Temas

de

fundo

1ª leitura (Job 7,1-4.6-7):  A vida do homem sobre a terra é toda ela uma luta. Os seus dias são como os de um assalariado. O escravo suspira pela sombra e o trabalhador espera pelo seu salário, mas eu só tive por quinhão meses de sofrimento e couberam-me em sorte noites cheias de dor. Se me deito, digo: «Quando chegará o dia?». Se me levanto: «Quando virá a tarde?». E encho-me de angústia até à noite. Os meus dias passam mais rápidos do que a lançadeira e desaparecem sem deixar esperança. Lembra-te que a minha vida é como um sopro e que os meus olhos nunca mais voltarão a ver a felicidade.

* Foram-me destinadas noites de dor. Aquele que é tido como um dos mais belos e interessantes livros da Bíblia (e talvez também da literatura mundial), o Livro de Job, tem como base a seguinte tese, passe o termo: o tema do sofrimento e das vicissitudes da vida, sobretudo daqueles que são inocentes. De forma poética e «teatral», o autor procura dar a sua resposta ao problema do sofrimento, depois de constatar que a experiência das pessoas é precisamente a da dor e do sofrimento e que ele, naturalmente, não compreende. Fazendo uso de expressões mais usuais nos dias que correm, poderíamos dizer que a Job, após um longo e tormentoso questionamento sobre os motivos daquilo que lhe acontece, não resta senão conceder que não entende e, por isso, confia numa força mais alta, pedindo-lhe que se recorde de si na devida altura. De resto, pensando bem, amaldiçoar a vida por causa do sofrimento também não é resposta nem solução ao mesmo. Mesmo admitindo que o sofrimento - e sobretudo o sofrimento do inocente - não tem explicação plausível, quem sabe se confiar em Alguém não será ainda a melhor solução?

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2ª leitura (1Cor 9,16-19.22.23):  Se anuncio o Evangelho, isso não é para mim motivo de glória; é, isso sim, uma obrigação que me foi imposta. Ai de mim se não evangelizar! Se fizesse isso por iniciativa própria, poderia esperar recompensa. Mas, não sendo de maneira espontânea, é um encargo que me está confiado. Qual é, pois, a minha recompensa? Ao pregar o Evangelho, faço-o gratuitamente, sem me fazer valer dos direitos que o seu anúncio me confere. De facto, embora sendo livre em relação a todos, fiz-me servo de todos, para ganhar o maior número possível. Fiz-me fraco com os fracos, para ganhar os fracos. Fiz-me tudo para todos, para salvar alguns por todos os meios possíveis.

* Fiz-me tudo para com todos para poder ganhar alguns. Escrevendo aos cristãos de Corinto, S. Paulo parece conceder que, em princípio, o ser apóstolo conferiria direito a diversos privilégios e recompensas. Mas, para ele, tinha mais sentido a liberdade de pregar o Evangelho gratuitamente, até porque o Evangelho não pode ser visto em termos de mérito humano. Aqui está mais um dos aspectos em que não há que seguir necessariamente a «lógica» do proveito e do mérito. Ora bem, à semelhança da leitura anterior, nem sempre a racionalidade é a resposta às questões. O homem, ao fim e ao cabo, não é apenas racionalidade; é também vontade, sensibilidade, interioridade; e também bondade e generosidade. É certo que não é intenção de Paulo «impor» esta forma de apostolado aos outros, mas deixa bem claro que, no que lhe diz respeito, essa é uma condição para que o apostolado seja mais fecundo e para que ele seja mais fiel à sua vocação.

