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fundo

 

 

XXXI DOMINGO COMUM

1ª leitura (Sb 11,23-12,2):  Tu és suficientemente poderoso para fazer o que quiseres, mas és também misericordioso para com todos. Tu tens paciência para esperar que nos arrependamos dos nossos pecados. Tu amas tudo o que existe e não desprezas nada do que fizeste. Se não tivesse sido do teu agradado, não terias criado as coisas. De resto, como é que algo poderia durar se Tu não o quisesses? Como poderia subsistir se Tu o não tivesses criado? Permitiste que tudo existisse, ó Senhor, porque tudo é teu e Tu amas todo o ser vivo. O teu espírito imortal está em cada um deles e é por isso que Tu corriges todos os que pecam. Lembras-lhes o seu pecado e admoesta-os para que abandonem os seus maus caminhos e ponham a sua confiança em ti, ó Senhor.

 

* Tudo é teu e Tu amas todo o ser vivo.

   O livro da Sabedoria assinala, de alguma forma, o fim do AT. Por isso não faz parte da Bíblia hebraica, só tendo sido admitido no Cânone oficial depois dos outros (NT). Seja como for, é uma tentativa de «harmonização», ou pelo menos de diálogo, entre o judaísmo e a cultura grega, dominante no período que antecedeu e preparou a vinda do Messias. Nessa perspetiva, para o seu autor já não faz sentido o sentimento de hostilidade que os seus contemporâneos nutriam contra todos os que não fossem judeus; embora isso continuasse a persistir no tempo de Jesus. O trecho escolhido para hoje é exemplar nesse aspeto e lança uma ponte de entendimento entre uns e outros, baseando-se no «argumento» de que todos os seres vivos (não apenas os seres humanos) têm a sua subsistência em Deus. Daí ser fácil tirar também a conclusão de que devemos tratar todos os outros como o próprio Deus os trata. Não tem, pois, justificação possível o sentimento de ódio e hostilidade seja para com quem for, porque Deus quer o melhor e a vida para todos. Assim, em vez de «ciúmes» e invejas, deveríamos contentar-nos pelo facto de Deus a todos querer salvar.

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 

2ª leitura (2Tess 1,11-2,2):  Rogo a Deus para que vos faça dignos da vocação que vos chamou a viver. Oxalá Ele preencha com o seu poder todos os vossos anseios de bem e complete o vosso trabalho de fé. Assim, o nome de Nosso Senhor Jesus será por vós glorificado e também Ele vos glorificará a vós pela graça do nosso Deus e do Senhor Jesus Cristo. Quanto à vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo e da nossa reunião com Ele, peço-vos, meus irmãos, que não vos deixeis confundir facilmente nos vossos pensamentos e que não vos preocupeis com certas revelações proféticas segundo as quais o Dia do Senhor estaria iminente.

 

* A vinda de Jesus Cristo que interessa.

   O motivo por que Paulo escreve aos cristãos de Tessalónica estão bem expressos nos primeiros dois versículos do segundo capítulo desta Carta. Esses cristãos estão a viver momentos de perturbação e não sabem o que fazer perante a perspetiva - no caso, é um autêntico mal-entendido - da iminente vinda/regresso de Cristo, como se se tratasse dum cataclismo cósmico prestes a destruir tudo e todos. No íntimo desses cristãos, porém, parece insinuar-se também um certo sentimento de que, pelo menos eles, seriam poupados a essa tragédia, esperando ser levados para lugar seguro. Ora, a intenção de Paulo é indicar-lhes, à sua maneira, a forma correta como devem interpretar a vinda de Jesus. Nessa linha, acaba por lhes dizer que a perspetiva duma vinda iminente de Jesus nunca deve desviá-los do dever que têm de dispor do seu contributo para que o nome de Jesus seja glorificado tanto nesta como na outra dimensão. Dito doutra maneira, nada deve «distrair» os cristãos do seu dever de contribuir para o bem do mundo, nem sequer a vinda iminente de Jesus.

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 

Evangelho (Lc 19,1-10):  Jesus passou um dia por Jericó. Aí vivia um homem rico, chamado Zaqueu, chefe de cobradores de impostos. Procurava ele ver quem era Jesus, mas não o podia ver por causa da multidão e porque era de baixa estatura. Correu então para a frente e subiu a um sicómoro para O ver passar. Quando Jesus chegou ao local, olhou para cima e disse-lhe: «Desce depressa, Zaqueu, porque tenho que ficar hoje em tua casa». Zaqueu desceu depressa e acolheu-o em sua casa com muita alegria. Toda a gente que notou isso começou a murmurar: «Este homem foi hospedar-se em casa dum pecador!». E Zaqueu, de pé, disse ao Senhor: «Senhor, dou metade dos meus bens aos pobres e, se defraudei alguém, pagar-lhe-ei quatro vezes mais». Então Jesus disse-lhe: «Hoje chegou a salvação a esta casa, pois este homem também é descendente de Abraão. O Filho do Homem veio procurar e salvar quem está perdido».

 

* Hoje chegou a salvação a esta casa.

