( 2009: FESTA DA CONVERSÃO DE S. PAULO )

LEITURAS PROPOSTAS PARA ESTA FESTA:

1ª leitura (Act 22,3-16): a segunda versão dos Actos sobre a conversão de S. Paulo;

2ª leitura (1Cor 7,29-31): exactamente a mesma segunda leitura do III Domingo;

Evangelho (Mc 16,15-18): o mandato de Jesus aos discípulos antes da ascensão.

Nota: pessoalmente, sou de parecer que as próprias leituras do III Domingo Comum    (Ano B) se coadunam perfeitamente com a festa da conversão de S. Paulo, embora elas não falem directamente da conversão de S. Paulo.

Temas

de

fundo

1ª leitura (Jn 3,1-5.10):  O Senhor dirigiu a palavra, mais uma vez, a Jonas nestes termos: «Levanta-te e vai a Nínive, a grande cidade, e anuncia aí o que Eu te ordenar». Jonas obedeceu e foi a Nínive, segundo a ordem do Senhor. Nínive era uma cidade tão grande que eram precisos três dias para a percorrer. Jonas entrou na cidade e andou um dia inteiro a apregoar: «Dentro de quarenta dias, Nínive será destruída». Os habitantes de Nínive acreditaram em Deus. Decidiram então jejuar e vestir-se de saco, do maior ao menor... Deus viu as suas boas obras, ou seja, como se tinham convertido da sua má conduta, e então, arrependendo-se em relação ao mal que tinha resolvido fazer-lhes, não os puniu como tinha dito.

* Os ninivitas converteram-se da sua conduta de maldade. O contexto histórico para situar, por assim dizer, a «acção» deste livro, é o período logo a seguir ao exílio da Babilónia. O livro de Jonas está então relacionado sobretudo com os livros de Esdras e Neemias. O povo de Israel anda à procura de, a muito custo, reconstruir o país e a capital, particularmente o Templo, sob a influência espiritual de Esdras e a chefia «política» de Neemias. Essa experiência, porém, não é muito gratificante, não conseguindo obter a colaboração das pessoas. Talvez por isso mesmo, estes «retornados» tendem a desconfiar dos povos vizinhos. Por outro lado, acentua-se a tendência para se fecharem num nacionalismo exagerado, talvez consequência da experiência que tinham vivido com o povo invasor (a Babilónia). Mas essa perspectiva e essa mentalidade não estão correctas; essa nota de exclusivismo não pode prevalecer na mentalidade do povo. E então surge um livro - mais precisamente o Livro de Jonas - para proclamar a universalidade da salvação. A única condição para pertencer ao «povo de Deus» é acreditar e abandonar a má conduta. E isso podem-no pôr em prática também os que não fazem parte oficial desse povo, os pagãos ou gentios. No fundo, é precisamente esta a «tese» deste livro delicioso que se lê como um romance - uma «ficção didáctica» - e mantém toda a sua actualidade, na medida em que nos põe a todos de sobreaviso contra a tendência que temos de condenar aqueles que não pertencem ao nosso grupo.

   PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

2ª leitura (1Cor 7,29-31):  O que tenho a dizer-vos, irmãos, é o seguinte: o tempo é breve. De agora em diante, os que estão casados, vivam como se não estivessem; os que choram, como se não chorassem; os que se alegram, como se não se alegrassem; os que compram, como se não possuíssem; os que usam deste mundo, como se não o usufruíssem plenamente. Porque este mundo de aparências passa.

 

* Este mundo passa. No capítulo 7 da I Carta aos Coríntios, o apóstolo S. Paulo responde a algumas perguntas concretas que lhe tinham sido apresentadas por escrito. Uma dessas questões terá a ver com a dúvida se, depois de se converter, o cristão que fosse casado podia continuar a ter ou não a mesma vida de antes, ou se, pelo contrário,  não devia renunciar ao uso do matrimónio. A resposta de Paulo não se pretenda que seja uma ordem ou um princípio «universal»; ela enquadra-se num texto que não pretende ser senão um «conselho». Seja como for, a leitura de hoje não se refere apenas a este aspecto e a este problema, mas refere-se sobretudo à introdução de um princípio geral: a necessidade e urgência de mudar de mentalidade. Por outras palavras, uma vez que agora o ponto de referência é Deus e Cristo, então tudo deve ser tido como relativo. Mais em concreto, o que deve caracterizar o comportamento do cristão é a sua tensão para o mais além. Ou seja, ao contrário do que sugere a mentalidade mundana, a vida deste mundo não é tudo, a vida não é apenas esta vida, «porque este mundo de aparências passa».

   PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

Evangelho (Mc 1,14-20):  Depois de João ter sido preso, Jesus foi para a zona da Galileia a proclamar o Evangelho de Deus, dizendo: «Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e acreditai no Evangelho». Ora, ao passar ao longo do mar da Galileia, viu Simão e André, seu irmão, que lançavam as redes ao mar, já que eles eram pescadores. Disse-lhes Jesus: «Vinde comigo e farei de vós pescadores de homens». Eles deixaram logo as redes e seguiram-no. Um pouco mais adiante, viu Tiago e seu irmão João, filhos de Zebedeu. Estavam no barco a consertar as redes e logo os chamou também. E eles deixaram no barco o seu pai Zebedeu com os assalariados e foram com Ele.

* Convertei-vos e acreditai no Evangelho. ELES DEIXARAM AS REDES E SEGUIRAM-NO. Não é difícil descobrir que este texto evangélico é composto por duas partes: uma resume a pregação inaugural de Jesus na Galileia; a outra refere-se à reacção concreta de alguns dos ouvintes a essa pregação; e mais precisamente, a conversão ou mudança que se opera no íntimo deles e que os leva a seguir o Mestre. Jesus faz o convite a mudar de vida e a acreditar no Evangelho. É certo que a palavra «Evangelho», com o tempo, passou a ter um significado técnico, digamos assim, mas não creio estar afastado da realidade se disser que, no fundo, o convite que é feito é mesmo acreditar na pessoa de Jesus. Essa é que é a Boa Nova, o Evangelho. Isso foi evidente para os primeiros discípulos; como o foi a seguir, como, por exemplo, para Paulo. E também o deverá ser para nós. Com efeito, não haverá qualquer espécie de autêntica conversão, se não se tomar consciência de que, perante Cristo como Messias e Filho de Deus, há que tomar a atitude de O pôr acima de tudo. E é isso que faz toda a diferença.

   PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 *       Os ninivitas converteram-se da sua conduta

      de maldade.

 *   Este mundo passa.

 *   Convertei-vos

      e acreditai no Evangelho.

ELES,

DEIXANDO

AS REDES,

SEGUIRAM-

-NO.

  • O que é o tempo bíblico?

    Embora possa parecer que não, tenho a impressão que toda a liturgia da palavra deste domingo se poderá considerar como centrada no tema do tempo. Evidentemente, não se trata do tempo cronológico ou meteorológico, porque este é objecto de conversas superficiais, quase sempre sem consequências de maior. Trata-se, isso sim, de tempo em sentido teológico, na medida em que é no tempo que percebemos a actuação de Deus.

    É interessante notar que, ao abrirmos a Bíblia, logo no primeiro dos 73 pequenos livros que a compõem, a revelação de Deus se inicia, por assim dizer, com uma anotação de cariz temporal: «No princípio, criou Deus o céu e a terra» (cf. Gn 1,1). Mas não deixa de ser também interessante que a Bíblia se encerre com uma anotação semelhante: «Sim, Eu venho em breve! Ámen! Vem, Senhor Jesus!» (cf. Ap 22,20).

    Que essa «anotação temporal» no princípio e no fim da Bíblia tenha sido ou não uma opção consciente dos respectivos autores, isso não me parece o mais importante. De qualquer forma, essa «coincidência» pode indicar que Deus, nas suas manifestações ao homem (revelação) é, em certa medida, «temporal», ou melhor dizendo, é percebido de modo temporal e concreto, porque essa é a forma de o homem perceber seja o que for.

    O Deus da Bíblia é diferente dos deuses criados pelos pensadores e filósofos gregos. Esses deuses, não estando «inseridos» na história dos homens, são indiferentes aos destinos dos mesmos. O Deus da Bíblia, em vez disso, é um Deus que é percebido como Alguém que acompanha sempre o homem. Nesse sentido, a história do mundo é, de alguma maneira, simultaneamente uma história divina...