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Evangelho (Mc 1,29-39):  Saindo da sinagoga, Jesus foi para casa de Simão e André, com Tiago e João. A sogra de Simão estava de cama com febre e, logo que Jesus chegou, falaram-lhe dela. Ele foi ter com ela, tomou-a pela mão e ajudou-a a levantar-se. A febre deixou-a logo e ela começou a servi-los. À noitinha, depois do sol posto, trouxeram a Jesus todos os enfermos e possessos. A cidade inteira estava reunida junto à porta. Jesus curou muitos enfermos atormentados por toda a espécie de doenças e expulsou muitos demónios. Mas não permitia que os demónios falassem, porque sabiam quem Ele era. Na madrugada seguinte, ainda escuro, levantou-se e saiu. Foi para um lugar solitário e ali se pôs em oração. Mas Simão e os que estavam com ele seguiram-no. E, quando o encontraram, disseram-lhe: «Todos andam à tua procura!». Mas Ele respondeu-lhes: «Temos que ir para outra parte, para as aldeias vizinhas. Tenho que pregar também aí, pois foi para isso que Eu vim». E andou por toda a zona da Galileia, pregando nas sinagogas e expulsando os demónios.

* Jesus curou muitos que eram afligidos por várias doenças. O trecho evangélico é composto por três pequenas cenas concretas, às quais é acrescentada uma outra de tom mais genérico. São elas: a cura da sogra de Simão Pedro; a multidão de pessoas que se juntam à porta da casa onde está Jesus e a cura dos doentes; o momento de oração solitária de Jesus; e, finalmente, a «peregrinação» que Jesus faz por toda a zona da Galileia. Ora, se é assim, então a cura da sogra de Simão Pedro, pela novidade e pelo insólito, não pode nem deve ocupar por demais ou em exclusivo a nossa atenção, pois talvez não seja o mais importante do trecho em questão. Eu diria que, para além disso, é útil realçar que, nas outras três cenas, há um traço comum que deve merecer a nossa atenção. E é o facto de a missão de Jesus se destinar, não apenas a algumas pessoas, como a sogra de Pedro, mas sim a todos; não apenas aos habitantes da cidade de Cafarnaum (onde Ele vivia habitualmente), mas às aldeias vizinhas.

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 *   Foram-me destinadas noites de dor.

 

 *   Fiz-me tudo para com todos para poder ganhar alguns.

 

 *   Jesus curou muitos que eram afligidos por várias doenças.

UM DIA 

TÍPICO 

COM 

JESUS

 

* O problema do sofrimento

    Um dos grandes escândalos do mundo e um dos motivos por que muitos rejeitam a fé foi sempre e continua a ser o sofrimento; todo o sofrimento, mas sobretudo o sofrimento dos inocentes. E isso diz-nos respeito também a nós, directamente, porque, é claro, temos a tendência a considerar-nos sempre inocentes! O problema resume-se a esta pergunta simples: Como é que Deus pode ser Pai bondoso e permitir que o homem sofra? Como é que pode permitir que eu sofra? É esta a grande pergunta que dura desde sempre e que se torna mais dramática quando o mal me toca a mim em primeiro lugar.

   O tema prevalecente das leituras deste domingo é precisamente o que se refere ao sentido - ou não sentido - do sofrimento humano. Independentemente de se encontrar ou não uma explicação, é um facto que ninguém parece poder subtrair-se a esta lei do sofrimento; pelo que, do coração e dos lábios de cada um, em certos momentos da vida, parece elevar-se o grito e o lamento de Job, «protótipo» bíblico dos atribulados e provados pela dor. O seu pensamento pode resumir-se no seguinte: «Eu só tive por quinhão meses de sofrimento». Todavia, talvez uma leitura atenta desta extraordinária peça de teatro (porventura um dos mais extraordinários livros de toda a literatura mundial) seja capaz de fornecer uma resposta vital que só o coração pode perceber.

* Sofrimento, um porquê constante

    Job vive também hoje no homem que sofre e que se pergunta, sem êxito, sobre o porquê do sofrimento. Por outro lado, a doença e o sofrimento, que acompanham infalivelmente a vida de todos, causam um estado de dúvida e de incerteza que aumenta ainda mais essa sensação de mal-estar. Essa condição contrasta claramente com a fome e o desejo de sossego, de absoluto, de estabilidade e de definitibilidade (passe a palavra!). Também Job, o protagonista do livro do qual é extraída a primeira leitura, anda à procura das causas desta situação.

