Temas de fundo |
1ª leitura (Is 53,2a.3a.10-11): O servo cresceu diante do Senhor como um rebento, como raiz em terra árida. Foi desprezado e abandonado pelos homens, mas suportou a dor e o sofrimento... Foi da vontade do Senhor sujeitá-lo ao sofrimento, para que a sua morte fosse um sacrifício de reparação. E assim verá durar a sua posteridade que viverá longos dias, e o desígnio do Senhor realizar-se-á por seu intermédio. Depois duma vida de sofrimento, verá de novo a alegria e saberá que o seu sofrimento não foi em vão... * O seu sofrimento não foi em vão. Esta é uma passagem do chamado quarto «Cântico do Servo de Javé». Suponho que terá sido escolhida para «ilustrar» e ajudar a ler o texto evangélico. Tanto aqui como no texto evangélico, são propostos critérios de avaliação que pouco têm a ver com os critérios humanos, ou, melhor dizendo, mundanos. Por outras palavras, a importância do Servo de Deus não se mede pelo seu sucesso, mas, ao contrário, pelo insucesso, que se traduz no sofrimento e na morte. Não se pode olhar para esse servo, porém, só sob o prisma do sofrimento e da morte que, em si, não são realidades positivas. Estas só se revestem de algum sentido na medida em que forem a tradução ou, se quisermos, a personalização do serviço e do amor aos outros. A «obediência» até à morte - no caso de Jesus, morte de cruz - torna-se uma nova forma de amor/serviço e início dum novo povo. É essa a origem de uma prosperidade (felicidade) duradoira. PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.
2ª leitura (Hb 4,14-16): Mantenhamo-nos firmes na fé que professamos, já que temos um grande Sumo Sacerdote que está na presença de Deus, Jesus, o próprio Filho de Deus. De facto, o nosso Sumo Sacerdote não é alguém que não possa compadecer-se das nossas fraquezas; antes pelo contrário, já que Ele foi provado em tudo como nós, excepto no pecado. Então, com grande confiança, aproximemo-nos do trono da graça, para alcançar misericórdia e encontrar a graça para nos ajudar quando precisamos. * Temos um Sacerdote junto de Deus. Este trecho da Carta aos Hebreus tem relação íntima com o tema que vem logo a seguir (5,1-10) e que fala do papel de Jesus como Sumo-Sacerdote. A sua missão é restabelecer para sempre os laços de amizade com Deus que tinham sido interrompidos com o pecado. Suponho que o mínimo que podemos fazer é agradecer o facto de Ele se ter colocado no nosso lugar para merecer o que nós não somos capazes de merecer. Por vezes, dá a impressão que não confiamos plenamente nele e sobretudo custa-nos a admitir que Ele tenha passado pelos sofrimentos e pela dor, como nós passamos. Facilmente, pelo menos a nível inconsciente, nos desculpamos dizendo que Ele era Deus e que, portanto, as coisas eram mais fáceis. Só que isso leva a cometer um erro grave, que é, na prática, negar que Ele, para além de ser verdadeiramente Deus, é também verdadeiramente Homem. O sofrimento e a morte por que Ele passou não foram apenas uma figura e uma «brincadeira» teatral. Seja como for, uma coisa é certa: Ele está, como dizemos no Credo, à direita do Pai para interceder sempre por nós. PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.