  • O Deus de sempre no hoje do homem

    Segundo a mentalidade dos escritores das páginas da Bíblia, tudo depende de Deus; incluindo o tempo meteorológico e cósmico - devo acrescentar. Em última análise, é também essa a posição da teologia, na medida em que nada do que existe pode subsistir sem Ele; nem sequer o tempo. No entanto, o que me interessa frisar aqui é o tempo histórico entendido como encadeamento dos acontecimentos relacionados com o homem. Segundo a visão bíblica e cristã, a história constrói-se através do tempo, por entre inúmeros obstáculos, dificuldades e trabalhos, por etapas sucessivas em direcção a Cristo, o Alfa e o Ómega de todo o processo histórico.

    Jesus está perfeitamente consciente desta última etapa quando, no início da sua vida pública, declara oficialmente: «Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo!» (Mc 1,15). Ele introduz na história o elemento definitivo e discriminatório que nos permite dizer, sem qualquer tipo de contestação: antes... depois. É talvez S. Paulo um dos primeiros a lançar mão desta categoria: «Antes estáveis sem Cristo...éreis alheios à aliança da promessa, sem esperança e sem Deus no mundo» (Ef 2,12). «Agora, Ele reconciliou-vos pela morte do seu Filho, no seu corpo humano» (Cl 1,22).
 

  • O hoje do homem no amanhã de Deus

    Diz a Bíblia que, para Deus, mil anos são como um ano e um ano são como mil anos (cf., por exemplo, 2Pe 3,8; Sl 90,4). Esta é uma maneira popular e simples de dizer que Ele não está sujeito ao tempo, ou seja que Ele é eterno. Quando, por isso, se fala de tempo oportuno, dos «últimos tempos», é evidente que essa é uma expressão humana para dizer algo. Ou seja, esses tempos são aqueles em que nós temos a oportunidade de «agarrar» a intemporalidade a que somos destinados.

    Só recorrendo a esse tipo de linguagem é que podemos entender que, com a chegada de Cristo, se inauguraram tempos novos. Isso, porém, não quer dizer que os «tempos novos» ou os «últimos tempos» estejam circunscritos ao período da vida terrena de Jesus, por exemplo. Os «últimos tempos» tiveram início com a sua vinda, é verdade, mas só terminam quando a obra que Ele veio iniciar tiver terminado.

    Para Deus, mil ou dez mil (ou seja quantos anos forem) são como um ano ou um dia, ou até são como nada. Quem não está sujeito nem ao passado nem ao presente nem ao futuro, ou seja, ao tempo, não conta anos nem dias. Em todo o caso, para nos entendermos, diremos que os «últimos tempos» foram inaugurados, e estão a ser vividos, a partir da ressurreição de Jesus, sendo também eles «tempos da Igreja», mas, embora sendo últimos, não são ainda tempos terminados. Os tempos actuais da Igreja estão, portanto, como que enxertados no futuro de Deus, se assim se pode dizer. Por conseguinte, são tempos que os homens têm que continuar a construir, mas agora juntamente com Alguém que está com os homens até ao «fim dos tempos».

  • Conversão não é paragem no tempo

    «Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e acreditai no Evangelho» (leitura evangélica). Não basta que estes tempos sejam os últimos e que o Reino de Deus já tenha sido inaugurado. É preciso que nós estejamos inseridos nesses tempos. Nesse sentido, só haverá realmente mudança de era, mudança dos tempos para nós, se acreditarmos no Evangelho. A passagem do «mundo presente» para o «mundo futuro», do «tempo antigo» para o «tempo novo» da manifestação definitiva, passa pela aceitação, no concreto da nossa vida, do Reino inaugurado por Jesus. Estacionar no tempo antigo é ficar excluído do reino novo, cuja «consumação definitiva» se realizará só no tempo futuro.

    A importância do «tempo da Igreja» deriva não do facto de este ser o definitivo, mas do facto de ela tornar possível esta passagem do antigo para o novo. Há que assumir que Deus se serve dela para levar por diante o seu projecto. No fundo e em última análise, não é a pertença material à Igreja que garante a passagem deste tempo transitório para um tempo sem passagem. Sem fé em Deus (cf. também 1ª leitura de hoje) e no seu Reino, não há possibilidade de chegar ao mesmo Reino.

  • O tempo de quem não tem tempo

    A vitória de Cristo sobre a morte e sobre o mal é a superação dos limites do tempo e do espaço. Sendo assim, já não é a morte física que marca os limites da existência. Apesar de, com a morte física, cessar uma etapa da existência, a Vida não é interrompida; ela continua, na medida em que a vitória de Cristo sobre a morte nos lança numa nova dimensão.

