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de

fundo

1ª leitura (Dt 18,15-20):  O Senhor, teu Deus, suscitará no meio de ti, entre os teus irmãos, um profeta como eu. A ele deverás escutar. Terás assim o que pediste ao Senhor, teu Deus, no monte Horeb, no dia da Assembleia, quando lhe disseste: «Não queremos mais ouvir a voz do Senhor, nosso Deus, nem tornar a ver mais este fogo enorme, para não morrer». O Senhor disse então: «Está certo o que eles pedem. Enviar-lhes-ei um profeta como tu, de entre os seus irmãos. Porei as minhas palavras na sua boca e ele lhes dirá tudo o que Eu lhe mandar. Àquele que não der ouvidos às palavras que ele disser em meu nome, Eu próprio pedirei contas! Mas o profeta que tiver a presunção de anunciar, em meu nome, algo que Eu não lhe mandei dizer ou de falar em nome de deuses estrangeiros, esse profeta morrerá».


* Vou suscitar um profeta e pôr-lhe na boca as minhas palavras. O livro do Deuteronómio, no seu objectivo de recapitular e complementar a Lei, fala de variados assuntos. No texto de hoje, depois da realeza e do sacerdócio (no texto anterior), fala-se do profetismo, cuja instituição se situa no contexto da teofania (manifestação) do Sinai. Trata-se duma exigência, digamos assim, avançada pelo povo que não quer ouvir directamente a voz de Deus. Assim, o profeta passa a ser o «porta-voz» de Deus e é por isso mesmo que lhe é devida obediência. Como consequência, a recusa das palavras e das ordens do profeta corresponde então, de alguma forma, à recusa de ouvir o próprio Deus. Mas há também uma contrapartida muito exigente para o profeta: tem que pronunciar apenas aquilo que lhe é sugerido por Deus e, por isso mesmo, está proibido de se fiar em deuses estrangeiros. Também os profetas de hoje se devem «comportar» exactamente da mesma forma...

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2ª leitura (1Cor 7,32-35):  Eu gostaria que estivésseis livres de preocupações. Quem não está casado, cuida das coisas do Senhor e de como Lhe agradar. Mas quem está casado cuida das coisas do mundo e de como há-de agradar à mulher; e por isso fica dividido. Assim também a mulher não casada, ou a virgem, cuida das coisas do Senhor, para se dedicar a Ele de corpo e alma. Mas a mulher casada cuida das coisas do mundo e de como há-de agradar ao marido. Digo-vos isto para vosso bem. Não vos quero impor restrições, mas tenho em vista o que é mais nobre e favoreça uma dedicação ao Senhor sem reservas.
 

* A virgem preocupa-se com as coisas do Senhor. Neste texto da I Carta aos Coríntios, o apóstolo Paulo continua a elencar os motivos por que crê que o estado de virgindade é mais conveniente que o matrimónio. Mas, no contexto da liturgia de hoje, parece-me que não é totalmente descabido concluir que a sua preocupação principal se prende sobretudo com o seguinte: o que mais importa é «dedicar-se sem reservas ao Senhor». De resto, é por ser mais fácil entregar-se sem reservas ao Senhor adoptando a virgindade que se dá um «valor» superior. Em todo o caso,, como me parece óbvio, é um pressuposto que só tem validade quando dessa opção e consagração nesse estado resulta efectivamente uma maior dedicação ao Senhor. Por outro lado, no ambiente e no contexto em que Paulo (e não só) escreve, era importante realçar que Deus era o objectivo último do interesse e dos anseios do cristão.


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Evangelho (Mc 1,21-28):  Jesus com os seus discípulos entrou em Cafarnaum. No sábado seguinte, foi à sinagoga e começou a ensinar. Todos os ouvintes se admiravam com o seu ensinamento, pois Ele não era como os escribas. (De facto) Ele ensinava como quem tem autoridade. Ora, na sinagoga, estava um homem com um espírito maligno, que começou a gritar: «Que tens a ver connosco, Jesus de Nazaré? Vieste para nos arruinar? Sei quem Tu és: o Santo de Deus». Jesus repreendeu o espírito: «Cala-te e sai desse homem». Então, o espírito maligno sacudiu o homem com força e saiu dele dando um grande grito. Ficaram todos tão assombrados que perguntavam uns aos outros: «Que é isto? Um novo ensinamento feito com tal autoridade que até manda aos espíritos malignos e estes lhe obedecem!». E bem depressa a sua fama se espalhou por toda a parte em toda a região da Galileia. 