Evangelho (Mc 10,35-45): Tiago e João, filhos de Zebedeu, foram ter com Jesus e disseram-lhe: «Mestre, queremos que nos faças o que te pedimos». «O que quereis?», perguntou-lhes Jesus. Eles disseram: «Concede-nos que, na tua glória, nos sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda». Jesus respondeu: «Não sabeis o que estais a pedir. Podeis beber o cálice que Eu estou para beber e receber o baptismo que Eu estou para receber»? Eles responderam: «Claro que podemos»! Jesus disse-lhes: «De facto, quanto a beber o cálice que Eu tenho que beber, bebê-lo-eis também e sereis baptizados com o baptismo com que Eu vou ser baptizado. Mas sentar-se à minha direita ou à minha esquerda não me compete a mim concedê-lo. É para aqueles para quem foi reservado». Os outros dez, ao ouvirem isto, ficaram indignados contra Tiago e João. Então Jesus chamou-os a todos e disse-lhes: «Sabeis como é que os que são considerados governantes das nações exercem a sua autoridade sobre elas e como os grandes exercem o seu poder. Ora, não deve ser assim entre vós. Quem quiser ser grande entre vós, faça-se vosso servo e quem quiser ser o primeiro entre vós, faça-se servo de todos. Pois nem sequer o Filho do Homem veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por todos». * Quem quiser ser o primeiro, faça-se servo de todos. O pano de fundo, digamos assim, deste trecho evangélico é a ideia errada que os Apóstolos tinham sobre a missão de Jesus, pese embora o facto de terem lidado com Ele bastante tempo. Nesse aspecto, em quase nada se distinguiam dos outros judeus que esperavam um Messias guerreiro, um Messias político, que os libertasse duma vez para sempre do jugo dos Romanos e, por outro lado, fizesse de Israel, por assim dizer, a nova super-potência do mundo de então. Hoje, talvez nos pareça que esta mentalidade está completamente ultrapassada. Mas será verdadeiramente assim? Não será que, ainda hoje, estamos tantas vezes à espera dum Deus e dum Messias que arrase tudo à Sua frente, como se a forma como o mundo deve ser «tratado» tenha que se adequar aos nossos padrões de entendimento? Será que estamos mesmo convencidos, incluindo a nível de cume da pirâmide, de que «quem quiser ser o primeiro tem que ser o último de todos»? Será que estamos mesmo convencidos de que não somos mais do que o Mestre e o Mestre não veio para ser servido mas sim para servir e dar a vida em resgate por todos? PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. |
* Oferecendo a sua vida, terá uma posteridade duradoira. * Aproximemo-nos confiadamente do trono da graça. * O Filho do homem veio para dar a própria vida. |
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VEIO PARA SERVIR E DAR A VIDA EM RESGATE DE TODOS. |
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Salvos pela sua morte
Renunciar às riquezas, conforme foi dito no domingo anterior, é sobretudo demonstrar uma disponibilidade tal que se está disposto a tudo fazer pelos outros e, concretamente, a renunciar a tudo, para fazer a opção por Deus, como o próprio Jesus o demonstrou para com os homens morrendo numa cruz. Nessa óptica, o caminho para salvar os outros não é o caminho do sucesso e do poder, mas o caminho do serviço, até ao sacrifício do próprio dom da vida.
O Canto do Servo de Javé (1ª leitura) é exemplificado, digamos assim, pela conclusão da leitura evangélica de hoje: «O Filho do Homem veio... para servir e dar a própria vida em resgate por muitos». Com Mc 14,12, este é o único lugar em que Jesus anuncia o motivo da sua morte violenta. O termo «resgate» indica apropriadamente a «libertação», ou melhor, a compra ou aquisição duma pessoa, dum escravo, através do pagamento dum determinado preço.
No plano da salvação, esse dar a vida é a demonstração não só do amor de Deus feito homem pela humanidade, mas também a prova do facto de que o homem deve ter um valor tão especial para Deus, no seu Filho Jesus Cristo, que se «disponibiliza» para morrer por ele.
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Morrer por alguém? Incrível!
A primeira leitura litúrgica é tomada, como se disse, do IV Cântico do Servo de Javé (Servo Sofredor). O texto é limitado aos versículos que sublinham melhor o cumprimento da vontade divina: o sofrimento desse misterioso servo e a sua vontade em oferecer a vida em expiação. O que, no entanto, nos pode parecer estranho é que, no contexto, o autor utilize uma expressão que é susceptível de ser mal entendida, e que é o facto de se fazer referência ao comprazimento de Deus. Mas o verbo «comprazer-se», com o qual é caracterizado o agir de Deus, indica, no modo bíblico de falar, um amor que é caracterizado pela fortaleza e determinação inabalável; ou seja, precisamente o amor de Deus pelo seu povo, significa a vontade inabalável de agir para obter, custe o que custar, a salvação, o resgate de alguém. Neste caso, o resgate do povo de Israel. E é isso que, no fundo, constitui, por assim dizer, a «essência» da alegria: a certeza de tudo ter feito para procurar o bem de alguém.
