V DOMINGO DA QUARESMA
Temas de fundo |
1ª leitura (Is 43,16-21): Há muito tempo, o Senhor abriu um caminho através do mar, uma estrada pelas águas revoltas. Levou à destruição um exército poderoso, um exército de carros e cavaleiros. Eles ficaram aí sem nunca mais se levantarem, apagados como o pavio duma lâmpada! O Senhor diz: «Não tenhais saudados dos acontecimentos do passado nem penseis mais no que aconteceu há muito tempo. Reparai mas é nas coisas novas que Eu vou fazer e que já começaram a acontecer, como podeis constatar. Eu vou abrir uma passagem no deserto, onde farei correr fontes de água. Até os animais selvagens, como os chacais e as avestruzes, me hão-de honrar e louvar, quando Eu fizer correr rios no deserto para dar de beber ao meu povo escolhido. E o povo que Eu escolhi para mim mesmo e que há-de cantar os meus louvores».
* Não tenhais saudade das coisas do passado.
Esta leitura é tirada da segunda parte do livro do Profeta Isaías. O autor desta segunda parte é diferente do profeta Isaías propriamente dito. E ele terá vivido com os seus compatriotas no Cativeiro da Babilónia, até à chegada do rei persa Ciro. Este é que toma a decisão de promulgar o decreto pelo qual é concedida a liberdade ao povo de Deus. Mas os hebreus, com a sua experiência no cativeiro, apesar das palavras do profeta, não alimentam grandes perspetivas de libertação e como que se limitam a aceitar a situação. Mas este profeta sabe que tem o encargo de animar os exilados com o anúncio de uma libertação semelhante à que tinha sido realizada com o êxodo, que tinha dado início à libertação do povo da escravidão do Egipto. E o profeta cumpre o seu papel não obstante verifique certas resistências. Ora bem, quando o autor faz dizer ao Senhor que fará coisas novas, temos que ver as coisas nesse contexto e concluir que os seus conterrâneos estão a pensar e à espera de algo mais ou menos imediato. Isso, todavia, não significa que nós, hoje, não possamos fazer uma leitura escatológica - como se costuma dizer em linguagem técnica. Ou seja, para além das circunstâncias históricas contingentes, esta nova «criação» tem um significado messiânico. No conjunto das leituras deste domingo, esta primeira reveste-se então duma clara significação de libertação do peso e das amarras do pecado que prendem a pessoa na sua totalidade.
2ª leitura (Fl 3,8-14): Considero tudo como uma insignificância comparado com o que é muito mais valioso, ou seja, o conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor. Por Ele, eu deixei tudo o resto. Mais, tudo o resto para mim é como esterco, desde que possa ganhar Cristo e estar completamente unido a Ele. Não sou já eu que me salvo por mim mesmo, ou seja, em virtude da salvação que me advém do cumprimento da Lei, mas sim em virtude da salvação que me é dada pela fé em Cristo, a salvação que vem de Deus e se baseia na fé. Tudo o que eu quero é conhecer a Cristo e experimentar o poder da sua ressurreição, partilhando os seus sofrimentos e tornando-me semelhante a Ele na sua morte, na esperança de eu próprio ser ressuscitado da morte para a vida. Não estou a dizer com isto que já atingi esse objetivo ou que já cheguei à perfeição. Continuo a esforçar-me por merecer o prémio que Cristo Jesus já mereceu por mim. Claro que, meus irmãos, não julgo realmente que já o tenha alcançado. Mas o que eu sei é que há que esquecer o que está para trás de mim e fazer o meu melhor para alcançar o que está à minha frente. Por isso, corro em direção a essa meta, para ganhar o prémio, que é o chamamento de Deus, através de Jesus Cristo, para a vida lá de cima.
* Conhecer Jesus Cristo é que importa.
