Temas de fundo |
1ª leitura (Is 62,1-5): Por amor de Sião, não me calarei, por amor de Jerusalém, não descansarei em paz, até que apareça a aurora da sua justiça, e até que a sua salvação brilhe como uma chama. Então, as nações verão a tua justiça e todos os reis a tua glória. Ser-te-á dado um nome novo, designado pela boca do Senhor. Serás como uma coroa brilhante nas mãos do Senhor, e um diadema real nas mãos do teu Deus. Já não serás mais chamada a «Desamparada», nem a tua terra será chamada «Deserta». Antes, serás chamada «Minha Dileta» e a tua terra a «Desposada», porque o Senhor elegeu-te como preferida, e a tua terra receberá um esposo. Assim como um jovem se casa com uma jovem, assim também te desposa aquele que te reconstrói. Assim como a esposa é a alegria do seu marido, assim serás a alegria do teu Deus.
* As nações verão a tua justiça. Embora de concreto não se saiba muito sobre a personalidade do III Isaías (nos meios académicos também conhecido por Trito-Isaías), é certo, no entanto, que o contexto histórico geral dos capítulos que o compõem (56 a 66) se situa em Judá (e mais especificamente em Jerusalém. O tema geral diz respeito à situação política, social e religiosa da Judeia, logo a seguir ao exílio da Babilónia. A sequência do édito do rei persa Ciro, que derrota a Babilónia e autoriza o regresso do exílio e a reconstrução de Jerusalém (538-537 a.C.), suporia uma situação de alegria e de patriotismo. Mas as coisas não são bem assim, porque reconstruir um país ou até só uma cidade não é tarefa fácil. Tanto para os que chegam do exílio - os «retornados» - como para os que vivem já no local. No caso dos judeus que regressam à sua terra, aparece um profeta (precisamente o chamado terceiro Isaías, de onde é extraído o texto de hoje) que usa de todos os recursos poéticos para transmitir coragem aos seus concidadãos. Exagerando um poucos as tintas, ele deixa-se levar pelo entusiasmo e descreve a cidade santa com cores festivas. E chega mesmo a atribuir a Jerusalém uma capacidade «aglutinadora» à volta da qual se reunem todos os outros povos. As imagens, mutuadas porventura duma festa de noivado, são arrojadas, mas permitidas a um poeta (não esqueçamos que o Livro de Isaías é, ao fim e ao cabo, poético). Nós temos é que saber ir para além das imagens, para descobrir uma mensagem que nos diga respeito, a nós hoje. E então penso que a ideia e a aplicação mais simples e imediatas têm a ver com a «garantia» de que o profeta nos dá da presença constante e íntima de Deus junto do seu povo: tanto do antigo como do novo; este último inaugurado com a vinda de Cristo, que é «Deus-connosco». Deus é sempre Deus-connosco, quer a nível global quer a nível pessoal, independentemente das circunstâncias em que nos toque viver.
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2ª leitura (1Cor 12,4-11): Há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo. Há diversidade de serviços, mas o Senhor é o mesmo. Há diversos modos de agir, mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos. A cada um é dada a manifestação do Espírito, para proveito comum. A um é dada, pela ação do Espírito, uma palavra de sabedoria; a outro, uma palavra de ciência, segundo o mesmo Espírito; a outro, o dom das curas, no único Espírito; a outro, o poder de fazer milagres; a outro, a profecia; a outro, o discernimento dos espíritos; a outro, a variedade de línguas; a outro, por fim, a interpretação das mesmas. Tudo isto, porém, o realiza o único e o mesmo Espírito, distribuindo a cada um conforme lhe apraz.
