Temas

de

fundo

 

1ª leitura (Ne 8,2-4a.5-6.8-10):  No primeiro dia do sétimo mês, Esdras apresentou a Lei à assembleia de homens e mulheres e a todos os que eram capazes de a entender. Esdras leu o livro, desde a manhã até à tarde, na praça que fica diante da porta das Águas. E todo o povo escutava com atenção a leitura do livro da Lei. Então o escriba Esdras subiu para um estrado de madeira mandado construir para a ocasião. Abriu o livro à vista de todo o povo, que se levantou. Então Esdras deu graças ao Senhor, o grande Deus, e todo o povo respondeu com as mãos levantadas: «Ámen! Ámen!». Depois, inclinaram-se todos e prostraram-se diante do Senhor com a face por terra. (Os levitas) liam clara e distintamente o livro da Lei de Deus e explicavam o seu sentido, para que se pudesse compreender a leitura. Então, o governador Neemias, o sacerdote e escriba Esdras e os levitas, que instruíam o povo, disseram a toda a assembleia: «Este é um dia consagrado ao Senhor, vosso Deus. Não vos entristeçais nem choreis». É que todo o povo chorava ao ouvir as palavras da Lei. Então Neemias disse-lhes: «Ide para vossas casas, fazei um bom jantar, bebei vinho doce e reparti com aqueles que nada têm. Este é um dia grande, consagrado a Deus. Não vos entristeçais, porque a alegria do Senhor é a vossa força».

 

* Este é o dia consagrado ao Senhor.

   Em termos cronológicos, estamos no fim do século IV a.C., alguns anos depois do regresso do povo de Deus do cativeiro da Babilónia. Como ficou «demonstrado» já na primeira leitura da semana passada, a reconstrução do país, e particularmente  a de Jerusalém e do Templo, apresenta-se muito mais complicada do que seria de prever. Perante isso, o povo, tanto o que acaba de chegar do exílio como o que já lá mora, mais uma vez, baixa os braços, descrente das suas capacidades. Assim, este trecho é a descrição de como o sacerdote e escriba Esdras, juntamente com o governador e comandante militar Neemias, procede à promulgação solene da Lei de Moisés, de forma que as pessoas possam redescobrir a própria identidade. Todo o conjunto da cerimónia é assim como uma espécie de «liturgia da palavra», cujo objetivo é conferir a atitude das pessoas com a Palavra da Lei e com os prodígios por Deus operados durante a história passada deste mesmo povo. Ora bem, sem pretender debater neste espaço quaisquer outras questões, eu diria que uma das lições a retirar é que, também na vida dos crentes - e dos cristãos em particular - a escuta da Palavra de Deus é a base de qualquer e de todo o tipo de viragem, de reconstrução ou «conversão».

 

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2ª leitura (1Cor 12,12-31a): O corpo é um só, mas, mas todas as suas diferentes partes têm a mesma solicitude pelas outras. Se um membro do corpo sofre, todos os outros sofrem; e se um é bem tratado, todas os outros partilham da mesma felicidade. Todos vós sois o corpo de Cristo e cada um de vós é um membro de Cristo. É como um único corpo que tem vários membros. Trata-se sempre do mesmo corpo, embora tenha membros diferentes. Da mesma forma, todos nós, quer judeus quer gentios, quer escravos, quer livres, fomos batizados para o Espírito. O corpo em si mesmo não é composto dum só membro, mas de muitos. Se o pé dissesse: «Já que não sou mão, não pertenço ao corpo», nem por isso deixaria de ser parte do corpo. E se o ouvido dissesse: «Já que não sou olho, não faço parte do corpo», nem por isso deixaria de fazer parte do corpo. Se o corpo fosse apenas um olho, como é que podia ouvir? E, se fosse apenas um ouvido, o que seria do olfacto? Mas Deus colocou cada parte no corpo precisamente como Ele quis que fosse. Não haveria nenhum corpo se todo ele fosse só uma parte. Por isso, o olho não pode dizer à mão: «Não preciso de ti!». Nem a cabeça pode dizer ao pé: «Não preciso de ti!». Ao contrário, não podemos dispensar as partes do corpo que parecem mais fracas, porque as partes que nós julgamos menos valiosas são as que tratamos com maior cuidado, enquanto que as partes que parecem menos honrosas as tratamos com especial modéstia, de que as partes mais nobres não precisam. Deus criou o corpo de tal maneira que seja dada mais honra às partes que dela precisam. Os que em nós são mais nobres não têm necessidade disso, mas Deus assim formou o corpo, dando muito mais honra ao que tinha falta dela. Na Igreja, Deus pôs tudo em harmonia: em primeiro lugar, os apóstolos, em segundo, os profetas e, em terceiro, os mestres; depois os que fazem milagres, seguidos dos que recebem o poder de curar, os que ajudam os outros, os que governam e os que são capazes de falar diversas línguas. Mas nem todos são apóstolos ou profetas ou mestres. Nem todos têm o poder de fazer milagres ou de curar doenças ou então de falar e interpretar línguas estrangeiras. Aspirai, porém, aos melhores dons.