Todo o «arrazoado» de S. Paulo neste trecho aos cristãos de Filipos baseia-se numa realidade simples: desde que se admita que Jesus Cristo é que importa, o resto não deve ter senão importância relativa. Por isso, o cristão, já na posse da novidade cristã, deve tender a uma perfeita e total identificação com o mistério de Cristo. A fim de atingir a conformidade com a pessoa de Jesus Cristo, exige-se um profundo conhecimento do Senhor, a participação nos seus sofrimentos e um esforço contínuo para se manter em forma, digamos assim, para chegar à meta desejada. Isso quer dizer que, antes de qualquer esforço para alcançar a meta, há a necessidade de saber em nome de quem se faz a «corrida». Por outras palavras, muitas vezes, os batizados talvez não tenham ainda descoberto a sério este Jesus Cristo, que é a razão pela qual «correm» (devem «correr») na vida de todos os dias. Ou, por outras palavras ainda, a base que deve sustentar a vida do batizado é o seu enamoramento por Jesus Cristo. Sem isso, talvez até os exercícios mais ousados façam pouco sentido. É fácil intuir que, muitas vezes, se fazem certas coisas só «por medo do inferno» e não por amor de Jesus.
Evangelho (Jo 8,1-11): Jesus foi para o Monte das Oliveiras. No dia seguinte, voltou para o Templo, onde todos se reuniram à sua volta. Sentou-se e começou a ensiná-los. Os doutores da Lei e os fariseus trouxeram à sua presença uma mulher apanhada em flagrante adultério. «Mestre, disseram a Jesus, esta mulher foi apanhada em flagrante adultério. Na nossa Lei, Moisés ordena que uma mulher assim deve ser apedrejada até à morte. E tu o que dizes?». Eles disseram isto para fazer cair Jesus numa armadilha, para o poderem acusar. Mas Ele, inclinando-se para a terra, pôs-se escrever no chão com o dedo. Uma vez que eles estavam ali postados de pé a fazer-lhe perguntas, Ele levantou-se e disse-lhes: «Quem, de entre vós, não tiver cometido pecado, atire a primeira pedra!». E voltou a inclinar-se e a escrever no chão. Ao ouvirem isto, foram-se todos embora, a começar pelos mais velhos. Jesus ficou sozinho, com a mulher ali de pé. Levantou-se e disse-lhe: «Onde é que estão eles? Não ficou ninguém para te condenar?». «Não, senhor!», respondeu ela. «Pois bem, também Eu não te condeno. Vai e não tornes a pecar!».
* Vai em paz e não voltes a pecar.
Se não soubéssemos que é um texto estupendo exclusivo do evangelista S. João, até se poderia pensar tratar-se de uma página de S. Lucas, tal é a forma como ele manifesta a misericórdia de Deus. Seja como for, este facto é uma demonstração prática duma outra frase citada, por exemplo, pelo evangelista Mateus: «Prefiro a misericórdia ao sacrifício» (Mt 9,13; 12,7), que, por sua vez, cita o profeta Oseias (Os 6,6). Ora bem, é óbvio que a frase não significa que se esteja a condenar, de maneira nenhuma, os sacrifícios, mas sim a mera prática exterior. Da mesma forma, se pode dizer que, no episódio narrado por S. João, não se quer omitir a importância que é devida ao facto de aquela mulher ter procedido mal, mas sim que há sempre uma «saída» para as questões mais delicadas, porque, afinal de contas, «vale mais a misericórdia do que os sacrifícios». O próprio Jesus deixou muito claro que, mais importante que as aparências, é o coração das pessoas quando afirmou: «Eu não vim para chamar os justos, mas sim os pecadores» (cf. Lc 5,32). Ora bem, este é um pensamento que vem na linha, digamos assim, duma «tese» do profeta Ezequiel que diz: «Deus não quer a morte do pecador, mas que se converta e viva» (cf. Ez 33,11). Nesse sentido, esta leitura de João tem certas semelhanças com o texto evangélico do domingo passado (Parábola dum pai misericordioso). |
*Não tenhais saudades das coisas do passado. Farei coisas novas, que já começaram a acontecer, diz o Senhor. *Considero tudo uma insignificância em comparação com o conhecimento de Jesus Cristo. * Vai em paz e não voltes a pecar! |
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QUEM DE ENTRE VÓS ESTIVER SEM PECADO, ATIRE A PRIMEIRA PEDRA. |
Comentário traduzido e adaptado do texto da responsabilidade do «Messale dell'Assemblea Cristiana».