    Vivendo num mundo antigo ou arcaico e segundo uma mentalidade em que a doença, o mal e o sofrimento dependiam directamente de Deus (como aliás todos os outros acontecimentos), como era o mundo descrito pela 1ª leitura, Job não percebe a razão do que lhe acontece; sobretudo se tivermos em conta que ele sempre procurou pautar a sua vida segundo os mandamentos e as leis do Senhor. O que, por sinal, segundo o livro citado, até era verdade. Ora, isso torna a sua situação ainda mais dolorosa e absurda.

   Imbuídos da mentalidade antiga que acabei de referir, naturalmente ele e os seus amigos (que simbolizam as pessoas de todos os tempos) vêem o sofrimento como um castigo de Deus. Mas, por outro lado, Job já consegue «antever» que isso é um contra-senso por ter a consciência tranquila. De alguma forma, ele sente que Deus não tem, digamos assim, razão para o castigar. E, todavia, a verdade é que ele, apesar disso, é alvo de atrozes sofrimento. A resposta à questão tem que ser, pois, outra. O livro esclarecer-nos-á que ela não será fornecida pela sua capacidade de raciocínio, mas pela intuição do coração.

* Sofrer não é descontar uma pena

    Talvez na tentativa de desculpar a Deus, digamos assim, por vezes afirmamos que o sofrimento não é necessariamente e sempre um mal, mas que pode ser um bem. Isso é um facto, mas, em todo o caso, parece-me que isso não é justificação nenhuma. O mal é sempre mal e o sofrimento é, claramente, um mal. Tanto é verdade que, nos «novos céus e na nova terra, não haverá mais nem sofrimento nem morte» (cf. Ap 21,3). A resposta ao problema não é tão simples e simplória como uma fé mal entendida e superficial pode dar a entender e que geralmente se traduz na expressão: «É a vontade de Deus!». Não, não pode ser vontade de Deus que as pessoas sofram, assim sem mais nem menos. O que é certo é que Deus não pode querer o mal e muito menos o mal moral.

    O livro de Job não dá uma resposta «intelectual», mas sugere, em vez disso, e sem margem para dúvidas, que se trata dum mistério. Obviamente, não utiliza esta palavra, mas a ideia é essa. Há, pois, momentos da vida em que temos que chegar à conclusão que não compreendemos o que se passa. Por um lado, sabemos que o sofrimento também é uma consequência das nossas limitações naturais, mas, mesmo assim, continua sempre a ser um mistério. E é nessa linha de aceitação que temos que proceder. De resto, revoltar-se ou voltar-se em vitupérios contra Deus, afinal de contas, também não resolve nada, porque não acaba com o sofrimento...

    Em todo o caso, a reflexão que se segue a este livro de Job, sobretudo no tempo dos profetas, virá confirmar que a doença e o sofrimento não estão necessária e logicamente relacionados com o pecado pessoal e que, portanto, não são necessariamente um castigo do pecado. Mas tanto Job como os profetas dão a entender que o sofrimento pode ser uma prova de fidelidade em relação à capacidade de pôr os critérios de Deus acima dos nossos próprios critérios.

   Este é um conceito nada fácil de assimilar, mas ao qual é possível chegar. É certo que, com o decorrer do tempo, na literatura bíblica, aparece o sofrimento também como meio de purificação das culpas, mas isso não depende da culpabilidade ou não daqueles a quem toca o sofrimento. A prova mais evidente disso é a experiência que irá tocar ao futuro Messias, descrita pelo profeta Isaías, e que assumirá o semblante do «Servo sofredor». Toca-lhe sofrer e, no entanto, ele não é culpado do que lhe está a acontecer. Escusado será dizer que é o que se passa com o sofrimento e a morte de Jesus na cruz.


    A interrogação é, de alguma forma, tão absurda que só o próprio Deus, humanizado em Jesus Cristo, lhe podia dar uma resposta. Mas trata-se duma resposta que não é necessariamente uma explicação. É uma resposta que é a presença do próprio Jesus Cristo no acto de sofrer e que só será resposta para quem for capaz de a entender. Para isso, é necessário aceitar a realidade de Jesus Cristo. O filho de Deus não veio destruir o sofrimento, mas sofrer connosco. Não eliminou nem destruiu a cruz, mas estendeu-se nela. Mas isso é capaz de adensar ainda mais o mistério. E a única observação que eu posso fazer é que, se Ele se sujeitou a essa «prova», deverá haver algum motivo para isso.