 

* Aspirai aos melhores dons.

   Não tenho qualquer escrúpulo em dizer que este trecho da 1 Carta aos Coríntios é um dos mais belos da literatura mundial, tendo sido até utilizado por escritores célebres - com as devidas adaptações - para tecer considerações importantes e utilíssimas para a vida das pessoas. E, como é óbvio, também se deve aproveitar o tesouro da sabedoria humana para refletir sobre a vida. E, bem vistas as coisas, no fundo, é o que interessa também ao apóstolo S. Paulo é dar esse contributo. É o que fica claro nesta leitura. A diversidade de dons e «carismas» nunca deve ser um entrave à unidade e ao crescimento da Igreja. Por outro lado, o «pluralismo» não é necessariamente contrário à unidade, antes pelo contrário. Dito de outra maneira, em termos práticos, dá-me a impressão que, mesmo hoje em dia, este princípio básico ainda não é devidamente respeitado. Como se, para poder haver unidade, fosse necessário que todas as coisas e todos sejam iguais. Como é normal dizer, não há ninguém é igual a ninguém. É claro que tem que haver uma certa ordem, digamos assim, e por isso devem estar «em primeiro lugar os apóstolos, em segundo lugar os profetas e, em terceiro lugar, os mestres e depois os outros», mas, como dirá o mesmo Paulo no capítulo seguinte, se há algum princípio maior que todos os dons esse é o dom do amor (cf. 1Cor 13, 13). Repita-se: o maior é o amor. Mas é caso para perguntar se será mesmo assim na atuação concreta? Ou seja, não se continuará a insistir e obrigar à unicidade em vez da unidade?

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 

Evangelho (Lc 1,1-4; 4,14-21):  Muitos empreenderam escrever a história de tudo o que aconteceu entre nós. Eles escreveram sobre o que ouviram de quem presenciou essas coisas desde o princípio e tornaram-se proclamadores da Boa Nova. E, por isso, caro Teófilo, por ter estudado cuidadosamente todos estes assuntos desde que tudo começou, pensei que seria bom escrever um narrativa ordenada para ti. Faço isto para que chegues ao conhecimento de toda a verdade sobre as coisas que te ensinaram....... Jesus voltou para a Galileia (depois do Batismo) e o poder do Espírito Santo estava com Ele. As notícias sobre Ele espalharam-se por toda a parte. Ele ensinava nas sinagogas e era louvado por toda a gente. Um dia, Jesus foi a Nazaré, onde se tinha criado e, sendo sábado, foi, segundo era habitual, à sinagoga. Levantou-se para ler as Escrituras, tendo-lhe sido entregue o livro do profeta Isaías. Ele desenrolou o papiro e encontrou o lugar onde estava escrito: «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me escolheu para comunicar a Boa Nova aos pobres, enviou-me para proclamar a liberdade aos cativos e a recuperação da vista aos cegos, pôr em liberdade os oprimidos e anunciar que chegou o tempo em que o Senhor salvará o seu povo. Em seguida, Jesus voltou a enrolar o papiro, deu-o ao ajudante e sentou-se. Toda a gente na sinagoga tinha os olhos fixos nele, quando ele começou a dizer: «Esta passagem da Escritura acaba de se cumprir hoje».

 

* O Espírito do Senhor está sobre Mim.