* A novidade da vida é um dom
«(Este) é um tema que se repete, mas que não perde eficácia: não basta observar a lei para ser justo diante de Deus. O fariseu (que se julga) observante não pode atirar a pedra contra a adúltera, como não o pode fazer o cristão praticante. E o quadro acaba por dar uma volta de cento e oitenta graus: onde existe miséria, onde há uma pessoa esmagada pelo peso das suas culpas, onde há um dom de "vida nova", há salvação (evangelho). Salvação gratuita para a adúltera e salvação inesperada para um povo humilhado pela deportação forçada:. "Eis que faço de novo todas as coisas"... Ao israelita desanimado e deportado era difícil esperar ainda, mas a palavra do profeta estimula-o a descobrir, nos últimos acontecimentos (a derrota da Babilónia e a intervenção de Ciro), a intervenção do próprio Deus, que está para realizar uma coisa nova: o passado e a própria libertação do Egipto serão superados pela nova realidade».
«Esta ação criadora de Deus que dá vida ao que é desértico e faz brotar águas abundantes da aridez do solo, torna-se realidade através do encontro com Cristo. Jesus é Aquele que, das trevas, tira um universo de luz, de uma pecadora adúltera faz uma crente, com uma multidão de pecadores constrói o seu povo, a Igreja. As palavras "não voltes a pecar" (Evangelho) são palavras de libertação e de novidade. Apelam à passagem do mundo do mal para um mundo novo graças à força de Cristo. Preenchendo a nossa esperança para além de todas as expetativas, Jesus formou a família de Deus, em que cada homem entra como filho. É Ele o primogénito do Reino, vindo a abrir-nos o caminho, a indicar-nos o itinerário da novidade que leva à felicidade».
* Vida nova e escolha de morte
«Nós somos o povo que Deus formou para si, porque Ele, com a sua água, tirou a sede ao deserto da nossa vida (1ª leitura). A adúltera é (também) a Igreja. A água do batismo é a novidade de vida. E Cristo repete-nos: "Vai e, daqui em diante, não voltes a pecar". Viver o próprio batismo, onde fomos "atingidos" por Cristo, é para Paulo sacrificar tudo para ganhar Cristo; participar no seu sofrimento, tornar-se conforme a Ele na morte, para chegar à ressurreição dos mortos, experimentando o poder da sua ressurreição. A escolha do caminho dos próprios falhanços torna-se escolha de ressurreição».
* Atirar com pedras é cómodo
«O julgar-se perfeito é a doença de quem não se olha ao espelho. Todos os rostos têm as suas rugas e, por detrás de uma fachada restaurada, esconde-se sempre uma mancha negra. E, no entanto, o sentido da culpa agita-se dentro de cada um de nós. Há um sentido de culpa exasperado feito de formalismo legalístico, de formas inconscientes, de educação frustrante. Mas há também um sentido de culpa que põe o dedo na ferida. As chagas queimam e causam arrepios: mesmo aquelas que dizem respeito a toda a sociedade...».
«A prostituição, a delinquência juvenil, a droga, as raparigas-mães... Há a responsabilidade pessoal de quem se deixa desfrutar e a responsabilidade de quem desfruta; é uma sociedade sem valores. Os valores faltam também em nós (não é só nos outros), mas é mais cómodo tirarmos o peso desta crise de valores indo à procura de bodes expiatórios. E é fácil encontrá-los. A satisfação de atirar a pedra faz-nos esquecer quem somos, descartando a nossa responsabilidade e sentido de culpa...».
«Mas não se trata apenas deste fenómeno em grande escala. A satisfação de poder dizer que não se é como a vizinha de casa ou como o colega de repartição, é realidade de todos os dias; como quando, de regresso da missa dominical, olhamos com desconfiança para quem da vida só teve situações humilhantes e que continua a pagar na solidão os erros da vida. O desprezo para com eles é, para Cristo, uma acusação contra nós próprios e os seus sofrimentos tornam-se sofrimentos de Cristo».