* Diversidade de dons, mas o mesmo Espírito. Os capítulos 12 a 14 da 1ª Carta aos Coríntios falam dos carismas. Com o termo «carisma» pretende-se indicar uma capacidade ou dom - e não só referida a uma pessoa singular - que procede do Espírito e que leva a agir segundo as sugestões do Espírito. Nessa perspetiva, então o texto desta segunda leitura não tem nada que entender, tal é a sua clareza. Ou seja, a intenção de S. Paulo, ao falar no assunto, é pôr os cristãos de aviso, para que não se desbarate e abuse de algo - o carisma precisamente - oferecido pelo Espírito para a construção comum. O que implica que, afinal de contas, ninguém, seja quem form, tem o exclusivo do Espírito. A propósito de «instrumentalização» do Espírito, há fundamentalmente dois tipos de abuso: o daqueles que julgam que podem dispor dos seus dons ou qualidades a seu bel-prazer, incluindo a possibilidade de os enterrar; e o daqueles que, por motivos que pouco têm a ver com o «interesse» do Reino de Deus, se recusam a reconhecer que os carismas ou dons do Espírito não são exclusivos de uns poucos privilegiados. Ninguém se pode gabar de possuir os carismas como se fossem sua propriedade. Ora bem, neste caso, há que referir que os que mais expostos a esta última tentação são todos os constituídos em autoridade, que estão encarregados de discernir as situações concretas e as iniciativas a tomar: discernir então os espíritos não quer dizer proibir ou «cortar as asas» a ninguém, mas, ao contrário, contribuir para que os carismas sejam o mais corretamente utilizados em em prol da comunidade.
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Evangelho (Jo 2,1-11): Um dia, houve uma boda em Caná da Galileia e a mãe de Jesus estava lá. Jesus e os seus discípulos também foram convidados para a boda. Entretanto, como viesse a faltar o vinho, a mãe de Jesus disse-lhe: «Olha, não têm vinho!». Jesus respondeu-lhe: «Mulher, que tem isso a ver comigo e contigo? Ainda não chegou a minha hora». Então a sua mãe disse aos serventes: «Fazei tudo o que Ele vos disser». Ora, havia ali 6 talhas de pedra preparadas para os ritos de purificação dos judeus, com capacidade para duas ou três medidas cada. Disse-lhes Jesus: «Enchei as talhas de água». Eles encheram-nas até cima. Então Ele ordenou-lhes: «Tirai agora e levai ao chefe de mesa». E eles assim fizeram. O chefe de mesa provou a água transformada em vinho, sem saber de onde era (se bem que o soubessem os serventes que tinham tirado a água), chamou o noivo e disse-lhe: «Toda a gente serve primeiro o vinho melhor e, depois de todos terem bebido bem, é que serve o pior. Tu, porém, guardaste o melhor vinho até agora». Assim, em Caná da Galileia, Jesus realizou o primeiro dos seus sinais miraculosos, com o qual manifestou a sua glória, e os discípulos creram nele.
* Os discípulos de Jesus acreditaram nele. Em relação a este texto, bem como a outros, é legítima a curiosidade de saber se, por exemplo, este milagre é apenas um milagre ou é mais auguma coisa. E seria curioso saber a quanto correspondia a capacidade das seis talhas. Mas, para isso, não é preciso senão ir à respetiva nota de rodapé duma boa edição da Bíblia para chegar à conclusão de que as jarras podiam conter pelo menos 500 litros. Mas isso não passa, afinal, de uma curiosidade. Agora, mais importante do que isso, é tentar descobrir a intenção da Igreja ao propor uma leitura destas logo no início do tempo comum. É também peculiar que, ao contrário do que seria de supor (sendo Lucas o evangelista deste ano), o texto evangélico deste domingo seja da autoria do evangelista João. Agora, o que importa é descobrir qual foi a ideia do evangelista João, que, diga-se de passagem, é o único que fala deste «episódio». Pode-se afirmar que o evangelista está no seu direito de escolher os «episódios» que quiser, mas ele não o faz por puro capricho. Agora, que como primeiro dos sete sinais/ milagres, João tenha escolhido um episódio em que o tema é uma boda, isso tem, certamente, um alcance que vai muito para além do simples «milagre» ou sinal prodigioso. Por outras palavras, as bodas de Caná são um «sinal» para os discípulos de Jesus e para todos os outros presentes. Ora, como é sabido, na linha da tradição profética, bem como de outros escritos, a abundância do vinho, e sobretudo do vinho bom, é sinal messiânico (cf., por exemplo, Is 25,6; Jr 31,12; Am 9,14; Zac 9,17). Eis a razão por que o evangelista S. João não deixa de acrescentar que os discípulos, por causa deste sinal, creram em Jesus. Além do mais, julgo que não seja exagerado dizer que se pode descortinar também aí uma referência implícita à Eucaristia, Nova Aliança selada na «hora» de Cristo através do seu sangue. Mas há mais: o facto de João colocar como primeiro «sinal» do seu evangelho as Bodas de Caná não será dar-nos a ideia de que Jesus se fez de tal maneira um de nós que não quis omitir sequer os factos normais do dia-a-dia, para «provar» que Ele não está aí para estragar a vida a ninguém, antes pelo contrário, está bem presente em tudo quanto é a vida normal das pessoas, sem excluir sequer um matrimónio que se celebra em Caná da Galileia.