   O objetivo do evangelista Lucas (que preside ao Ano C) é claro desde o início do seu livro: fazer com que cada «amante de Deus» (=Teófilo), ou seja, cada cristão, descubra onde onde e como pode encontrar as razões e a base da sua fé e da sua esperança. A isso pode-se dar o nnome de «catequese». Mas esta não é só, nem sobretudo, a tentativa de passar conceitos materiais, mas sim a de conduzir ao conhecimento de Alguém que pôs em ato a obra que Deus tinha desde sempre planeado para a humanidade. Jesus é Aquele que que vem concretizar o que, de resto, já tinha sido «verbalizado» antes, pelo profeta Isaías, quando descreve a missão do Servo de Javé (cf. 61,1-2), e que é citado por Lucas. Um texto destes pode dar ocasião a muitas considerações, mas o espaço não o consente. Seja como for, gostaria de realçar que aqui temos como que um resumo ou, melhor dizendo, um «plano programático» do que foi a atividade de Jesus. Por isso, a pergunta que eu não gostaria deixar de fazer é a seguinte: será que, no mais importante dos muitos planos pastorais, está presente sempre a preocupação de «comunicar a Boa Nova aos pobres, proclamar a liberdade aos cativos, dar vista aos cegos, pôr em liberdade os oprimidos e anunciar que chegou o tempo em que o Senhor salva (não condena) o seu povo? Ou, pelo contrário, não será que - por um motivo ou outro - se continuam a ouvir demasiadas condenações ao inferno, como se o Evangelho (=Boa Notícia) fosse, ao contrário, uma espécie de manual de maldições? Quem é que nos nomeou condenadores seja de quem for?

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

*  A alegria

    do Senhor

    é a vossa

     força.

Vós todos

    fazeis parte

    do corpo

    de Cristo.

Levar a

     Boa Nova

    aos pobres,

    proclamar

    a libertação

    aos cativos,

    a recuperação 

    da vista aos  

    cegos,

    a liberdade

    aos oprimidos

    e anunciar

    que chegou

     o tempo

     em que

    o Senhor

    salvará

    o seu povo.

TODA

A GENTE

NA

SINAGOGA

TINHA

OS OLHOS 

POSTOS

NELE.

 

  • Escutar para comunicar

     Através da sua história, o cristianismo (e não só) sempre teve os seus apologetas e os seus teólogos. Isso pode ser - e é certamente - um bem, mas também pode esconder um perigo: o de fazer pensar que o cristianismo seja uma «doutrina» demonstrável apenas pela simples razão. O facto é que o não é, porque o cristianismo é, antes de mais, uma revelação e uma vida. É o Deus que se revela e comunica com o homem histórico. A iniciativa parte, portanto, de Deus, e não do homem (leia-se com muito proveito a 1 Carta de João). A partir do momento em que se prescinde deste dado, toda a tentativa de «defesa» cai por terra. Neste aspeto, se calhar, cometem-se mais erros do que se julga. 

 

   Seja como for, essa revelação/comunicação à pessoa é transmissível por meio da palavra e dos gestos. Ora, segundo as características da aprendizagem humana, a palavra e os gestos, como realidades físicas, ocupam o seu espaço e sobretudo o seu tempo. Ou seja, a revelação que Deus faz não acontece, digamos assim, dum só jato; não por defeito de Deus, mas por incapacidade do homem. A revelação processa-se por etapas e, por isso, o papel do teólogo é importante, mas não se pode soprepor Àquele que encarnou. Dito doutra maneira, o processo da revelação não pode deixar de respeitar, por um lado, as regras da linguagem humana, porque a Bíblia é transmitida segundo essa «vestimenta», mas deve tentar corrigir, por outro, os eventuais desvios que nascem no decorrer da história. 

 

   Deus, por motivos que só Ele conhece, quis revelar-se e comunicar desde sempre com o homem. Ora, para o fazer, naturalmente «teve» - passe o termo - que se adaptar às capacidades/limitações do homem, bem como ao que é exigido pela liberdade humana. A falta de compreesão, repito, não se deve a algo que tenha a ver com «defeito» da parte de Deus, mas por defeito e pelos limites impostos pela natureza finita do homem. E Deus foi de tal maneira «fiel» à maneira e à capacidade do homem que chegou ao ponto de Ele próprio se revelar, no filho de Maria, como homem, como Emanuel (=Deus-connosco), fazendo-se um de nós na pessoa de Jesus Cristo. 

