Temas de fundo |
1ª leitura (Sir 35,15b-17.20-22a): O Senhor é um juiz que não faz acepção de pessoas. Aquele que adora a Deus com alegria será bem recebido, e a sua oração chegará até à nuvens. Sim, a oração da pessoa humilde atravessa as nuvens e não pára até chegar ao Senhor Deus Altíssimo. Ele não desiste enquanto o Altíssimo não olhar, enquanto não fizer justiça e restabelecer a equidade. No tempo da tribulação, a sua misericórdia será bem-vinda como a chuva depois duma longa seca. * Serve o Senhor de boa vontade. O livro de Ben-Sirá, um dos poucos do Antigo Testamento do qual sabemos o autor (Jesus, filho de Sirá), escrito provavelmente por volta do ano 180 a.C., tem como contexto o domínio da cultura helénica no mundo conhecido de então, procura naturalmente integrar os novos tempos, ao mesmo tempo que não descura a doutrina tradicional. No texto que temos entre mãos (e foi esse o motivo por que foi escolhido para este domingo), realça-se a forma como Deus atende aos pedidos das pessoas, não contando nem a importância social nem cultural. O que interessa - como diríamos em linguagem de hoje - não é tanto o que se diz quanto o coração com que se diz. Nessa linha, pouco importa que quem se Lhe dirige seja ignorante ou pobre; o que conta é a boa vontade com que essa pessoa se dirige a Deus. Por outras palavras, ao dirigir-nos a Deus, temos que tomar consciência clara de que, perante Ele, afinal de contas, não somos nada e, portanto, também nós somos pecadores e não podemos «exigir» seja o que for. PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.
2ª leitura (2Tim 4,6-8.16-18): Quanto a mim, estou pronto para o sacrifício e chegou a hora de ser levado deste mundo. Combati o bom combate, corri uma longa distância e conservei a fé. E agora está à minha espera o preço da vitória que é devida a uma vida justa, a recompensa que o Senhor, o justo Juiz, me dará no Dia, e não só a mim, mas também a todos os que esperam a sua vinda com amor. Ninguém esteve ao meu lado da primeira vez que tive que me defender sozinho, pois todos me abandonaram. Que Deus não lhes leve isso em conta! Mas esteve comigo o Senhor que me deu força para que eu pudesse proclamar a Boa Nova por inteiro aos gentios. E mais: fui arrebatado da boca do leão. E o Senhor libertar-me-á de todo o mal e levar-me-á com segurança para o seu Reino celeste. A Ele, a glória para sempre! * Esperar pela misericórdia do Senhor. Se se pensar que há, nesta segunda Carta a Timóteo uma espécie de testamento e de adeus, pode-se deduzir que se trata dum dos últimos escritos de Paulo (no caso não ter sido escrita ou pelo menos terminada por outro). Independentemente de problemas exegéticos que não vale a pena aqui tratar, há neste texto uma mensagem essencial que é preciso relevar. E é a de que o grande «apóstolo das gentes» está na disposição de se apresentar diante de Deus na simplicidade, não exibindo nem se pavoneando com a sua própria actividade, mas confiando na bondade e misericórdia de Deus. Por outro lado, reconhece que, não obstante as dificuldades e a oposição de muitas pessoas (disso fala sem equívocos em várias passagens de outras Cartas), Deus sempre esteve com ele para poder continuar o seu trabalho. Ora, é precisamente neste Deus que nunca o abandonou que ele entrega toda a sua vida, sem pretensões, sabendo embora, como diz o ditado popular, que «Deus não se deixa vencer em generosidade». PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.