* Sinal dos novos céus e nova terra

   A doença, o sofrimento e o mal são uma das tantas provas a que está sujeita a pessoa e a humanidade como tal. Os tempos que correm são férteis em acontecimentos que comprovam esse facto. Sabe-se perfeitamente quanta mudança de vida provoca! Segundo o livro em apreço, Job será curado milagrosamente, como o será, mais tarde, a sogra de Pedro e tantos outros doentes e possessos dos quais fala o trecho evangélico de hoje. Mas essas são excepções.

   O que posso dizer é que a cura definitiva só acontecerá nos últimos tempos, quando o Espírito tiver renovado toda a face da terra. Os profetas, quando falam do advento do Reino, referem-se precisamente à cura de doenças incuráveis (naquele tempo): os coxos caminharão, os cegos verão, os surdos terão a vista, os mortos ressuscitarão. E são precisamente estes os sinais que inauguram a vinda desse Reino (cf. Mt 11,5).

    A cura física, mesmo no Evangelho, nunca é nada de definitivo; é sempre algo de precário. Como é evidente, as pessoas tornavam a ficar sujeitos às mazelas físicas. A cura física é, isso sim, de alguma maneira, a antecipação da vitória definitiva de Cristo sobre tudo o que é caduco e que acontecerá numa outra dimensão que não a nossa. As curas, como a de Job, a da sogra de Pedro, a ressurreição de Lázaro e tantas outras, são, portanto, sinais da restauração global do homem e do cosmos.

* Voltando ao livro de Job

    «Senhor, no passado, eu conhecia-te por ter ouvido falar de ti, mas agora vi-te com os meus próprios olhos» (Job 42,5). Talvez esta seja a frase-chave de todo o livro de Job em exame, pois assinala a viragem espiritual produzida no protagonista pela presença de Deus. Job passa por três fases diversas: no Prólogo, faz-se referência a uma atitude de total disponibilidade à vontade de Deus. Mas esta atitude, embora profundamente religiosa, é, todavia, passiva.

    A partir do capítulo terceiro, inicia-se a fase da contestação e da polémica. Há, com efeito, alguns momentos intensamente dramáticos. É certo que Job nunca perde a fé em Deus, mas não consegue compreender o problema dos justos e dos inocentes que sofrem. E, mais que uma vez, protesta contra Deus, embora, por outro lado, conteste as soluções demasiado fáceis que lhe são sugeridas pelos amigos. Chega mesmo a revoltar-se contra Deus, que acusa de ser arbitrário e prepotente (são estas as palavras utilizadas).

    Finalmente, a partir do capítulo trinta e oito, Deus intervém e começa a falar-lhe. É então que se produz em Job uma profunda transformação. Já não é a atitude passiva da primeira parte, nem a procura angustiosa da segunda, mas a serenidade e a paz daquele que experimentou a presença de Deus nos acontecimentos da sua vida.

* Mas isso é alguma solução?

   A solução que o livro de Job oferece ao problema do justo e inocente que sofre, e ao problema do mal em geral, não é uma solução teórica e especulativa. As palavras, por si sós, nestes casos, valem de bem pouco. É uma solução experimental e existencial. Ao descrever a intervenção de Deus, o autor do livro não procura sequer responder ao problema levantado pelo corpo do livro. Limita-se a descrever a Deus que se revela a Job, que se põe ao lado do homem que sofre. E isso basta para que Job se sinta completamente diferente e readquira a paz.

   No plano teórico, há que admitir que o problema do justo que sofre fica por resolver. Mas nós estamos em vantagem em relação a Job. E a vantagem que nós temos em relação a ele é que já temos conhecimento do mistério dum Deus que se faz homem, ou melhor ainda, o mistério do Justo inocente por antonomásia abraçado à cruz do sofrimento. Isso nos basta para continuar a nossa caminhada. O que significa que, no fundo, a solução continua a ser a solução existencial sugerida e fortalecida pela fé.