Temas

de

fundo

 

1ª leitura (Sb 7,7-11):  Pedi e foi-me dada a prudência. Pedi e recebi o espírito de sabedoria, que eu preferi aos ceptros e aos tronos. Em comparação com ela, vi que as riquezas não eram nada. Nem mesmo as pedras preciosas se comparam a ela, pois o ouro todo, diante dela, é como um pouco de areia, e a prata comparada com ela, é como lodo. Amei-a mais do que a saúde e a beleza e antes a quis ter a ela que à própria luz, pois a sua claridade jamais tem ocaso. Com ela, vieram-me todos os bens e nas suas mãos está uma riqueza incalculável.

 

* A sabedoria vale mais que tudo.

   O Livro da Sabedoria, escrito em grego, já bem perto da chegada do Messias (entre 150 e 50 a.C., possivelmente até em data mais tardia) - dizem os entendidos - tem por leitores imediatos uma «colónia» de judeus que viviam sob forte influência helénica em Alexandria do Egipto. Perante uma cultura a todos os níveis atraente e «moderna», os judeus, práticos como sempre foram, facilmente eram tentados a abandonar a fé dos seus pais para seguir o caminho dos «ímpios». A esse propósito, há que acrescentar que isso está a acontecer constantemente. Nessas circunstâncias, o autor do livro procura contrapor aquilo que hoje podemos designar por «sabedoria humana» à «sabedoria divina». Bem vistas as coisas, a proposta que faz aos seus concidadãos resume-se, no fundo, ao pedido que o jovem Salomão fez a Deus, quando foi chamado a exercer o reinado, sucedendo ao seu pai David. Daí que alguém tivesse atribuído este livro ao próprio Salomão (o que, por razões históricas e também cronológicas evidentes, é impossível). Seja como for, esta proposta continua a ser válida nos dias que correm, na medida em que, em algumas circunstâncias da vida, todos somos confrontados com a necessidade de fazer uma opção clara: ou a sabedoria humana ou a sabedoria divina, com todas as suas consequências.

 

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2ª leitura (Hb 4,12-13):  A palavra de Deus é viva, eficaz e mais afiada do que uma espada de dois gumes. Penetra até à divisão da alma e do corpo, até às junturas e até à medula. Discerne os sentimentos e as intenções do coração humano. Para Deus, não há nenhuma criatura oculta, mas todas as coisas estão a nu e a descoberto aos olhos daquele a quem devemos prestar contas.

 

* A Palavra de Deus é viva e eficaz.

   Estes dois versículos da chamada Carta aos Hebreus não têm muito que explicar. De facto, atrevo-me a afirmar que se trata-se daquilo a que, de alguma forma, se poderia chamar uma sugestiva «teoria» sobre a eficácia da Palavra de Deus, recordando outras passagens conhecidas do AT (cf., por exemplo, Is 55,10-11; Jr 23,29-30; Sb 18,14-15). Este trecho de Carta aos Hebreus é claro quanto ao papel da Palavra de Deus na vida das pessoas, mas nunca é demais dizer que esta Palavra é oferecida definitivamente aos homens em Cristo Jesus. De resto, isso deixa-o bem claro a mesma carta aos Hebreus: «Neste dias que são os últimos, Deus falou-nos por meio do Filho» (1,2). A Palavra de Deus tem um impressionante poder de discernir a alma e o coração, ou seja, a pessoa humana. Mais, será decisiva no julgamento que com certeza se irá realizar. Mas, mesmo neste caso, não nos podemos esquecer, como lembra também a mesma Carta, que o Pai constituiu a Jesus Cristo Sacerdote e intermediário e será um juízo que se fará por meio do seu Filho, Jesus Cristo.

 

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Evangelho (Mc 10,17-30):  Ia Jesus pôr-se a caminho, quando alguém correu ao seu encontro e, ajoelhando-se, lhe perguntou: «Bom Mestre, o que devo fazer para ter a vida eterna»? Jesus disse: «... Tu sabes os mandamentos: Não mates, não cometas adultério, não roubes, não levantes falso testemunho, não roubes, honra o teu pai e a tua mãe». Então, ele respondeu: «Mestre, mas tenho cumprido tudo isso desde a minha juventude». Jesus, fitando nele o olhar com amor, disse: «Falta-te só uma coisa: vai, vende tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me». Mas, ao ouvir isto, ficou de semblante anuviado e retirou-se pesaroso, porque era muito rico. Então, olhando em redor, Jesus disse aos discípulos: «Como é difícil aos que têm riquezas entrar no Reino de Deus!». Os discípulos ficaram estupefactos com as suas palavras. Mas Jesus prosseguiu: «Filhos, como é difícil entrar no Reino de Deus! É mais fácil um camelo passar pelo fundo duma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus»... «Quem deixar casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos ou campos por minha causa e do Evangelho, receberá cem vezes mais, já agora, no tempo presente juntamente com perseguições, e no tempo futuro, a vida eterna»...

 

* É difícil entrar no Reino dos céus.