Evangelho (Lc 18,9-14): Jesus disse a seguinte parábola aos que estavam convencidos da sua própria justiça e desprezavam todos os outros. Havia dois homens que foram ao Templo rezar. Um deles era fariseu e o outro era publicano. O fariseu pôs-se lá à frente, de pé, e então começou a rezar assim: «Eu te agradeço, ó Deus, por não ser ganancioso, desonesto ou adúltero como os outros. Obrigado por não ser como aquele publicano lá ao fundo. Eu jejuo duas vezes por semana e entrego-te a décima parte de tudo quanto possuo». Ao contrário, o publicano manteve-se à distância e nem sequer se atrevia a levantar os olhos para o céu, mas batia no peito dizendo: «Ó Deus, tem piedade de mim, porque sou pecador!». Pois bem,concluiu Jesus, digo-vos que o publicano, e não o fariseu, voltou justificado para casa. Pois quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado. * O publicano voltou para casa justificado. O seu sentido e a sua lição moral são tão óbvios que não ocorre fazer grandes comentários a esta parábola, que tem por protagonistas um fariseu e um publicano. Pela enésima vez, Jesus afirma claramente que, no relacionamento com Deus, o mais importante é o coração ou, como se dizia também antes, a recta intenção. E, nesse aspecto, a parábola continua a ter validade, porque nós, como no tempo de Jesus, corremos sempre o risco de pensar que podemos apresentar a Deus a factura das nossas boas obras e que podemos exigir com ela tudo e mais alguma coisa, ao mesmo tempo que não nos ensaiamos muito para colocar abaixo de cão - passe a expressão pouco elegante - todos os outros. Afinal, a «justificação» é sobretudo um dom de Deus e tem mais raízes no coração do que propriamente na quantidade de coisas que a gente possa apresentar. Tudo isto me faz pensar que o acento da parábola deve colocar-se, não tanto na oração humilde daquele que se declara pecador, mas sim na misericórdia de Deus. A misericórdia de Deus tornou-se realmente visível em Jesus que «veio procurar e salvar o que estava perdido» (cf. Lc 19,10). PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. |
* A oração dos humildes penetra até às nuvens. * Eu espero só pela coroa da justiça. * O publicano voltou para casa justificado, ao contrário do fariseu. |
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QUEM SE HUMILHA SERÁ EXALTADO. |
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A primazia da sinceridade
No capítulo dezoito do seu Evangelho, Lucas pretende resumir a grande mensagem de Jesus sobre a oração. Mas, como bom narrador que é, não dá ao que escreve uma forma abstracta. Prefere organizar o seu material em forma de gestos e pormenores, em cenas que chamem a atenção e fiquem impressas na mente dos leitores.
A perseverança na oração é descrita pela parábola do juiz e da viúva (veja-se domingo anterior); a sinceridade e rectidão de intenções traduzem-se na parábola do fariseu e do publicano (a parábola de hoje); e a abertura filial dos homens perante o mistério de Deus é condensada na sentença de Jesus sobre as crianças (que é o que vem a seguir ao texto evangélico de hoje).
É necessário orar sempre. Mas não basta orar externamente; não bastam os ritos legais. E é por isso que não é necessário estar sempre em «pose» de oração. O que é preciso é que a oração provenha do mais profundo do ser e seja radicalmente sincera. E a oração sincera leva-nos a reconhecer que a nossa «justiça» depende fundamentalmente de Deus. É esse o tema da parábola de hoje.
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Com Ele, não valem as «peneiras»
O fariseu vai ao Templo. Diz abertamente que, para si, a oração é importante. Não é que não diga! E reza. Não é que não pronuncie fórmulas de oração. Diz e faz coisas: isso não o podemos negar. Mas, as suas palavras e as suas atitudes são vazias. Ou melhor, estão cheias de vaidade e presunção. Na realidade, não é a Deus que ele procura, mas sim a sua própria grandeza; e procura sobretudo que Deus reconheça como ele é alguém a quem ninguém nada tem a apontar. Como se diria hoje (e até os políticos se fartam de o dizer) está de consciência tranquila.
Ao contrário, o publicano, diante de Deus, descobre-se confundido com a miséria e reconhece que sozinho não pode nada. E, nesse preciso momento, como que por encanto, deixa de ter importância o seu passado de pecador, porque quem importa é Deus. Não se pode, porém, esconder o facto de que, se está ali, naquela atitude de oração, provavelmente, no seu coração, já decidiu mudar de vida.
E importante é só esse facto: onde está um homem abandonado que decide levantar as mãos para Deus, implorando perdão e auxílio, aí se realiza a verdadeira oração. Deus não se deixa levar pelas aparências e, por isso, as atitudes de jactância, tão eficazes às vezes no relacionamento dos homens uns com os outros, não surtem efeito, ou, pior ainda, só surtem efeitos contrários. As «peneiras», passe a expressão, poderão eventualmente impressionar os mais incautos, mas não impressionam a Deus, porque diante dele não há «peneiras» que resistam.
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Algumas conclusões a propósito
1. Segundo a óptica de Jesus, a oração como puro rito, mesmo que estritamente cumprido, passou para segundo plano. É certo que o fariseu observou com exactidão todas as prescrições da tradição sagrada de Israel. E é certo igualmente que, da parábola, resulta evidente que se trata dum homem que procura ser o melhor possível. Mas, apesar de todas as suas palavras, não chegou à realidade de Deus, ficando em si mesmo, com a sua «visão do mundo». O publicano, ao contrário, que percebe pouco de purezas ou fórmulas rituais, que não está em condições de apresentar a Deus nenhum mérito, está totalmente disponível para que Deus o ilumine e transforme. A parábola não esconde que é um pecador e, com maior razão, tratando-se dum publicano.
