Temas de fundo |
1ª leitura (Jr 31,7-9): Isto diz o Senhor: «Soltai gritos de alegria por causa de Jacob, exultai pela maior das nações! Entoai cantos de louvor: "O Senhor salvou o seu povo, o resto de Israel". Eis que Eu os resgato do país do Norte e os congrego dos confins da terra. Entre eles, vêm o cego e o coxo, a mulher grávida e a que deu à luz. Tinham partido em lágrimas, mas fá-los-ei voltar em grande consolação. Conduzi-los-ei às torrentes de água, por caminhos direitos, onde não tropecem. Sou para Israel como um pai e Efraim é o meu primogénito».
* O Senhor salvou o seu povo. Por vezes a ideia que se faz do caráter do profeta Jeremias - e com certa razão, diga-se de passagem - é a de um triste e incorrigível pessimista, que está sempre a ameaçar desgraças. Seja como for, essa ideia unilateral não corresponde inteiramente à verdade. Prova disso é sem dúvida o presente texto, em que o profeta dá ao povo desanimado a garantia de que Deus nunca abandona os seus. Isso, naturalmente, deve ser causa duma grande alegria. Não me parece fácil contextualizar esta passagem, mas dá a impressão que ela se refira ao regresso dos exilados, já que faz alusão a um grupo restrito de pessoas (o «resto»). Foi o que realmente aconteceu e que constitui o núcleo a partir do qual é continuada a história da salvação. Humanamente falando, seria normal que a «reconstrução» se desse a partir dos elementos mais válidos da sociedade, mas não é isso que acontece. Ao contrário, são os cegos, os coxos e as mulheres grávidas que tipificam, por assim dizer, as bases duma nova sociedade que está para nascer. Seja como for, do que não restam dúvidas é que se trata de uma obra de Deus e será também assim que nascerá a nova realidade a estabelecer pelo novo «resto» de Israel reunido à volta de Jesus.
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2ª leitura (Hb 5,1-6): Todo o sumo sacerdote é escolhido de entre os homens e constituído para servir os homens nas coisas respeitantes a Deus, para oferecer dons e sacrifícios pelos pecados. Sendo também ele fraco em diversos aspetos, pode compadecer-se dos ignorantes e dos que erram. E porque também ele é fraco, deve oferecer sacrifícios, não só pelo povo, mas também pelos seus próprios pecados. Ninguém pode atribuir a si mesmo a honra de ser sumo sacerdote, a não ser quem é chamado por Deus, tal como Aarão. Da mesma forma, também Cristo não se atribuiu a glória de ser Sumo Sacerdote, mas concedeu-lha aquele que lhe disse: «Tu és meu Filho; Eu hoje te gerei». Ou, como diz outra passagem: «Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec».
* Tu és sacerdote para sempre. Não sei até que ponto este trecho tem tanto a ver com a primeira leitura como com o Evangelho. Nem me vou preocupar com isso. Agora, o que me é possível fazer é decifrar as condições necessárias para exercer o sacerdócio, ou seja, o processo, digamos assim, de estabelecer o contacto entre Deus e a humanidade. Em primeiro lugar, é necessário ter origem humana, com a capacidade de se compadecer com os que erram; em segundo lugar, é necessário ser chamado por Deus para exercer essa missão, independentemente dos eventuais méritos. Porém, como me parece claro, é um sacerdócio que só pode ser exercido como comparticipação no autêntico sacerdócio, exclusivo de alguém que seja capaz realmente de fazer a ligação entre a divindade e a humanidade. E esse é apenas alguém que seja ao mesmo tempo verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem. Jesus é, pois, o único sacerdote que ofereceu um sacrifício irrepetível e nós só o somos na medida em que participamos, graças aos seus méritos, na sua missão redentora e santificadora.