* Jesus ensinava como quem tinha autoridade. TU ÉS O SANTO DE DEUS. A cena desenrola-se na sinagoga de Cafarnaum, cidade onde parece que Jesus residia habitualmente. O texto distingue dois momentos importantes: o impacto do ensinamento de Jesus sobre os ouvintes; e a cura dum possesso. Reportando-nos à primeira leitura, há aqui uma distinção essencial entre, por um lado, a palavra de Jesus e, por outro, a palavra do profeta. Enquanto o profeta fala «em nome de Deus», Jesus fala pela sua própria autoridade. Está, pois, implícita nas palavras do Evangelista, a intenção de deixar entender que estamos perante Alguém que é mais do que um simples profeta. O milagre da cura do possesso é apenas o sinal de que algo de novo se está a passar. É muito provável que não fosse a primeira vez que o possesso entrava na sinagoga; no entanto, nada costumava acontecer. Mas, quando Jesus aparece, as coisas não podem continuar na mesma; algo tem que mudar. À semelhança do que acontece com Jesus, que é a própria Palavra de Deus, também algo de novo deveria acontecer quando os profetas falam em nome de Deus. Se nada acontece, talvez seja porque, em vez de falar em nome de Deus, estão a falar em seu nome pessoal.


PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 *   Vou suscitar um profeta e pôr-lhe na boca as minhas palavras.

 *   A virgem preocupa-se com as coisas do Senhor.

 *   Jesus ensinava como quem tinha autoridade.

TU ÉS

O SANTO

DE DEUS.

O PROFETA,

UM HOMEM

INCÓMODO

* O tempo dos profetas não acabou
    Tanto a primeira leitura como o trecho evangélico nos proporcionam uma óptima oportunidade para fazer algumas reflexões sobre o profetismo, ou melhor (restringindo mais o tema), sobre a missão profética. No fundo e em resumo, a história da salvação é a história de Deus (passe a expressão) que fala com o seu povo e o ajuda a prosseguir na caminhada em direcção ao Reino. Pois bem, em toda esta história, os profetas são personagens privilegiados, sobretudo nos tempos de maior necessidade. Por outras palavras, são eles os principais intermediários no processo de revelação dos planos que Deus quis realizar para nos introduzir pouco a pouco na sua intimidade.

    O profeta, mais do que qualquer outra coisa, é o homem que, tendo entrado, pelo menos parcialmente, no segredo dos planos de Deus, acaba por ver toda a realidade doutra forma, ou seja, se assim se pode dizer, com os olhos de Deus. Ao profeta tudo fala de Deus, para ele tudo é «sinal». Sendo assim, um homem é profeta não porque seja mais inteligente ou deixe de o ser, não porque seja audacioso ou timorato, mas porque o próprio Deus o escolhe e lhe dá a força para desvendar os seus «segredos». Para chegar a esta conclusão, bastaria comparar a maneira de ser daqueles que são considerados os profetas do AT. O profeta, ontem como hoje, é aquele que, à sua maneira, faz ver aos outros os «sinais» de Deus.


* Há profetas no meio de vós
   
Como acabou de ser dito e, antes de mais (ao contrário do que muitos possam pensar), o profeta não é necessariamente aquele que prediz ou revela um acontecimento do futuro. A quem adivinha o futuro chama-se precisamente adivinho. O profeta é, antes de mais, um intermediário com o Absoluto, o porta-voz fiel da palavra de Deus para que esta seja actuada sobretudo no presente.

    De alguma forma, pode-se dizer que o profeta era, em relação à Palavra, o que o sacerdote da Antiga Aliança era em relação ao culto. Hoje, não há separação tão nítida entre a proclamação da Palavra e a organização do culto, mas antigamente essa distinção era muito clara. Portanto, tanto antes como agora, o profetismo, ou melhor, a missão profética, é a que estabelece, por assim dizer, a relação entre a Palavra de Deus e a necessidade de o homem encontrar a verdade e, em última análise, a vontade de Deus nos acontecimentos do dia a dia.


   Com muita frequência, o profeta do AT denuncia as faltas e as atrocidades cometidas contra o espírito da Lei. O que lhe está mais a peito é que essa Lei não seja tornada estéril pela letra sem vida dum ritualismo puramente exterior, que esconde a hipocrisia e, pior ainda, a injustiça. É por isso que, por vezes, o contacto dos profetas com as pessoas, mais que um encontro, é como que um desencontro ou até um confronto. Jeremias, no seu estilo peculiar de falar, dirá que o profeta é constituído por Deus «para arrancar e demolir, para destruir e abater, para edificar e plantar» (Jr 1,10).

   Ora bem, os profetas de hoje não podem ter melhor sorte. A Palavra de Deus é sempre algo que incomoda, que desinstala, que recrimina, que obriga a rever posições e a tomar atitudes, é algo que propõe escalas de valores, que não são as escalas de valores habituais.


* A Palavra de Deus camuflada
   
Para o judeu pio, a «Lei» era o lugar privilegiado do encontro com Deus e com a sua vontade. E não há dúvida que ela podia constituir um poderoso auxílio para chegar a esse objectivo. Todavia, continha perigos, porque havia o risco duma observância simplesmente literal, jurídica, sem alma nem coração. Infelizmente, é o que pode acontecer - e acontece ainda - nos dias que correm. Sem alma e coração, não há encontro possível, muito menos com Deus. Quando o «sábado» acaba por ser mais importante que o homem, incorre-se na recriminação de Jesus que deixou bem claro que «o sábado é para o homem e não o homem para o sábado» (cf. Mc 2,27).