   Como me parece claro, o tema principal deste trecho evangélico tem a ver com a pobreza voluntária pelo Reino. Por isso, não tem grande interesse saber se quem corre ao encontro de Jesus é mais ou menos jovem. Também parece evidente que se tratava de um homem bom e, por isso, não sei se será legítimo concluir que se terá condenado só porque não teve a coragem de fazer uma opção radical na linha da proposta feita por Jesus. Em todo o caso, uma coisa podemos afirmar: não basta cumprir os mandamentos na sua materialidade. Deus exige sempre uma doação total, ou seja, o discípulo está sempre perante uma escolha fundamental: ou Deus ou as riquezas. Quando, por causa dos bens, estamos dispostos a sacrificar Deus (e é isso que acontece), estamos sem dúvida no precipício que conduz à perdição. Temos sempre medo de perder, quando se trata de oferecer a Deus o que temos e o que somos. Mas a reflexão que a todos é pedida é simples: de quem nos vem o que temos? Somos de verdade auto-suficientes, sem necessidade de referência a ninguém? Apostar a nossa vida em Deus será perdê-la ou, ao contrário, será ganhá-la? Não será que teremos de levar mais a sério o ditado que o povo inventou com tanta razão: Deus nunca se deixa vencer em generosidade?

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 

*     Comparada à  sabedoria,

       a riqueza

       não é nada.

 

 *     A palavra

        de Deus

       discerne

       os sentimentos

       e os pensamentos 

       do coração.

 

 *    Vende o que tens.

       Depois,

       vem

       e segue-me.

 

NO 

FUTURO,

TERÁS

A VIDA

ETERNA.

 

 

  • Ou Deus ou as riquezas

    O tema da total disponibilidade às exigências e ao apelo de Deus é sublinhado de maneira esplêndida e inequívoca pelo episódio do jovem rico ou menos jovem (e não é esse o ponto principal) que procura Jesus para saber o que tem que fazer para se salvar. À proposta (de resto, comum e normal para toda a gente) que Jesus faz de cumprir os mandamentos, o jovem responde, com verdade, que, nesse aspeto, a sua vida está em ordem. 

 

    Não que ele não tenha defeitos e limitações. Claro que tem; como toda a gente. Em todo o caso, no seu íntimo, está convencido de ter feito o seu melhor e, por isso, sente-se em paz. Nesse aspeto, não tenho dúvidas para acreditar que ele tem razão para estar tranquilo. E o facto de Jesus ter olhado para ele com simpatia quer dizer precisamente que não havia nada de especial a apontar ao seu comportamento. Está, pois, em condições de dar mais um passo em frente. E é aí que a coisa se complica, como é explicado pelo texto evangélico.

 

   Ora bem, uma conclusão que se pode tirar de imediato é simples: não basta observar os mandamentos na sua materialidade. Claro que isso é o mínimo, mas exige-se a interioridade, uma doação total. Ora bem, quando Jesus lhe sugere esta doação total, o jovem retrai-se. A sua reação põe em evidência como as riquezas são um obstáculo ao interesse pelo Reino de Deus. As riquezas em si são, naturalmente, um bem (por isso mesmo se lhes dá também o nome de «bens»), mas são também uma ratoeira, porque, de meios que devem ser, os bens/riquezas se podem transformar em fins.

 

   A exigência «prospetada» por Jesus mete algum medo a quem quer ser seu discípulo, pois o discípulo é continuamente colocado, sem sombra de qualquer dúvida, perante um dilema ou, melhor dizendo, uma alternativa muito clara e difícil de pôr em prática: ou Deus ou as riquezas.

 

  • Riqueza e disponibilidade

    As concepções do AT e do NT sobre a riqueza e a pobreza são, às vezes, tão díspares que até dá a impressão que se dá uma certa contradição. Com efeito, mesmo nos textos de data mais recente, o AT dá a impressão de se comprazer em louvar a riqueza de algumas figuras importantes da história de Israel; dum modo particular a de Job e a de alguns reis, como, por exemplo, David, Salomão e Ezequias. Por outro lado, atribui, por assim dizer, as dificuldades por que passam os indivíduos e sobretudo o povo ao facto de terem sido rejeitados por Deus. 

 

   Por outras palavras, os autores bíblicos como que pretendem «monstrar» que Deus enriquece os que ama: Abraão, Isaac, Jacob. Acresce que a riqueza, sendo imagem da abundância messiânica, para esses autores, parece ser sinal de bênção e aceitação por parte de Deus. Note-se que até a «posição» que assumem perante a riqueza tanto Isaías como Jeremias (cf. Is 3,10-11; Jr 17,5-8, por exemplo), segue os mesmos padrões de referência. O profeta Isaías, numa linguagem poética cheia de imagens, chega mesmo a descrever a máxima bênção de Deus com as características dum banquete em que não falta nada do que eram os bens por que os hebreus mais ansiavam.  

 

    Seja como for, a atitude de Jesus (bem como da primeira comunidade cristã) em relação à riqueza é diferente. O radical «Ai de vós, ricos!» (cf. Lc 6,24) tem a aparência duma condenação sem apelo nem agravo. Mas a diversidade entre o juízo do AT e o do Evangelho reside mais no seguinte: enquanto a riqueza, no NT (entendida no sentido de apego desenfreado aos bens, de maneira a afastar do próprio Deus) é a causa da maldição, no AT, é mais um efeito da atitude de abandonar a Deus, que é o maior bem e autor de todos os bens.

