Temas de fundo |
XXXII DOMINGO COMUM 1ª leitura (2Mac 7,1-2.9-14): Numa outra ocasião, uma mulher judia e os seus sete filhos foram presos. O rei mandou-os açoitar para os obrigar a comer carne de porco, que era proibida por lei. Então, um dos jovens disse: «Que esperas ganhar ao fazer isto? Preferimos a morte a abandonar as tradições dos nossos antepassados. Tu, assassino, podes tirar-nos a vida presente, mas o Rei do universo há-de ressuscitar-nos e dar-nos-á a vida eterna, porque obedecemos às suas leis»... «É uma felicidade poder morrer às tuas mãos, porque nós temos a garantia de que Deus nos ressuscitará. Mas para ti, Antíoco, não haverá ressurreição para a vida».
* Temos a garantia que Deus nos libertará. Dizem os estudiosos que é precisamente esta a passagem em que se afirma com certeza a fé na ressurreição. Aceito sem dificuldade a afirmação como boa e há razões para isso. Com efeito, as circunstâncias e a experiência da morte de tantos justos durante a perseguição de Antíoco (no século II a.C.), já em contacto com a cultura grega, permitem ao autor do livro, sob a inspiração divina, amadurecer e propor essa ideia de «vida para além da morte». O assunto é também abordado explicitamente pelos livros de Job e da Sabedoria e assim a doutrina da imortalidade vai criando raízes, embora isso tenha levado muito tempo a ganhar consistência. Em todo o caso, a tradição judaica mais comum não parece ter recebido muito bem os livros dos Macabeus; talvez porque, no fundo, em termos históricos, o que passa à posteridade é a derrota dos que se insurgem contra os invasores e o consequente desmembramento do povo como tal. É por isso que estes livros não foram incluídos no «cânone» dos livros sagrados dos Judeus. Seja como for, neste livro, coloca-se claramente o problema de qual será a «justiça» de Deus para com os vencedores e para com os vencidos...
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2ª leitura (2Tes 2,15-3,5): Meus irmãos, mantende-vos firmes e fiéis às verdades que vos ensinei, tanto pela pregação como por carta. Que Nosso Senhor Jesus Cristo e Deus, nosso Pai, que nos amou e pela sua graça nos deu uma coragem indomável e uma firme esperança, vos dê sempre força e coragem para praticar o bem. Quanto ao resto, meus irmãos, orai por mim a fim de que a Boa Nova do Senhor continue a espalhar-se rapidamente e a ser recebida com honra, como aconteceu convosco. Rezai também para que Ele nos livre da gente malvada, já que nem todos acreditam na Boa Nova. Mas o Senhor, que é fiel, dar-vos-á força e livrar-vos-á do Maligno. Quanto a vós, tenho a inteira confiança que o Senhor me dá de que cumpris e ireis cumprir o que vos mandei. O Senhor dirija os vossos corações, para que amem a Deus e aguardem a Cristo com perseverança.
* O Senhor vos dê força para praticardes o bem. Estamos a ler e a reflectir sobre a segunda Carta de S. Paulo aos Tessalonicenses. Quando se pensa nesta epístola (bem como na primeira), dá a impressão que porventura terá sido escolhida por nos aproximarmos do fim do tempo litúrgico, que culmina com a Festa de Cristo Rei. Penso que, para além das razões que presidem a essa escolha, seria redutor afirmar que o que Paulo escreve aos cristãos de Tessalónica tem a ver pura e simplesmente com a realidade dos últimos tempos. Disso é exemplo este trecho que talvez nos queira e possa sugerir que, afinal de contas, os «últimos tempos» são os que já estamos a viver e, por conseguinte, é nossa obrigação adequar o nosso comportamento a essa realidade. Seja como for, a verdade é que, embora se saiba que nos não podemos salvar apenas com as nossas forças, por outro lado, não deixa de ser também verdade que isso é possível porque Deus vive já connosco em Jesus. Os novos e «últimos tempos» já foram inaugurados por Jesus e, se houver iniciativa e vontade da nossa parte, dele recebemos a força suficiente para praticarmos o bem. É, pois, inútil ficarmos à espera não se sabe de que tempos, porque os tempos em que vivemos já são os tempos de Deus.
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Evangelho (Lc 20,27-38): Alguns saduceus, que negam a ressurreição, foram ter com Jesus e disseram: «Mestre, Moisés escreveu isto na Lei: "Se um homem morre sem descendência, o seu irmão deve casar com a viúva para que possam ter filhos que serão tidos como filhos do morto". Ora bem, havia sete irmãos. O mais velho casou e morreu sem ter filhos. Então o segundo casou com a mulher e depois o terceiro. O mesmo aconteceu com todos os sete, que morreram sem deixar filhos. Por fim, morreu também a mulher. Ora bem, no dia da ressurreição, de quem será a mulher, uma vez que todos os setes estiveram casados com ela?». Jesus respondeu-lhes: «Os homens e as mulheres neste mundo casam entre si, mas os que forem julgados dignos de viver no mundo futuro não se casam. Serão como os anjos e não podem morrer. São filhos de Deus, por terem ressuscitado de entre os mortos». Que os mortos ressuscitam, até Moisés o deu a entender no episódio da sarça ardente, quando se dirigiu ao Senhor como Deus de Abraão, Isaac e Jacob. Ele não é um Deus dos mortos, mas sim dos vivos, porque para Ele todos os seres estão vivos.