   Não é que a Lei em si seja inútil e prejudicial. A sua aplicação abusiva é que a torna inútil e, ao mesmo tempo, prejudicial, porque a Lei não é um fim, mas sim um meio. O encontro dos profetas com a gente, no AT, por exemplo, dá-se no terreno da Lei, cuja finalidade é, antes de mais, ajudar as pessoas a relacionar-se com Deus através de vários actos e ritos significativos. Mas os ritos e os sacrifícios são inúteis se não houver realmente encontro com Deus.

   Seja como for, o profeta não é aquele que está contra a Lei. O profetismo e a Lei não são duas opções e realidades necessariamente antagónicas. São distintas, mas complementares, enquanto se trata de proclamar a Palavra e a vontade de Deus na sua pureza original e também se trata de a pôr em prática. Mas, atenção! Há também falsos profetas; ou seja, pessoas que estão iludidas de que são portadoras da Palavra de Deus, quando, na verdade, não se trata senão de palavras humanas. Cristo di-lo bem claramente quando afirma em relação aos fariseus e doutores da Lei: «Vós tendes uma maneira interessante de rejeitar a Lei de Deus para fazer valer os vossos próprios ensinamentos. Assim, com os vossos ensinamentos, cancelais a Palavra de Deus» (cf. Mc 7,9.13).

* Inauguração do profetismo novo
   
Jesus é apresentado no Evangelho não só como Aquele que fecha o ciclo do profetismo vetero- testamentário, mas sobretudo como Aquele que inaugura os novos tempos. Ele leva a definitivo cumprimento as promessas do AT. É Ele que se realiza e sintetiza em Si os projectos de Deus sobre a humanidade. Ele é o profeta por excelência, porque, no dizer de João evangelista (início do prólogo do seu livro), Ele é o Verbo eterno de Deus, ou seja, a própria Palavra de Deus em pessoa.

    Mas Jesus não se limita, como os antigos profetas ou então como os escribas e fariseus, a repetir e a recordar a Palavra de Deus. Diz o trecho evangélico deste domingo que «Ele ensinava como quem tinha autoridade», acompanhando as suas palavras com o poder dos milagres. Todavia, o profetismo novo, digamos assim, não termina com Ele. É que todos os que acreditam nele devem fazer o mesmo. Mais, segundo o evangelista Mateus, não se devem preocupar com o que hão-de dizer, porque, quando necessário, lhes será indicado o que devem dizer (cf. Mt 10,19).


* Polivalência da denúncia evangélica
    Uma das funções do profeta (não a única e a mais importante) é a da crítica, quando a conduta das pessoas a quem fala está em contradição com a Palavra e os planos de Deus. Sendo assim, naturalmente, essa crítica não vale só para o mundo materialista e ateu, porque também o crente entra, com frequência, «em colisão» com a Palavra.

    E também a Igreja no seu todo, como realidade humana, está sujeita a cair na tentação de se comprazer com o sabor das conquistas. Também a Igreja está sujeita a desculpabilizar-se com a justificação de que se perderam equilíbrios que eram assegurados pela sua doutrina. Resta saber de que tipo de equilíbrios se tratava. É que nem todos os equilíbrios são evangélicos. Por isso também é, por vezes, culpada de certos furores proféticos, por se limitar a certos objectivos que acabam por ser apenas o «bota-a baixo», o demonizar o mundo e o que ele representa, sem sequer se preocupar com santificá-lo.

    A tentação de conferir a instituições e expressões religiosas, por mais venerandas que sejam, o carácter de definitividade é também uma triste constatação do caminhar histórico da Igreja. É fácil, e sobretudo cómodo, considerar como definitivamente adquirido aquilo que não é senão uma etapa da história. A Igreja, na sua história normal, não se pode nem se deve assumir como uma situação definitiva; ela deve estar sempre em tensão para o Pai. Por isso, também a comunidade cristã tem necessidade de certas denúncias críticas e proféticas. Estas são dolorosas e como regra pessimamente aceites, mas exercem uma função de purificação importante.

    Não se pode esquecer que a denúncia profética é ditada pelo Espírito. Dentro e também fora dos confins sociológicos da Igreja. Também esta, como sociedade humana, está sujeita à tentação da absolutização, da ideologização ou do poder opressivo. Seria só uma instituição divina se não estivesse sujeita a essa tentação, mas ela é simultaneamente divina e humana. Os profetas têm, pois, que continuar a existir na Igreja. Obviamente, como com os profetas do AT, é «sina» deles serem mal acolhidos, dentro e fora. Quando não é
assim, pode ser sinal de que são falsos profetas.