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Evangelho (Mc 10,46-52): Quando Jesus ia sair de Jericó com os seus discípulos, seguido duma grande multidão, havia um mendigo cego, chamado Bartimeu, filho de Timeu, que estava sentado à beira do caminho. Ora, ao ouvir dizer que estava ali Jesus de Nazaré, começou a gritar: «Jesus, Filho de David, tem piedade de mim!». Muitos repreendiam-no para o fazer calar, mas ele gritava cada vez mais: «Filho de David, tem piedade de mim!». Então Jesus parou e disse: «Chamai-o!». Então chamaram o cego dizendo-lhe: «Coragem, levanta-te que Ele chama por ti». Ele, atirando com a capa fora, deu um salto e foi ter com Jesus. Jesus então perguntou-lhe: «Que queres que faça por ti»? «Mestre, faz com que eu veja!», respondeu o cego. Então Jesus disse-lhe: «Vai, a tua fé te salvou». E logo ele recuperou a vista e seguiu Jesus pelo caminho.
* Filho de David, tem piedade de mim. O último milagre contado pelo evangelista Marcos é a cura dum cego. Para poder tirar algum «proveito» deste episódio, é preciso ultrapassar o facto simplesmente espetacular do milagre em si e procurar descobrir o que o autor - no caso, Marcos - tem em mente, ao propô-lo aos seus leitores. E, neste aspeto, o acento a colocar não pode ser senão o da importância e imprescindibilidade da fé. De alguma forma, este episódio pretende dar a volta, digamos assim, ao ditado: «ver para crer», transformando-o em: «crer para ver». É só quando a fé nos ilumina que ficamos capacitados para ver certas coisas. É por isso que não parece estranho que S. Marcos coloque este milagre não muito antes do início da paixão. Os próprios apóstolos estão incapacitados de «ver» o sentido da paixão e morte do Mestre por não terem ainda fé suficiente para olhar para as coisas a uma outra luz. É realmente preciso ter fé para entender que «dar a própria vida» equivale a ganhá-la, a salvá-la.
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* Darei muitas consolações ao cego e ao coxo.
* Tu és sacerdote para sempre.
* Mestre, que eu readquira a vista! |
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VAI, A TUA FÉ TE SALVOU. |
- O sentido do sofrimento
O profeta Jeremias (cf. 1ª leitura) é, frequentemente, descrito como «epítome», digamos assim, da tristeza, do desânimo, da desventura e da desgraça. Pois bem, no texto de Jeremias escolhido para hoje, e contra a sua maneira natural de ser, sente-se toda uma explosão de felicidade. Finalmente, ele pode deixar a tristeza e as suas contínuas mensagens de desgraça e destruição para anunciar a alegria. Ele fala do regresso dos exilados e descreve-o como obra exclusiva de Deus que salva.
A descrição profética do regresso festivo dos exilados à sua pátria é lido pela liturgia de hoje em chave ou em função evangélica. É Jesus Cristo que chama a todos, mesmo os fracos, os coxos, os cegos, ao grande regresso e os enche de consolação e alegria. A dor, o sofrimento, parecem ser etapas necessárias na caminhada do povo, mas não podem durar para sempre. Sendo assim, como é evidente, têm um fim purificador e aglutinador da identidade e singularidade dum povo, o povo hebreu. Mas também têm fim. Logo que tenha terminado a purificação para que foram «pensados».
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A dor: caminho de fé
Nas entrelinhas da 1ª leitura, é fácil ler, como em filigrana, as caraterísticas da conversão à qual todos nós somos chamados continuamente. A conversão é, pois, um regresso. Trata-se de arrepiar caminho e retomar um outro que leve ao regresso a Deus. O processo da conversão (quer se trate de uma conversão sensacional quer de uma conversão normal e quotidiana) pode passar por fases muito complicadas. Mas a libertação dessa escravidão humilhante é coroada com uma alegria que, nos momentos de tristeza e desespero, tínhamos esquecido ou desconhecíamos que pudesse existir.
A primeira leitura põe em evidência um aspecto do itinerário da conversão como gratuita e «insistente» iniciativa de Deus. Por outro lado, ao propor-nos a cura do cego Bartimeu no contexto dum ritual catecumenal, o Evangelho sublinha a necessidade da participação e resposta activa do homem. Quando, utilizando outras palavras, dizemos que, para haver um milagre, é indispensável a fé, estamos a dizer que é indispensável a resposta afirmativa do homem ao convite que Deus lhe faz através de Jesus Cristo.