 

   Nesse sentido, a proclamação da Boa Nova não pode ser nem é tanto o esforço que o homem faz para conhecer a Deus, mas sobretudo o esforço para fazer reconhecer Deus. O esforço de saber coisas sobre Aquele que vem ao nosso encontro naturalmente também deve existir, mas com a condição de não ter o preconceito de que Deus pode ser aprisionado pela linguagem e inteligência humanas. Claro que, pela sua liberdade, o homem pode recusar-se a deixar-se encontrar por Deus, que vem ao seu encontro, mas isso não quer dizer nada. Em todo o caso, a «decisão» de se doar ao homem é sempre de Deus, porque é Ele sempre que toma a iniciativa. No fundo, portanto, quem queira «compreender» o cristianismo não tem melhor a fazer do que escutar o que esse Deus tem para dizer...

 

  • Uma comunidade à escuta

   Uma coisa, porém, é certa: o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob, o Deus de Jesus Cristo, não força as coisas. Não é um Deus que entra como que pelos olhos dentro, «obrigando-nos» a aceitar. Se Ele força a entrada, passe o excesso da expressão, em último caso, é pelo coração. Ele não é um Deus que se revela automática e totalmente nos fenómenos naturais, até porque, ao lado de muitos que O «veem» e chegm a Ele através da natureza e da razão, há também outros que O não descobrem. O Deus de Jesus Cristo é o Deus que se revela pessoalmente na história de cada um e na história dos homens em geral, mas não se «impõe». O homem tem que estar à escuta, tem que querer escutar. 

 

   A Bíblia marra a maneira como esse Deus se revelou na história dos homens em geral e de alguns homens em particular. A Bíblia é, assim, também a literatura dum povo cujo traço de continuidade é o romance de amor de Deus pela humanidade. Mas trata-se de um povo que, sendo embora o «povo eleito», é também como que o paradigma de todos e de cada um. Ou seja, é um povo que «assume» as vicissitudes, os sofrimentos, as angústias, as alegrias e as esperanças de todos. As reflexões, as conclusões dos sábios, as líricas dos poetas, os hinos e a vida dos grupos comunitários, as canções populares: tudo isso é o fio condutor pelo qual passa a mensagem e a revelação de Deus. A história passada e os factos são lidos como palavra de Deus para que, à luz deles, possamos ler a nossa própria história, ou melhor, a nossa vida, na sua dimensão terrena e extra-terrena.

 

  • A Palavra constrói a comunidade

    A comunidade deve revestir-se da forma da comunhão. Ou, melhor dizendo, sem comunhão, pode haver ajuntamento de pessoas, mas não necessariamente comunidade ou Igreja. Ou seja, a comunhão, segundo a linha de pensamento da Escritura, é só completa e plena quando é também comunhão do homem com Deus. Sem Deus, biblicamente falando, o homem não faz sentido. A comunicação com Deus é condição sem a qual o homem não se compreende sequer a si mesmo. A resposta do homem a essa revelação é a condição para o homem ser fiel à sua própria condição humana, pois o homem sem a dimensão espiritual perde o norte. 

 

   Um exemplo dessa relação entre Palavra de Deus e a construção do homem e da comunidade temo-lo na 1ª leitura deste domingo. O povo de Deus, para se reconstruir como tal depois do descalabro do exílio, procura a sua própria identidade na Escritura. Pois bem, também hoje, a Igreja (e os homens em geral) podem encontrar a sua identidade na Palavra de Deus. Sem a Palavra de Deus, a Igreja não chega a lado nenhum, porque nem sequer sabe quem é e para que serve.

 

  • A Igreja como «altifalante» de Deus

   A Igreja não faz sentido senão como uma comunidade de pessoas convocadas e reunidas pela Palavra de Deus. Dela depende totalmente. E, por isso mesmo, ela se deve deixar guiar e julgar por essa palavra. Por outro lado, a razão de ser da Igreja é precisamente a de anunciar essa Palavra - e não outra - e de a testemunhar como fiel discípula de Cristo. A missão da Igreja é, portanto, passar essa mensagem do amor incondicional pelas pessoas, porque Ele deseja que todas as pessoas sejam salvas e cheguem ao pleno conhecimento da verdade (cf. 1Tm 2,4).