A partir da Idade Média, a teologia e a pregação, apresentando a obra redentora de Jesus Cristo, puseram em relevo o aspecto da «satisfação». Bem compreendido, este termo faz parte do depósito da fé, como ensina o Concílio de Trento. Infelizmente, ao longo dos séculos (e ainda hoje), a expressão foi mal compreendida e expressa em termos pouco adequados.
Podemos resumir a ideia mais ou menos da seguinte maneira: Deus (o Pai) estava zangado e ofendido e a ordem da justiça perturbada. Tinha que haver um castigo e esse abateu-se sobre Jesus. Assim, foi restabelecida a ordem da justiça. Ora, este modo de apresentação é contra um Deus de Amor e contra a sensibilidade e a concepção do homem moderno. E, de facto, tal maneira de pensar parte duma razão em certo modo unilateral: a ideia segundo a qual o delito e o pecado destruíam a ordem jurídica. Ora, equacionar o relacionamento com Deus em termos jurídicos é algo que nunca dá resultado.
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Alguém a quem pedir perdão?
Talvez seja este um dos casos em que é preciso utilizar outro tipo de linguagem para voltar a exprimir a verdade da Redenção. Para o homem de hoje, não se trata tanto de restabelecer uma «ordem» quanto de reconciliar-se com uma «pessoa». Parece-me que também a concepção bíblica é orientada nessa direcção, pese embora o facto de a terminologia ser herdeira duma determinada mentalidade, sobretudo atendendo à época em que a tradução da Vulgata (versão da Bíblia para o latim vulgar) foi feita.
Em última análise, segundo a Bíblia, a redenção trazida por Cristo deve ser considerada, antes de mais, não propriamente em razão do sofrimento que Ele teve que suportar, mas sim em razão da disponibilidade em oferecer-se a si mesmo até à morte, e morte de cruz, por amor do homem. Há, pois, uma mudança de perspectiva que me parece importantíssima. É o amor disposto a tudo que explica tudo e não propriamente o conceito duma dívida que é preciso pagar.
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Fomos salvos pela crucifixão
É evidente, a partir dos Evangelhos, que não fomos salvos só pela vida e ressurreição de Jesus, mas também mediante a sua morte. Como é que a vida, o sofrimento e a morte de alguém possa salvar, é uma ideia não perfeitamente traduzível em conceitos linguísticos, se bem que o coração humano possa intuir do que é que se trata. É o amor que se exprime nesses gestos... E o amor não se explica, intui-se e vive-se.
Como é evidente também, o Pai não queria para Jesus nem a dor nem a morte, mas uma vida feliz. O que acontece é que Jesus, determinado a demonstrar até às últimas consequências o amor pelos homens, não recuou atemorizado nem sequer perante a perspectiva e a realidade duma morte sumamente violenta. A sua morte foi o seu supremo acto de amorosa obediência. Assim mereceu-nos efectivamente o perdão. Só neste sentido é que podemos dizer que a morte de Jesus faz parte da vontade do Pai (não em si, mas como consequência do amor).
O facto de o desígnio ou projecto do Pai em relação aos homens conter sofrimento e morte é um grande mistério que ninguém pode penetrar em profundidade. Poderá parecer inconcebível que Deus, que habita na luz inacessível, nos demonstre o seu amor desta maneira. Mas o facto é que Ele o demonstrou assim em Jesus, seu Filho... Se, como homens de fé, somos capazes de admitir que Deus não pode enganar-nos, nem se pode enganar, temos que concluir simplesmente: Ele lá deve ter as suas razões para permitir que as coisas tenham acontecido dessa maneira.
MENSAGEM DO PAPA BENTO XVI PARA O DIA MISSIONÁRIO MUNDIAL DE 2009