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A iniciação à fé
A fé é algo de indefinível que é depositado pelo Espírito de Cristo na vida de cada homem. O Espírito tem passar por lá, pela vida (cf. Mt 20,30), para que essa luz se acenda. Trata-se, portanto, de uma manifestação misteriosa. Mas, por outro lado, há uma condição para que ela seja «percetível»: é que a pessoa esteja atenta ao que lhe acontece no seu dia a dia, mesmo que haja circunstâncias, como no caso do cego Bartimeu, em que ela não vê nada do que se passa à sua volta.
Pois bem, o cego descrito no texto evangélico representa o homem no caminho da fé. Ele não vê Jesus, mas intui a sua presença através das pessoas e dos acontecimentos que o rodeiam. Ora bem, quando se dá essa intuição, é a fé que já se está a manifestar. Mas isso implica tomar a decisão de se entregar por completo à iniciativa de Deus. À semelhança do que aconteceu com o cego do Evangelho, que foi aconselhado a estar calado e quieto, a abertura de alguém à ação de Deus é geralmente contestada pelo mundo. É necessária toda a coragem para manter esse propósito de abertura.
Por outro lado, o «candidato» à fé também se sente, por assim dizer, objecto da atenção de alguns que lhe revelam a chamada de Deus e o encorajam e incitam a avançar e a converter-se. Isso embora receba também a hostilização de colegas e vizinhos que não têm problemas em ridicularizar um semelhante propósito como perda de tempo, própria de quem não sabe bem o que diz.
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O caminho da fé nunca é fácil
Ter e viver uma fé autêntica foi sempre algo de «doloroso». Porque se trata sempre de deixar para trás de si alguma coisa. Trata-se de ir ao encontro do desconhecido (como Abraão). Trata-se de renunciar à lógica da mentalidade material e das seguranças humanas, para confiar totalmente, sem condições, no Deus das promessas.
E isto, nos dias que correm, se calhar, é ainda mais difícil do que antigamente. Se, no passado, a fé podia constituir uma explicação ou uma interpretação do universo, um «lugar» de segurança diante do absurdo da história (geral e individual) e do mistério do mundo, hoje já não é assim. Poderá verificar-se (como de facto se verifica) que, afinal, há outras «fés» com as quais se pretende fornecer a explicação dos mesmos fenómenos. Mas o facto é que a fé, no sentido religioso do termo doutros tempos, hoje não é tão comummente aceite.
«Os movimentos de ideias, o progresso tecnológico, a expansão dos bens de consumo, a mobilidade migratória e turística, a urbanização crescente e caótica, com as consequentes enormes dificuldades de integração comunitária, a agressão da publicidade, a instabilidade política, económica e social, com todos os problemas que isso implica, concorrem para agudizar a laceração interior, especialmente sensível nos homens de cultura. Neste quadro, a carência duma fé consciente e robusta favorece a dissolução da religiosidade até a uma ruptura total com a prática religiosa» (Documento do Espiscopado Italiano, «A fé hoje», 1971).
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Não há lugar para fé anónima
Num mundo como o nosso, não há mais lugar para uma fé anónima, formalística, hereditária. Talvez por isso mesmo é que ela está em crise. É necessária uma fé baseada no aprofundamento da Palavra de Deus, na escolha e na procura das próprias convicções e conclusões pessoas; uma fé conscientemente abraçada e não passivamente recebida como herança.
Tudo isto comporta um novo modo de enfrentar o problema da iniciação cristã, sobretudo no âmbito dos povos tradicionalmente cristãos, um novo modo de considerar e planear aquilo que se pode designar por fases os momentos de evangelização e de sacramentalização. Nesse aspeto, um vasto campo de ação se abre à pastoral em geral e à pregação catequética em particular. O cristão deve percorrer não tanto um caminho feito de etapas e gestos sacramentais quanto um itinerário de crescimento e de aprofundamento da fé, um catecumenado renovado, sem o qual carecem de sentido os gestos sacramentais que têm lugar com uma certa regularidade.