 

    A Igreja não proclama uma ideologia ou uma doutrina baseada em raciocínios -  mesmo que sejam teológicos - mas na Palavra feita homem em Jesus Cristo. O Cristo, «chefe» da Igreja construída com base nos dons do Espírito (2ª leitura), o Cristo Mestre, o Cristo Palavra (leitura do Evangelho): é isso fundamentalmente o que a Igreja tem que anunciar. Ora, não faz sentido começar a fazer o anúncio falando de altas teologias a quem nem sequer tenha ouvido falar de Jesus Cristo. Antes de «teologizar» sobre Ele, é necessário fazer do nosso melhor para dizer às pessoas quem foi Jesus no contexto do romance de Deus pela humanidade, contando a sua história sem palavras espalhafatosas e com o desejo inconfessado de parecer inteligente e impressionar toda a gente.

 

   Não respeitar esse princípio é um dos erros mais comuns que se cometem em certas pregações, cujo objetivo parece ser única e exclusivamente embasbacar, passe a expressão, os ignorantes. Mas o facto é que o objetivo final de toda a pregação cristã é dar a conhecer a Jesus Cristo e o Deus de Jesus Cristo e fazer descobrir que, acreditando nele, o homem não se perde, mas se salva (cf. Jo 3,16-17). Ora, isso requer um processo que pode ser muito longo. Como é que se pretende, por exemplo, que alguém que entre numa igreja pela primeira vez chegue, no espaço de dez minutos (a média recomendada de tempo das homilias, no melhor dos casos), a conclusões que o pregador talvez tenha levado vários anos a tirar, se por acaso isso chegou a acontecer? 

 

    De resto, quando o orador parte do suposto que as pessoas têm os conhecimentos suficientes para saberem do que ele está a falar, pode estar a cometer um erro elementar. Eu estou convencido que, ao contrário, o que sucede com muita frequência é que as pessoas, na sua maioria, de facto, não entendem o que se lhes está a ser dito. Elas não têm o background específico para perceberem as conexões ou as conclusões que são tiradas.

 

  • A Palavra que se realiza hoje

   A Bíblia, que é a Palavra de Deus através de palavras humanas, é uma palavra que se realiza todos os dias e, portanto, também hoje, passo a passo, exatamente porque não é só palavra humana (de resto, é um facto que a própria palavra humana só vai penetrando aos poucos). Com maior razão a Palavra, que é palavra viva que Deus diz em todas as circunstâncias. E, como linguagem humana que é (porque não se pode esquecer esse pormenor), a pregação da palavra é um processo de aprendizagem que pode levar mais ou menos tempo, conforme as capacidades (ou incapacidades) de quem a está a escutar; e de quem está a falar.

 

    Seja como for, e respeitados esses requisitos, o Evangelho não conta só a vida de Jesus. Quer contar também a nossa vida. Nesse sentido, o Evangelho - e a Bíblia em geral - é um livro que não nos pode deixar indiferentes. Por isso, a Liturgia da Palavra não é apenas uma simples lição de catequese ou de moral nem é apenas a afirmação duma qualquer coisa que há-de acontecer no futuro. Ela proclama o cumprimento dos planos de Deus no hoje da vida e na vida da comunidade dos cristãos (e também dos não cristãos, quando os cristãos o são de verdade), pese embora o facto de que o efeito da Palavra não se produ de modo imediato mas através do tempo e das circunstâncias da vida.

 

    Na visão bíblica, não se contempla só um passado que não volta mais, ou um futuro extraordinário inatingível, mas vive-se o tempo presente como lugar privilegiado da vida do Senhor. É isso talvez o que falta nas nossas homilias e demais comentários à Palavra de Deus: a adesão à vida, a convicção de que não só Deus assume a natureza humana, mas também a sua Palavra assume também a natureza da palavra humana.

 

  • Não se trata de palavra «morta»

    Assim como Deus não é um Deus dos mortos, mas sim dos vivos, assim também a sua Palavra, como qualquer das suas manifestações, é Palavra viva, e não morta. Portanto, tanto o Antigo como o Novo Testamento são vivos, atuais. E, porque é uma realidade vida, segue naturalmente as leis da vida, uma das quais é a de que a natureza não faz saltos, a não ser excecionalmente.

 

    De resto, bem vistas as coisas, de pouco serviria essa Palavra se só se tratasse de documentos do passado. Mas em cada página poderemos, num determinado momento, descobrir como que uma voz que nos diz: «Olha, aqui fala-se de nós! Eu sou Adão! Nós... somos os apóstolos que trabalharam no mar! Somos nós que nos encontramos precisamente no caminho do Calvário com Jesus!». Desta maneira, através da Palavra de Deus, acabamos por descobrir lentamente qual é a nossa vida aos seus olhos; ou, por outras palavras, a nossa vida na sua dimensão mais profunda.