    Jesus opera uma espécie de delimitação do tempo e do espaço contra a concepção puramente física que deles têm as pessoas. Contra a ideia de que o comportamento humano não tem razão de ser fora da concepção de espaço e tempo, a fé avança para uma ideia do «tempo sem tempo». A vitória de Cristo sobre a morte cria uma outra perspectiva que relativiza o tempo.

    Antes disso, o tempo era o padrão e o patrão da vida humana. Infelizmente ainda o é, porque o espírito de Jesus Cristo não penetrou suficientemente na mentalidade das pessoas. Mas agora, o tempo, ou melhor dizendo, o tempo presente, não é senão parcela do tempo-sem-tempo e, por conseguinte, uma fase do tempo e da vida do homem, a fase em que ele pode - e deve - forjar a própria identidade de ser destinado ao não-tempo.

  • O tempo é um meio e não um fim

    O tempo é para o homem e não o homem para o tempo. Mas o tempo não é apenas um dom; é também uma conquista, na medida em que não deve ser nunca o tempo cronológico a marcar os encontros dos homens. O homem, com a visão do tempo que não tem fim, sabe perfeitamente que o tempo não é um deus, o tempo é uma criatura, não é um absoluto. O culto do tempo é talvez uma das idolatrias do nosso tempo. Se o tempo é dinheiro, exactamente como dizem muitos, então talvez se verifique um culto diabólico, porque não se pode servir a dois senhores: a Deus e ao dinheiro.

   Produzir e consumir sempre mais, sem intervalos, para ter mais e mais dinheiro, não contemplar qualquer tipo de paragem só para poder ganhar mais dinheiro, incapacidade de controlar a corrida dos acontecimentos por causa da ganância do dinheiro: tudo isso pode ser o sintoma duma nova submissão do homem ao dinheiro, ao qual se sacrifica o tempo todo. A crise económica e social do mundo de hoje não será o resultado desta incapacidade de compreender que a vida do homem tem que anelar por outra realidade não escrava do tempo e do espaço?

    Por outras palavras, o homem faz uma escolha entre qualquer coisa e Deus. E isso não é só uma ofensa a Deus; é, também uma ofensa ao homem, um ser que, na visão bíblica, se define como tal precisamente pela sua semelhança com Deus, que não está sujeito nem ao tempo nem ao espaço. E então, sendo assim, a sujeição às exigências do tempo é uma armadilha e uma marcha para trás.

  • O tempo que elimina o homem

    O cristianismo relativiza, é certo, o tempo, tratando-o como um meio e não como um fim. Mas, ao mesmo tempo, valoriza-o enquanto o relaciona com o tempo sem fim. E esta valorização através da relativização acaba, no fundo, por valorizar também o homem, enquanto ele não é propriamente um «ser-para-o-tempo», mas sim um «ser-para-o-tempo-sem-tempo».

    Por outras palavras, são valorizados todos os homens, mesmo os que já estão cansados de tanto caminhar e lutar, os que, por vários motivos, são postos de improviso à margem do progresso da sociedade como números inúteis. Valoriza, portanto, todos os anciãos, bem como os doentes crónicos e os deficientes. A sociedade que se ufana de ser tecnológica não tem tempo para eles, porque não servem já ao processo de produção. Como sinal de condescendência, pode mesmo «fazer-lhes a caridade» de os internar em qualquer hospital ou casa de cura, mas o importante é que não estejam a impedir o caminho. Mas, ao contrário, perante a proposta do tempo sem tempo, então a maneira de olhar para eles já tem que ser diferente.

    O tempo de Deus é diferente do tempo dos homens. Melhor ainda, o tempo dos homens não tem sentido nenhum sem a eternidade de Deus. E os homens são medidos por Deus não pela medida do tempo cronológico, mas pela medida do tempo escatológico (o tempo sem tempo). Para Deus, não é a eficiência produtiva que conta, porque não fez o homem para o tempo, mas, ao contrário, fez o tempo para o homem. O tempo, segundo a óptica de Deus, não existe para outra coisa; é para permitir ao homem ser o que deve ser, ou seja, ser cada vez mais aquela imagem e semelhança de Deus que se perdeu no paraíso terrestre.