    S. Lucas é o «evangelista da misericórdia de Deus» e continua a propor-nos alguns exemplos de figuras que tipificam exatamente a benevolência de Deus para com alguém que, segundo o modo de raciocinar dos contemporâneos do mesmo Lucas, não tinha hipótese nenhuma de obter a salvação; como era, por exemplo, o caso dos pecadores e, em particular, dos pecadores públicos (cobradores de impostos e outros). Se, por um lado, sabemos que é difícil para um rico entrar no Reino dos Céus, por outro lado, são-nos propostos estes exemplos concretos para nos demonstrar que «a Deus nada é impossível». É certo que Zaqueu era um pecador público, um cobrador de impostos, que tinha enriquecido à custa da exploração dos mais pobres, mas também não é menos certo que, quando há vontade, essa situação pode ser modificada, como, de facto aconteceu. No caso de Zaqueu, os bens materiais não foram impedimento definitivo à sua mudança; Jesus fez-lhe um convite à conversão plena à justiça do Reino, que passava pelo fazer bem aos homens e Zaqueu respondeu afirmativamente. A partir desse momento, estava garantida a sua «recuperação», a sua salvação.

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 *       O Senhor tem compaixão de todos, porque Ele ama todos os seres vivos.

 

 *    Seja glorificado em vós o nome de Nosso Senhor Jesus Cristo.

 

 *    O Filho do Homem veio procurar e salvar quem estava perdido.

O FILHO

DO HOMEM VEIO PROCURAR

O QUE

ESTAVA PERDIDO.

 

  • O bem e o mal nascem do coração

    Para nos desculpabilizarmos e, por conseguinte, para nos livrarmos de aplicar a liturgia deste domingo à nossa própria vida, somos bem capazes de achar, sei lá, uma ideia genial dizer que a «história de Zaqueu» é um caso extremo, que não acontece todos os dias, que vale como paradigma, mas não mais do que isso. Por outras palavras, seria um «exemplo ideal» para nos servir de modelo, mas que não há que a seguir necessariamente à letra. Enfim, às vezes, todas as razões são válidas para ficarmos de fora a contemplar a cena, sem nos comprometermos!

 

    É evidente - continuamos nós a pensar - que não é exigida a toda a gente a atitude  radical de Zaqueu! Era o que mais faltava! Até porque nem a ele foi exigido nada; pelo menos de forma explícita. Se tomou as decisões que tomou foi pura e simplesmente porque quis, pois Jesus não lhe exigiu nada!... Mas o facto é que Deus tem infinitas maneiras de entrar em contato com as suas criaturas. E as desculpas podem amontoar-se num rosário interminável. Mas, mais razões que encontremos são sempre uma recus ao convite de Deus que quer que mudemos de vida.

 

    Mas a verdade é que, perante a palavra de Deus, ou fazemos como Zaqueu ou então procuramos defender-nos, «explicando» essa mesma palavra ou esquecendo-a. E assim fechamos o caminho aos «instintos» do coração. E a vida continua como dantes. E a história de Zaqueu - que tem também sabor a parábola - fica sem efiácia.

 

  • Aceitar Jesus é mudar no coração

    O encontro com Jesus, costuma-se dizer, provoca sempre uma mudança de coração. Isto é muito fácil de dizer, mas é mais difícil de pôr em prática. No entanto, a verdade é que, se não houver  mudança de coração, é muito provável que não tenha havido verdadeiro encontro com Jesus. É doloroso ter que admitir isto, mas, tantas vezes, teremos que admitir que não O levamos muito a sério

 

     O «paradigma», no caso do Evangelho de hoje, é precisamente Zaqueu, um publicano, paradigma do pecador, mais ainda, um chefe dos publicanos, inveterado em velhos hábitos, até porque rico e, por conseguinte, sem consideração de qualquer espécie para com os outros, sobretudo os mais pobres, que ele explora sem pudor nem consciência.

 

    Um dia, esse homem encontra-se com Jesus (ou melhor, Jesus é que entra na sua vida) e algo de estranho acontece: esse Jesus muda-lhe as cartas todas em cima da mesa; a começar pelas do protocolo em relação ao convite para jantar. É curioso que seja o próprio Jesus quem faz o convite. Seja como for, por seu lado, Zaqueu compreende que aceitar Jesus implica necessariamente uma mudança de mentalidade e de conduta. Não bastam os desejos piedosos. Por isso, a mensagem vai muito para além do simples episódio.

 

    A salvação que Deus propõe não é apenas uma coisa piedosa qualquer. Apesar de ser especial, divina, total, ela comporta uma resposta humana. Sem essa mudança interior e a consequente atitude ou atitudes em conformidade com essa mudança, a Palavra de Deus, o convite de Jesus, aquele jantar de Zaqueu, teriam sido inúteis.