* A vida como tal não é apenas esta dimensão. Segundo os evangelistas, Jesus, antes da sua paixão e morte em Jerusalém, teve várias controvérsias, sobretudo contra os saduceus, os fariseus e os chefes espirituais do povo. No caso do presente trecho, a questão prende-se com um assunto que diz profundo respeito às pessoas de todos os tempos e que tem a ver, afinal de contas, com o sentido da vida. O exemplo da mulher que casa com sete maridos, sem que nenhum deles lhe dê descendência (de quem será ela na outra vida? - é a pergunta capciosa), é caricato quanto quisermos, mas, mesmo assim, tem o condão de fazer com que a resposta de Jesus seja ainda mais clara e contundente. Há certos temas em que, apesar das tentativas, a resposta não se baseia na ciência, mas sim na fé. E, por sinal, são os temas mais importantes da vida. É esse o caso que se refere ao que acontece para além desta vida terrena. A ressurreição tem a ver exatamente com a possibilidade de continuar a viver, embora numa outra dimensão. Ora, essa certeza é algo a que só se pode chegar com um ato de confiança num Deus que não é um Deus dos mortos, mas sim dos vivos.
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* O Rei do universo há-de ressuscitar-nos para a vida eterna.
*Que o Senhor vos dê força e coragem para praticardes o bem.
*Deus não é Deus dos mortos, mas sim dos vivos. |
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SERÃO COMO OS ANJOS E NÃO PODEM MORRER. |
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Morte heróica de sete irmãos
A história dos setes irmãos e da mãe, que morrem com a esperança na vida futura, apresenta um certo paralelismo com o exemplo que os saduceus propõem a Jesus na tentativa de ridicularizar a fé na ressurreição. Jesus não foge à questão, mas aproveita a ocasião para fazer uma distinção clara entre aquilo que é esta dimensão e o que será a outra dimensão, em que o tipo de relacionamento entre as pessoas será totalmente diferente.
Esta narração do segundo livro dos Macabeus apresenta uma série de indícios e características que parecem colocá-la no género romanceado da história exemplar: o número sete; o cúmulo de suplícios; a progressão teológica das palavras dos irmãos no momento de morrer (e que não são citadas no texto proposto) e que têm o seu ponto culminante nas palavras finais do mais novo, que é também o último a sofrer o martírio. Há ainda a acrescentar a falta de dados concretos, como, por exemplo, o lugar do martírio e os nomes dos irmãos; e a própria presença do rei (que certamente não se dignaria estar ali para tratar de coisas de «tão pouca monta»). Vê-se, pois, que se trata de uma construção de alguma forma «fictícia», cuja finalidade é transmitir uma mensagem sobre o facto de que a vida não se reduz apenas a esta vida, mas tem continuação numa outra dimensão.
Esta apresentação artificial e dramática dos factos, com fins pedagógicos e moralizantes, todavia, não tem por alvo diminuir o fundo histórico dos próprios factos, acerca dos quais não é lícito duvidar (Lamadrid). Em todo o caso, parece-me que não será esse o principal interesse do autor do livro. De resto, deve-se acrescentar que a esperança na futura ressurreição é expressa pelo autor com vigor e sem ambiguidades. E isto é uma novidade, porque, de facto, só no tardo judaísmo é que aparece essa convicção. Uma formulação assim clara aparece pela primeira vez em Daniel (cf. Dn 12,1-3) e aqui, precisamente nesta passagem. Um século mais tarde, praticamente às portas do Novo Testamento, o livro da Sabedoria expressará essa ideia com maior clareza ainda.
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A esperança não morre
Sabe-se historicamente que, no século II a.C., o povo de Deus é objeto duma grande perseguição por parte do rei da Síria, Antíoco. É imposta a pena de morte a quem não abandona a Lei do Deus de Abraão, Isaac e Jacob (o Deus adorado por Israel). Caso exemplar dessa «prática persecutória» é o martírio dos irmãos Macabeus e de sua mãe.
Um deles morre deixando ao rei o seu testamento espiritual: «Tu, rei assassino, podes tirar-nos a vida presente, mas o Rei do universo há-de ressuscitar-nos para a vida eterna, porque nos mantemos fiéis à sua Lei». Este é um dos testemunhos bíblicos do Antigo Testamento utilizados por Jesus na sua pregação. Segundo o ensinamento de Jesus, quase que poderíamos dizer que a verdadeira vida não é a «deste mundo», mas sim a do alto.