 

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Jubileu 2025: Dioceses do mundo celebram o «6º Domingo da Palavra de Deus»

Lisboa, 21 jan 2025 (Ecclesia) – Em todas as dioceses do mundo vai ser celebrado, a 26 deste mês, o 6º Domingo da Palavra de Deus, sendo esta edição no contexto do Ano Jubilar.

“Trata-se de uma iniciativa profundamente pastoral que o Papa Francisco desejou para que as pessoas compreendam como é importante, na vida quotidiana da Igreja e das comunidades, a Palavra de Deus”, refere uma nota enviada à Agência ECCLESIA.

Uma Palavra que “não se reduz a um livro, mas que está sempre viva e se torna um sinal concreto e palpável”, adianta.

O lema escolhido pelo Papa Francisco para esta edição de 2025 é um versículo do Salmo 119, «Espero na tua Palavra».

O Papa vai presidir à celebração da Eucaristia na Basílica de São Pedro, no Vaticano, às 09h30, e no final da liturgia distribui o Evangelho de Lucas aos presentes, com a intenção, já tradicional, de difundir a Palavra de Deus de forma concreta.

Durante a celebração, o Papa Francisco vai conferir o ministério do leitor a quarenta leigos, homens e mulheres, provenientes de diversas nações: 4 da Albânia, 3 da Argentina, 5 da Áustria, 1 da Bolívia, 4 do Brasil, 5 das Filipinas, 1 da Islândia, 6 da Itália, 5 do México, 1 da Polónia, 5 da Eslovénia.

«É um grito de esperança: o homem, no momento da angústia, da tribulação, do não-sentido, clama a Deus e põe nele toda a sua esperança», sublinhou o Pró-Prefeito do Dicastério para a Evangelização, D. Rino Fisichella.

O Papa Francisco vai presidir à celebração eucarística na Basílica de São Pedro, um evento que coincidirá com o “primeiro grande Jubileu do Mundo da Comunicação”.

Para preparar a celebração o Dicastério para a Evangelização elaborou um subsídio litúrgico-pastoral que se encontra online e que pode ser descarregado gratuitamente. O documento, disponível em italiano, inglês, espanhol, francês, português e polaco, foi pensado para apoiar as comunidades paroquiais e as dioceses.

LFS

 

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N.B. Embora se celebre apenas no tempo pascal (1 de junho, Domingo da Ascensão), aproveito para propor a mensagem do papa Francisco para o Dia Mundial das Comunicações Sociais:

 

MENSAGEM DE SUA SANTIDADE PAPA FRANCISCO
PARA O LIX DIA MUNDIAL DAS COMUNICAÇÕES SOCIAIS

Partilhai com mansidão a esperança que está nos vossos corações (cf. 1 Pd 3,15-16)

Queridos irmãos e irmãs!

Neste nosso tempo marcado pela desinformação e pela polarização, no qual alguns centros de poder controlam uma grande massa de dados e de informações sem precedentes, dirijo-me a vós consciente do quanto, hoje mais do que nunca, é necessário o vosso trabalho de jornalistas e comunicadores. Precisamos do vosso compromisso corajoso em colocar no centro da comunicação a responsabilidade pessoal e coletiva para com o próximo.

Ao pensar no Jubileu que estamos a celebrar como um período de graça em tempos tão conturbados, com esta Mensagem gostaria de vos convidar a ser comunicadores de esperança, começando pela renovação do vosso trabalho e missão segundo o espírito do Evangelho.

Desarmar a comunicação

Hoje em dia, com demasiada frequência, a comunicação não gera esperança, mas sim medo e desespero, preconceitos e rancores, fanatismo e até ódio. Muitas vezes, simplifica a realidade para suscitar reações instintivas; usa a palavra como uma espada; recorre mesmo a informações falsas ou habilmente distorcidas para enviar mensagens destinadas a exaltar os ânimos, a provocar e a ferir. Já várias vezes insisti na necessidade de “desarmar” a comunicação, de a purificar da agressividade. Nunca dá bom resultado reduzir a realidade a slogans. Desde os talk shows televisivos até às guerras verbais nas redes sociais, todos constatamos o risco de prevalecer o paradigma da competição, da contraposição, da vontade de dominar e possuir, da manipulação da opinião pública.