 

  • Mentalidade humana: mentalidade cristã

    Geralmente, vigora a distinção, ou melhor, a contraposição, entre mentalidade humana e mentalidade cristã. No fundo, deveriam ser complementares, na medida em que, como questão de princípio, não há nada de verdadeiramente cristão que não seja autenticamente humano. Mas a verdade é que, na prática, por vezes acontece que muitos cristãos, de humano, têm bem pouco. A experiência parece ter dado razão ao enunciado segundo o qual a mentalidade humana não tem nada a ver com a mentalidade cristã. Muito possivelmente porque aquilo que passa por mentalidade cristã não é, muitas vezes, senão um «arremedo de cristianismo».

 

    Zaqueu, nesse aspecto, antes do encontro com Jesus, era o representante típico da mentalidade humana ou, mais propriamente, materialista. Tinha dado à sua família o melhor no aspecto material. Ao mudar de mentalidade, tem que mudar também de atitude, não só em relação aos outros, mas também em relação aos membros da sua família. Mas. mesmo supondo que os seus filhos tenham perdido muitas vantagens económicas, temos que admitir que, segundo uma óptica cristã, ele lhes legou a melhor das heranças: o sentido da justiça, a honestidade humana, um amor aberto aos outros.

 

  • Consequência da nova mentalidade

    A salvação cristã não é apenas etérea; comporta algumas consequências sociais e económicas. Talvez Zaqueu se tenha visto obrigado a deixar o seu «emprego» de coletor de impostos, perdendo, dessa forma, a sua principal fonte de receitas, mas encontrou a justiça e o amor aos outros. Sob um ponto de vista puramente materialista, ele perdeu, mas, no fundo, ganhou muito mais do que perdeu, porque ganhou a salvação.

 

    É óbvio que a situação social de hoje é diferente da do tempo de Zaqueu. Mas apenas no seu aspecto quantitativo, digamos assim. É que o princípio continua a ser o mesmo: onde a mensagem evangélica não tem repercussões na maneira de empregar os bens, é sinal de que perdeu a sua carga de transformação ou então que não foi compreendida na sua verdadeira essência.

 

    Zaqueu, apesar de rico, foi objeto da salvação de Deus porque, a partir do momento em que se encontrou com Jesus, mudou completamente de atitude em relação aos bens, transferindo-lhes a valência de fim para a valência de meio ao serviço dos outros, que é o que eles devem ser.

 

  • É o coração que abre as mãos

    O gesto de Zaqueu, que restitui o quádruplo àqueles a quem que tinha roubado e metade dos seus bens aos pobres, nasce duma conversão interior, duma mudança de mentalidade. Sem esta «conversão interior», um gesto semelhante seria absolutamente impossível ou então teria tido certamente outro significado. Teria sido talvez um «investimento» para depois ganhar mais.

 

    Qual o significado dum gesto como o de Zaqueu? Depende realmente das intenções das pessoas. Dar não quer dizer sempre e necessariamente fazer bem a outras pessoas. Para muita gente, dar é sempre «investir», na esperança de recolher depois o capital investido acrescido dos respetivos juros. E pode ser também uma forma de «deitar poeira» nos olhos dos outros, uma vez que, sob as aparências de beneficência, se pode tratar de pretender encobrir jogos obscuros de exploração e ganho fácil e imoral.

 

    Mas quem se encontra com Jesus tem que mudar completamente a sua atitude para com os outros. A atitude fundamental que Jesus exige é o serviço do amor. Nessa perspetiva, as pessoas já não podem ser consideradas como objetos a explorar, mas como sujeitos a amar. Então, também o dinheiro, os bens, mudam de conotação. E, assim, os bens, em vez de objeto de cobiça, tornam-se instrumentos de comunicação e de enriquecimento da personalidade.

 

  • Exploração e «luta» pela justiça

    Então, e quando os ricos não se convertem?! E quando os ricos são cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres?! Eventualmente, não se poderá imaginar que o interesse dos e pelos pobres não imporá a eliminação, mesmo violenta, dos exploradores? Claro que não se trata senão dum exagero. Porque, eliminados pela violência «os pecadores», não nascerá espontaneamente a geração dos «santos» e Zaqueus só capazes de amar?

 

    Mas a experiência histórica não tem dado razão a esta teoria. O homem novo (está provado) não é o resultado duma ordem nova imposta pela força e pela violência. Sem uma «conversão interior», não há nem homem novo nem ordem nova. Talvez por isso mesmo é que Jesus não eliminou Zaqueu, mas «converteu-o».

 

    É verdade que o Evangelho não nos dá normas sobre o modo como se «deve fazer justiça», mas isso não quer dizer que seja necessário aceitar passivamente as situações de injustiça. O que, em todo o caso, é possível concluir dos princípios evangélicos é que todo o tipo de «justiça» assente na divisão, no ódio, na eliminação do outro e na vingança é destinada ao fracasso. Ao contrário, o amor é a mola infalível que dá coragem para proceder àquelas mudanças sociais que são o resultado da próprio mudança interior.

 

    A esse propósito, escutemos a admoestação do papa Paulo VI que me parece sempre actual: «A situação dos dias de hoje deve ser enfrentada com coragem, devendo ser combatidas e vencidas as injustiças que existem nela. O desenvolvimento exige transformações audazes, profundamente inovadoras. Reformas urgentes devem ser tomadas sem demora. Cada um aceite generosamente a sua parte».