Também na nossa civilização e cultura modernas, como já no velho mundo pagão, há quem sustente que a morte fecha definitivamente o ciclo da nossa existência. Mas, apesar dessa tomada de posição, a verdade é que a pergunta persiste teimosa: o que será do homem depois da morte? É um problema fundamental que a maior parte dos homens se põe em algum momento da sua vida. O futuro existe ou é apenas uma construção, ou então é uma outra forma de constatação da «vacuidade» da existência humana? Da resposta a estas perguntas, nascem maneiras diferentes de olhar para a realidade, a começar pela realidade do próprio homem.
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Encontro para além da morte
Se a vida presente, temporal, é tudo, é claro que, como diz Paulo (cf. 1Cor 15, 19), nós somos os mais infelizes de todos os homens. Se não há esperança para além da morte, então não há projeto espiritual que possa impor-se, porque é destituído de fundamento e, portanto, destituído de sentido. Só que não basta alguém dizer que não há nada para além desta vida para se poder dizer que, de facto, não há mais nada para além disso...
Se tudo é nivelado com a morte, então eu atrevo-me até a afirmar que nem sequer o progresso material, tecnológico e social faz muito sentido, na medida em que, infelizmente, ao progresso é sacrificada a grande parte da humanidade que nunca chegará a dele usufruir, como muito bem sabem os povos do chamado terceiro mundo. Se o diálogo de amor com as pessoas acaba para sempre com a morte, então o mundo apresenta-se ainda mais injusto para aqueles que nunca tiveram sorte nenhuma na vida; nesse campo e noutros.
A pergunta dos saduceus a Jesus era muito maliciosa. Mas, por outro lado, não era uma interrogação superficial, marginal, pois eles consideravam a Deus salvador e protetor. No fundo, eles perguntaram a Jesus o que significa para o homem estar no mundo. E, de facto, Jesus desvia, por assim dizer, o interesse do aspeto anedótico e malicioso para o ponto fundamental: «Os mortos... sendo filhos da ressurreição, são filhos de Deus... Deus não é Deus dos mortos, mas sim Deus dos vivos». Se os homens de Deus, como Abraão, Isaac, Jacob, Moisés, etc., estivessem definitivamente mortos, então seria inútil defender que Deus é seu salvador e protector. Nesse caso, esta salvação não passaria duma ilusão e dum engano.
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Deus vivo para homens vivos
Uma longa herança de cultura grega levou-nos a acreditar que a alma do homem é imortal por essência, ao passo que o corpo o não é. É esta ainda hoje a maneira mais corrente de explicar as coisas. A morte, nesse sentido, é considerada como a separação dos dois elementos do nosso ser: o corpo é enterrado e corrompe-se e a alma liberta-se de toda a matéria e sofrimento e sobe para Deus quando estiver completamente purificada.
Mas fica-se com a nítida sensação de que a visão bíblica, jogando com a ideia de que o homem é uma unidade orgânica, introduz uma noção mais completa de ressurreição, enquanto ela consiste em «retomar novamente a vida» como tal, embora doutra forma. Veja-se a este propósito com atenção o capítulo 15 da 1ª Carta aos Coríntios.
Para nós, que vivemos neste mundo, é difícil (ou melhor, é impossível) imaginar o que será a vida definitiva. Do texto evangélico, todavia, podemos tirar ao menos uma conclusão: a vida definitiva não será exatamente como a vida que temos agora. Se assim fosse, pelo menos em muitos casos, seria bem pouco. O que o texto diz é que seremos como anjos, como «filhos de Deus». Não me compete (nem tenho autoridade para o fazer) definir o que é ser como anjo ou filho de Deus. Penso que querer saber mais significaria ter já ultrapassado essa soleira invisível que separa o tempo cronológico do tempo definitivo.
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Testemunhas da ressurreição
«Hoje, muitos têm dificuldade em acreditar no além. Isso deve-se, por um lado, à crítica de herança marxista que vê na espera da vida eterna uma evasão da responsabilidade de transformar este mundo; e, por outro lado, à civilização do bem-estar, que se limita a propor uma felicidade hedonista neste mundo. Mas tanto uma como a outra posição são redutivas da realidade total. Será possível que os que, apesar de todos os esforços para ultrapassar a sua condição de deserdados da sorte, nunca tiveram sucesso, estarão definitivamente excluídos de todo e qualquer tipo de redenção»?
Nós, como cristãos, temos a tarefa de ser as testemunhas da ressurreição, ou seja, da certeza de que a vida não se reduz a esta vida, mas é muito mais que isso, tem uma outra dimensão. Mais: dizendo que o nosso Deus é o Deus dos vivos e não dos mortos, fazemos uma afirmação que não diz respeito só ao Além, mas também ao presente, na medida em que o esforço por melhorar esta vida, afinal, não morre ingloriamente no vazio do pó da terra.
O «Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob» é o Deus dos vivos, de quem já hoje está realmente vivo, mas vivo em todos os sentidos; ou seja, fisicamente, enquanto empenhado profundamente na vida para melhorar a situação da humanidade; e vida total que não pode acabar, porque é a própria vida de Deus, vida que, portanto, continua para além da morte física.