Há ainda um outro fenómeno preocupante: poderíamos designá-lo como a “dispersão programada da atenção” através de sistemas digitais que, ao traçarem o nosso perfil de acordo com as lógicas do mercado, alteram a nossa perceção da realidade. Acontece portanto que assistimos, muitas vezes impotentes, a uma espécie de atomização dos interesses, o que acaba por minar os fundamentos do nosso ser comunidade, a capacidade de trabalhar em conjunto por um bem comum, de nos ouvirmos uns aos outros, de compreendermos as razões do outro. Parece que, para a afirmação de si próprio, seja indispensável identificar um “inimigo” a quem atacar verbalmente. E quando o outro se torna um “inimigo”, quando o seu rosto e a sua dignidade são obscurecidos de modo a escarnecê-lo e ridicularizá-lo, perde-se igualmente a possibilidade de gerar esperança. Como nos ensinou D. Tonino Bello, todos os conflitos «encontram a sua raiz no desvanecer dos rostos» [1]. Não podemos render-nos a esta lógica.

Na verdade, ter esperança não é de todo fácil. Georges Bernanos dizia que «só têm esperança aqueles que ousaram desesperar das ilusões e mentiras nas quais encontravam segurança e que falsamente confundiam com esperança. [...] A esperança é um risco que é preciso correr. É o risco dos riscos» [2]. A esperança é uma virtude escondida, pertinaz e paciente. No entanto, para os cristãos, a esperança não é uma escolha, mas uma condição imprescindível. Como recordava Bento XVI na Encíclica Spe salvi, a esperança não é um otimismo passivo, antes pelo contrário, é uma virtude “performativa”, capaz de mudar a vida: «Quem tem esperança, vive diversamente; foi-lhe dada uma vida nova» (n. 2).

Dar com mansidão a razão da nossa esperança

Na Primeira Carta de São Pedro (cf. 3, 15-16), encontramos uma síntese admirável na qual se relacionam a esperança com o testemunho e a comunicação cristã: «no íntimo do vosso coração, confessai Cristo como Senhor, sempre dispostos a dar a razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la peça; com mansidão e respeito». Gostaria de me deter em três mensagens que podemos extrair destas palavras.

«No íntimo do vosso coração, confessai Cristo como Senhor». A esperança dos cristãos tem um rosto: o rosto do Senhor ressuscitado. A sua promessa de estar sempre connosco através do dom do Espírito Santo permite-nos esperar contra toda a esperança e ver, mesmo quando tudo parece perdido, as escondidas migalhas de bem.

A segunda mensagem pede-nos para estarmos dispostos a dar razão da nossa esperança. É interessante notar que o Apóstolo convida a dar conta da esperança «a todo aquele que vo-la peça». Os cristãos não são, antes de mais, aqueles que “falam” de Deus, mas aqueles que fazem ressoar a beleza do seu amor, uma maneira nova de viver cada pequena coisa. É o amor vivido que suscita a pergunta e exige uma resposta: porque é que viveis assim? Porque é que sois assim?

Por fim, na expressão de São Pedro encontramos uma terceira mensagem: a resposta a este pedido deve ser dada “com mansidão e respeito”. A comunicação dos cristãos – e eu diria até a comunicação em geral – deve ser feita com mansidão, com proximidade: eis o estilo dos companheiros de viagem, na peugada do maior Comunicador de todos os tempos, Jesus de Nazaré, que ao longo do caminho dialogava com os dois discípulos de Emaús, fazendo-lhes arder os corações através do modo como interpretava os acontecimentos à luz das Escrituras.

Por isso, sonho com uma comunicação que saiba fazer de nós companheiros de viagem de tantos irmãos e irmãs nossos para, em tempos tão conturbados, reacender neles a esperança. Uma comunicação que seja capaz de falar ao coração, de suscitar não reações impetuosas de fechamento e raiva, mas atitudes de abertura e amizade; capaz de apostar na beleza e na esperança mesmo nas situações aparentemente mais desesperadas; de gerar empenho, empatia, interesse pelos outros. Uma comunicação que nos ajude a «reconhecer a dignidade de cada ser humano e a cuidar juntos da nossa casa comum» (Carta enc. Dilexit nos, 217).

