundamente os comportamentos coletivos e, consequentemente, a fisionomia do domingo. Impôs-se amplamente o costume do « fim de semana », entendido como momento semanal de distensão, transcorrido, talvez, longe da morada habitual e caracterizado, com frequência, pela participação em atividades culturais, políticas e desportivas, cuja realização coincide precisamente com os dias festivos. Trata-se de um fenómeno social e cultural que não deixa, por certo, de ter elementos positivos, na medida em que pode contribuir, no respeito de valores autênticos, para o desenvolvimento humano e o progresso no conjunto da vida social. Isto é devido, não só à necessidade do descanso, mas também à exigência de « festejar » que está dentro do ser humano. Infelizmente, quando o domingo perde o significado original e se reduz a puro « fim de semana », pode acontecer que o homem permaneça cerrado num horizonte tão restrito, que não mais lhe permite ver o « céu ». Então, mesmo bem trajado, torna-se intimamente incapaz de « festejar ».(7)
Aos discípulos de Cristo, contudo, é-lhes pedido que não confundam a celebração do domingo, que deve ser uma verdadeira santificação do dia Senhor, com o « fim de semana » entendido fundamentalmente como tempo de mero repouso ou de diversão. Urge, a este respeito, uma autêntica maturidade espiritual, que ajude os cristãos a « serem eles próprios », plenamente coerentes com o dom da fé, sempre prontos a mostrar a esperança neles depositada (cf. 1 Ped 3,15). Isto implica também uma compreensão mais profunda do domingo, para poder vivê-lo, inclusivamente em situações difíceis, com plena docilidade ao Espírito Santo.
Deste ponto de vista, a situação apresenta-se bastante diversificada. Por um lado, temos o exemplo de alguns Igrejas jovens que demonstram com quanto fervor seja possível animar a celebração do domingo, tanto nas cidades como nas aldeias mais afastadas. Ao contrário, noutras regiões, por causa das dificuldades sociológicas mencionadas e talvez da falta de fortes motivações de fé, regista-se uma percentagem significativamente baixa de participantes na liturgia dominical. Na consciência de muitos fiéis parece enfraquecer não só o sentido da centralidade da Eucaristia, mas até mesmo o sentido do dever de dar graças ao Senhor, rezando-Lhe unido com os demais no seio da comunidade eclesial.
A tudo isto há que acrescentar que, não somente nos países de missão, mas também nos de antiga evangelização, pela insuficiência de sacerdotes, não se pode, às vezes, garantir a celebração eucarística dominical em todas as comunidades.
Diante deste cenário de novas situações e questões anexas, parece hoje mais necessário que nunca recuperar as profundas motivações doutrinais que estão na base do preceito eclesial, para que apareça bem claro a todos os fiéis o valor imprescindível do domingo na vida cristã. Agindo assim, prosseguimos no rasto da tradição perene da Igreja, evocada firmemente pelo Concílio Vaticano II quando ensinou que, ao domingo, « os fiéis devem reunir-se para participarem na Eucaristia e ouvirem a palavra de Deus, e assim recordarem a Paixão, Ressurreição e glória do Senhor Jesus e darem graças a Deus que os "regenerou para uma esperança viva pela Ressurreição de Jesus Cristo de entre os mortos" (1 Ped 1,3) ».(8)
Com efeito, o dever de santificar o domingo, sobretudo com a participação na Eucaristia e com um repouso permeado de alegria cristã e de fraternidade, é fácil de compreender se se consideram as múltiplas dimensões deste dia, que serão objecto da nossa atenção na presente Carta.
O domingo é um dia que está no âmago mesmo da vida cristã. Se, desde o início do meu Pontificado, não me cansei de repetir: « Não tenhais medo! Abri, melhor, escancarai as portas a Cristo »,(9) hoje neste mesmo sentido, gostaria de convidar vivamente a todos a redescobrirem o domingo: Não tenhais medo de dar o vosso tempo a Cristo! Sim, abramos o nosso tempo a Cristo, para que Ele possa iluminá-lo e dirigi-lo. É Ele quem conhece o segredo do tempo e o segredo da eternidade, e nos entrega o « seu dia », como um dom sempre novo do seu amor. Há-de-se implorar a graça da descoberta sempre mais profunda deste dia, não só para viver em plenitude as exigências próprias da fé, mas também para dar resposta concreta aos anseios íntimos e verdadeiros existentes em todo ser humano. O tempo dado a Cristo, nunca é tempo perdido, mas tempo conquistado para a profunda humanização das nossas relações e da nossa vida.