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* Serás a alegria do teu Deus.
* A manifestação do Espírito é para proveito comum.
* Fazei tudo o que Ele vos disser. |
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INÍCIO DOS MILAGRES DE JESUS EM CANÁ DA GALILEIA. |
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A comunidade nasce pela fé
Com o Batismo no Rio Jordão, tem início a vida pública de Jesus, cuja característica especial, em termos genéricos, é a pregação sobre o Reino de Deus ou Reino dos Céus. A partir de João Batista, que como que fecha o ciclo do AT, é o próprio Deus feito um de nós, na pessoa de Jesus Cristo, que continua a iniciativa de «mostrar», sem margem para dúvidas, aos homens que «Deus amou de tal maneira o mundo que lhe entregou o seu Filho unigénito, para que todos os que nele creem não se percam, mas se salvem» (cf. Jo 3,16). Por outras palavras, sem nunca deixar de ser o que sempre foi, Deus, nos tempos previamente decididos, assumiu a natureza humana para, por ela, nos livrar do mal e sobretudo para nos prometer que continua a ser nosso Deus e nosso Pai, esperando que nós aceitemos ser seu povo e seus filhos.
Isso faz-me lembrar que, como, de resto, se aprende na catequese, Jesus - que é verdadeiramente Deus-connosco - não deixa, por isso, de ser, ao mesmo tempo, verdadeiramente homem. Como diz o próprio NT, em termos de natureza humana, Ele é em tudo igual a nós, exceto no pecado. Nesse aspeto, Ele não tem que ser imaginado como Alguém completamente diferente dos outros seres humanos; antes pelo contrário. Por isso, com a suposta pretensão de O enaltecer, dizer, por exemplo, que Ele não tinha amigos, é um autêntico contrasenso. Também nesse aspeto, Ele é igual a nós. E, no caso concreto da amizade, aceita, sem qualquer problema, o convite que lhe é feito para um casamento, juntamente com a mãe e os seus discípulos (cf. texto evangélico de hoje). A primeira conclusão a tirar deste facto é que esta proximidade o torna «acessível» em tudo o que é humano.
Agora, o facto de dizermos que Jesus é também verdadeiramente homem não implica, por causa disso, que deixe de ser o que sempre é: verdadeiramente Deus. Se, de alguma forma se pode dizer que o homem como tal é um autêntico mistério, então faz ainda mais sentido dizer que Jesus é um autêntico «mistério». Por outro lado, Ele nunca deixará de ser mistério porque não se revela em toda a sua realidade por causa da nossa incapacidade de O compreender. Por iosso, Ele não manifesta a sua identidade senão por sinais e pouco a pouco. É uma revelação que Ele faz paulatinamente com sapiente pedagogia. E, para o fazer, serve-se exatamente daquilo que é especificamente humano, pois é essa a maneira de o homem se exprimir e compreender.
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Tudo começa com uma festa de núpcias...