2. No campo da experiência cristã, a oração consiste em abrir-se, com Jesus, ao Pai, descobrindo que a nossa vida está cheia dos dons que o Pai nos oferece. Foi o que faltou ao fariseu: agradecer a Deus o bem que se esforçava por pôr em prática. Orar significa ter a certeza de que, no mais profundo de tudo, não é o eco da nossa voz que se repete, mas sim o do amor dum Pai que se inclina para a nossa súplica e nos ama.
3. É certo que a existência contingente do homem não tem necessidade da oração da mesma forma que tem das coisas materiais como a água e o ar para subsistir. Mas a verdade é que, na óptica cristã, o homem não é apenas contingência. E é na oração que ele descobre a sua outra dimensão que não está sujeita às contingência do espaço e do tempo. É na oração que ele descobre a sua intimidade como ser totalmente dependente de Deus. É a partir dessa base que ele se sente tão disponível que, nessa circunstância, até é capaz de aceitar poder ser amado pelo próprio Deus, que enviou o seu Filho unigénito para que todos os que nele acreditam não pereçam mas se salvem (cf. Jo 3,15).
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A fé «justifica» o homem
A parábola do fariseu e do publicano (que directamente trata da oração) apresenta duas maneiras de conceber o homem: aquele que se compraz consigo próprio por estar isento de toda a espécie de pecado (assim contradizendo a própria mensagem bíblica que diz que todos somos pecadores) e pelo mérito das suas boas obras, em virtude das quais se julga justificado e «exige» de Deus a recompensa; e aquele que está consciente das suas culpas e de não ter méritos diante de Deus e que, por isso mesmo, põe nas mãos dele toda a sua miséria.
Ora bem, se, de acordo com o juízo de Jesus, o publicano é justificado e o fariseu é reprovado, então salva-se não aquele que confia nas suas obras e no mérito das suas virtudes, mas aquele que tem fé suficiente em Jesus, que é dom por excelência, o dom igual ao Pai, que é dado à humanidade. Não porque as obras não interessem, mas sim na medida em que é essencial reconhecer que essas obras são em si já a consequência do impulso de Deus sempre presente.
É esse o motivo por que a fé em Jesus Cristo salva. Quem acredita nele, quem O aceita como o enviado de Deus acredita naquele que O enviou e aceita que Deus lhe possa encher o coração que se esvaziou de si mesmo e que está consciente da sua dependência total do Criador.
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Fé: fonte de vida nova
O homem é «justificado» pela fé em Jesus, que lhe dá acesso, digamos assim, ao privilégio da filiação divina. Esse dom torna-se, assim, no homem, fonte duma actividade filial, chamemos-lhe assim, que o leva a cumprir a vontade do Pai, que está nos céus.
Paulo, «defensor» da justificação mediante a fé, é também a grande testemunha da vida nova que desabrocha do facto de se pertencer a Cristo. Se é verdade que a fé sem obras é morta (cf. Tgo 2, 14ss), não deixa de ser verdade também que as obras sem fé em Jesus (pelo menos implicitamente) têm todo o valor que quisermos mas não têm valor salvífico.
Já perto da morte (2ª leitura), Paulo reflecte sobre o passado e conclui, talvez deixando-se levar pelo exagero e pelo pessimismo, que a sua experiência foi um falhanço sob o ponto de vista humano: todos o abandonaram e em tribunal ninguém o defendeu. Ninguém o defendeu... não! Ele «conservou a fé» e foi fiel a Jesus até ao fim. Mas, apesar do seu falhanço, ele acredita que o Senhor, na sua misericórdia, lhe dará o prémio da justificação (repare-se que ele não se refere a qualquer prémio de merecimento).
Hoje, a auto-suficiência farisaica tem outros nomes. Mas a substância é a mesma. No fundo, não é senão a convicção de que o homem possa salvar-se como homem apelando simplesmente aos recursos de que dispõe. Quer dizer, o homem está convencido de que se pode salvar mediante o recurso à ciência e à técnica, à política, à arte, etc. Poderá eventualmente salvar-se, mas salvar-se como? Depende do que se entende realmente por salvação!
É evidente que a salvação que Jesus Cristo traz não é antagónica da salvação humana, porque é uma «ordem » do Senhor que o homem trabalhe e domine a terra, mas daí a concluir que a salvação humana seja salvação total vai uma diferença abismal.