 

   Se compararmos , quer as «Bem-aventuranças» de Mateus (5,1-11), quer as «Maldições» do «Discurso da Planície» (discurso que S. Mateus coloca no âmbito do Sermão da Montanha: cf. 6, 17ss) com as Bem-aventuranças e as maldições prometidas no Deuteronómio (cf. capítulo 28), então é evidente o que acabo de dizer. Mais, enquanto o AT se refere a uma situação que será realidade no futuro (daí que os técnicos da exegese lhe chamem situação escatológica), o objetivo do Evangelho é sublinhar sobretudo a «condição presente», embora inserida já na situação do Reino definitivo (não acabado mas já começado).

 

  • A pobreza: imagem de disponibilidade

    Continuando, em qualquer caso, a utilizar o conceito de «bens» como conteúdo da Bem-aventurança, então a mensagem neotestamentária, mais do que prometer bens, promete o Bem, que é o próprio Deus. Ou seja, quem tem Deus não precisa de pôr o problema da vida em termos de bens materiais. Antes pelo contrário, requer-se disponibilidade interior total e independência em relação a esses bens.

 

   Por outras palavras, para seguir a Jesus, se for preciso, não se deve duvidar: não se pode servir a dois patrões ou, como diz o Evangelho, não se pode servir ao mesmo tempo a Deus e ao dinheiro (cf. Mt 6,24). E, sabe-se, o dinheiro é um patrão muito exigente. Sufoca no avarento a palavra do Evangelho e faz esquecer o essencial, a soberania divina. O dinheiro bloqueia os corações. Ora, as palavras de Jesus são uma lei que não admite exceções: «Quem não renuncia a todos os seus bens não pode ser meu discípulo» (Lc 14,33). Só os pobres são capazes de acolher a Boa Nova (cf. Is 61,1). E foi fazendo-se pobre que o Senhor pôde enriquecer-nos com as suas imperscrutáveis riquezas (cf. 2Cor 8,9; Ef 3,8).

 

  • Disponibilidade e desapego

   Como é óbvio por definição, a riqueza em si mesma, enquanto bem, não é má. Por isso mesmo, como disse acima, se chama bem. Torna-se má quando se transforma em fim, fazendo do homem um escravo. Como se compreende, a riqueza pode ser símbolo de muita iniquidade e injustiça, mas também pode ser símbolo do trabalho, além de ela poder ser utilizada como meio para realizar as esperanças legítimas da humanidade. Ligada ao progresso pessoal e coletivo, a riqueza é herança do passado e garantia do futuro. De resto, todos sabem que o dinheiro é também um meio para fazer o bem. Nesse sentido, é algo querido por Deus para incrementar as condições que levam a uma maior liberdade humana. 

 

   Na realidade, o desprendimento que é proposto ao jovem rico, no fundo, não é propriamente a de «não ter nada»; ou, por outra, não é isso em primeiro lugar. O que lhe é pedido, como prioridade de vida, é que se comprometa com os pobres, especialmente com aqueles que, por motivos vários, não têm capacidade de deixar essa sua condição de pobres e explorados.

 

   Nesta, como noutras matérias, necessário se torna ir ao essencial. Não é a realidade «pobreza» em si que tem valor, mas a disponibilidade para os outros. Se fosse assim, ou seja, se bastasse não ter nada (ser pobre mesmo) seria mais fácil alcançar o Reino de Deus. Sim, bastaria ser pobre materialmente falando e, pronto, estava o assunto resolvido. Então, sendo miserável, ainda seria mais fácil. Ou, mesmo que não fosse fácil, seria mais fácil do que o compromisso com o serviço dos outros. 

 

   Ora bem, comprometer-se de maneira cristã é partilhar as próprias riquezas, como fez Francisco de Assis (e as riquezas são também as riquezas morais e espirituais), é fazer todo o possível para melhorar as condições sociais; é, numa palavra, ser solidário com os outros naquilo que são as suas aspirações legítimas.

 

  • A palavra da Igreja de hoje

    Para remate destas reflexões, atentemos ao que a propósito nos diz um dos documentos mais atuais e interessantes do II Concílio do Vaticano, Lumen Gentium (Luz das Nações): «Os cristãos, que tomam parte ativa no desenvolvimento económico e social contemporâneo, lutam pela justiça e praticam a caridade, devem estar convencidos de que podem contribuir sobremaneira para o progresso do género humano e para a paz no mundo. Em tais atividades, quer atuem individualmente quer o façam em conjunto, sejam exemplares. Por isso é de grande importância que, tendo adquirido a competência e a experiência necessárias, enquanto desempenham as suas atividades terrenas, se mantenham fiéis aos princípios cristãos, permanecendo fiéis a Cristo e ao seu evangelho, de maneira que toda a sua vida, individual e social, seja compenetrada pelo espírito das Bem-aventuranças e especialmente pelo espírito da pobreza» (GS 72).