Neste aspeto em particular, o evangelista João, provavelmente repensando, à luz do Espírito Santo, em tantos dos factos em que tinha estado envolvido pessoalmente, ao contrário dos outros evangelistas, faz-nos saber que Jesus começou a revelar a sua «identidade» precisamente durante as Bodas de Caná. Pela Encarnação, Deus faz-se homem e não se envergonha, por assim dizer, de Se manifestar através do que são as coisas e os usos e costumes humanos. No caso concreto, a «hora« da primeira manifestação, se assim se pode dizer, é precisamente durante um casamento. Se fôssemos nós, muito possivelmente faríamos todo o possível para inventar um episódio que fugisse por completo do dia-a-dia das pessoas. Mas - felizmente - não somos nós que determinados as «horas» de Deus. É curioso que o mesmo evangelista João não tenha qualquer espécie de problema de consciência em como que culminar esta revelação na morte (e ressurreição), naquela que ele chama a «hora» de Jesus.
«Do mesma maneira, a adesão dos discípulos a Cristo tem uma história, que começa com a sua fé a desabrochar precisamente em Caná. Sim, é ali que nasce algo de novo relacionamento com Cristo e, consequentemente, um novo relacionamento entre eles. A ligação que faz deles uma comunidade é a fé comum em Jesus. Cristo começa a revelar a sua identidade não de maneira verbal explícita, quase como através duma fórmula dogmática, mas sim através duma linguagem gestual» («Messale dell'Assemblea Cristiana»).
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... e acaba nas núpcias eternas
«Os profetas tinham descrito o relacionamento entre o homem e Deus em termos de relação nupcial (1ª leitura). O povo de Israel - simbolizando a esposa escolhida por Deus - foi muitas vezes infiel e teve que ser purificado através de duras provas, como o exílio. Nestes momentos de prova e de abandono, o profeta anuncia a fidelidade de Deus que não deixa de amar sempre, não obstante tudo o que acontece, mas virá o momento em que Deus se unirá indissoluvelmente e para sempre à humanidade. Este traço de união definitivo é Jesus».
«Caná é vista pelo evangelista João como o banquete nupcial da união definitiva do homem com Deus, e assim assinala a inauguração dos tempos messiânicos. O sinal de Caná revela a glória de Jesus, desvenda o seu ser divino».
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Caná: início da Igreja como comunidade de fé
«Paralelamente à primeira revelação de Jesus, acontece a passagem do antigo ao novo povo de Deus; não já baseado na "carne e no sangue", nas na fé em Jesus. Este é o primeiro dos sinais feitos por Jesus. Um sinal visível com o qual manifesta a sua glória e pelo qual os discípulos acreditam nele».
«Este grupo de crentes em Jesus, nascido a partir deste episódio de Caná, torna-se Igreja. Na 2ª leitura, encontramos esta Igreja viva que, em Corinto, tem entre mãos um problema fundamental: a unidade que deriva da fé comum em Jesus e a diversidade de carismas. Deus enche de dons naturais e sobrenaturais os membros da comunidade».
«Estes dons não devem ser um privilégio pessoal, nem um meio para a afirmação de si mesmo, mas um serviço pelos outros. Esses dons devem ser harmonizados e postos a render, pois são fruto não das forças humanas, mas sim do Espírito».
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Abertura ao Espírito
«Esta revelação de Cristo coloca-nos a nós também algumas questões. Quais são os sinais pelos quais cada homem pode "conhecer" a Jesus? A fé de Maria como que força Jesus a "manifestar-se". É graças a isso que os discípulos acreditam nele. De certa maneira, eles também participam da fé de Maria. Não será também esta a tarefa da Igreja, a tarefa de todos os cristãos: despertar ou comunicar a fé»?
«A humanidade, também hoje, está em estado de exílio: guerras, medos, injustiças... De onde virá a salvação? Unicamente do empenho e esforço humano (que também é necessário) ou da aliança e união nupcial com Deus? Nesta obra de salvação humano-divina, a Igreja e cada crente têm a tarefa de pôr tudo o que são têm ao serviço dos outros. Por sua vez, a pequena Igreja em que estamos inseridos talvez esteja só à espera de ser "unida" por uma fé mais viva em Cristo que se revela».
(O texto acima entre comas é tirado de «Messale dell'Assemblea Cristiana»