Sonho com uma comunicação que não venda ilusões ou medos, mas seja capaz de dar razões para ter esperança. Martin Luther King disse: «Se eu puder ajudar alguém enquanto caminho, se eu puder alegrar alguém com uma palavra ou uma canção... então a minha vida não terá sido vivida em vão» [3]. Para isso, precisamos de nos curar da “doença” do protagonismo e da autorreferencialidade, evitar o risco de falarmos de nós mesmos: o bom comunicador faz com que quem ouve, lê ou vê se torne participante, esteja próximo, possa encontrar o melhor de si e entrar com estas atitudes nas histórias contadas. Comunicar deste modo ajuda a tornarmo-nos “peregrinos de esperança”, como diz o lema do Jubileu.

Esperar juntos

A esperança é sempre um projeto comunitário. Pensemos, por um momento, na grandeza da mensagem deste ano de graça: estamos todos – realmente todos! – convidados a recomeçar, a deixar que Deus nos reerga, nos abrace e inunde de misericórdia. E entrelaçadas com tudo isto estão a dimensão pessoal e a dimensão comunitária. É em conjunto que nos pomos a caminho, peregrinamos com tantos irmãos e irmãs, e, juntos, atravessamos a Porta Santa.

O Jubileu tem muitas implicações sociais. Pensemos, por exemplo, na mensagem de misericórdia e esperança para quem vive nas prisões, ou no apelo à proximidade e à ternura para com os que sofrem e estão à margem. O Jubileu recorda-nos que todos os que se tornam construtores da paz «serão chamados filhos de Deus» (Mt 5, 9). E, deste modo, abre-nos à esperança, aponta-nos a necessidade de uma comunicação atenta, amável, refletida, capaz de indicar caminhos de diálogo. Encorajo-vos, portanto, a descobrir e a contar tantas histórias de bem escondidas por detrás das notícias; a imitar aqueles exploradores de ouro que, incansavelmente, peneiram a areia em busca duma pequeníssima pepita. É importante encontrar estas sementes de esperança e dá-las a conhecer. Ajuda o mundo a ser um pouco menos surdo ao grito dos últimos, um pouco menos indiferente, um pouco menos fechado. Que saibais sempre encontrar as centelhas de bem que nos permitem ter esperança. Este tipo de comunicação pode ajudar a tecer a comunhão, a fazer-nos sentir menos sós, a redescobrir a importância de caminhar juntos.

Não esqueçais o coração

Queridos irmãos e irmãs, perante as vertiginosas conquistas da técnica, convido-vos a cuidar do coração, ou seja, da vossa vida interior. O que é que isto significa? Deixo-vos algumas pistas.

Sede mansos e nunca esqueçais o rosto do outro; falai ao coração das mulheres e dos homens ao serviço de quem desempenhais o vosso trabalho.

Não permitais que as reações instintivas guiem a vossa comunicação. Semeai sempre esperança, mesmo quando é difícil, quando custa, quando parece não dar frutos.

Procurai praticar uma comunicação que saiba curar as feridas da nossa humanidade.

Dai espaço à confiança do coração que, como uma flor frágil mas resistente, não sucumbe no meio das intempéries da vida, mas brota e cresce nos lugares mais inesperados: na esperança das mães que rezam todos os dias para rever os seus filhos regressar das trincheiras de um conflito; na esperança dos pais que emigram, entre inúmeros riscos e peripécias, à procura de um futuro melhor; na esperança das crianças que, mesmo no meio dos escombros das guerras e nas ruas pobres das favelas, conseguem brincar, sorrir e acreditar na vida.

Sede testemunhas e promotores de uma comunicação não hostil, que difunda uma cultura do cuidado, construa pontes e atravesse os muros visíveis e invisíveis do nosso tempo.

Contai histórias imbuídas de esperança, tomando a peito o nosso destino comum e escrevendo juntos a história do nosso futuro.

Tudo isto podeis e podemos fazê-lo com a graça de Deus, que o Jubileu nos ajuda a receber em abundância. Por isto, rezo por cada um de vós e pelo vosso trabalho, e vos abençoo.

Roma, São João de Latrão, na Memória de São Francisco de Sales, 24 de janeiro de 2025.

Francisco

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[1] “La pace come ricerca del volto”, in Omelie e scritti quaresimali, Molfetta 1994, 317.

[2] Georges Bernanos, La liberté, pour quoi faire?, Paris 1995.

[3] Sermão“ The Drum Major Instinct”, 4 de fevereiro de 1968.

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