Temas de fundo |
1ª leitura (Ez 33,7-9): Eu faço de ti, filho do homem, sentinela da casa de Israel. Ouvirás atentamente a palavra que sai da minha boca para, da minha parte, advertires os teus irmãos. Se Eu digo ao ímpio que vai morrer e tu não lhe falas para o pôr de sobreaviso contra a sua má conduta, ele morrerá em pecado, mas é a ti que Eu pedirei responsabilidades. Agora, se advertes o pecador para o afastar do mau caminho e ele não se converte, ele morrerá na sua iniquidade, mas tu salvarás a vida. * Ouvir a palavra de Deus e pô-la em prática. Ezequiel profetiza, durante cerca de 20 anos, no exílio da Babilónia. É, pois, natural, que a sua visão do mundo espelhe, digamos assim, essas circunstâncias e sinta a necessidade de ir ao encontro das necessidades que nascem dessa condição histórica. Condenada à perseguição e ao isolamento e também à falta de templo e de sacerdotes, a população exilada cai na tentação da dúvida da protecção divina. Talvez alguns deles tenham chegado mesmo à conclusão de que os deuses estrangeiros tinham levado a melhor e eram mais fortes que o Deus de Israel. Neste aspecto, é compreensível que uma parte dos judeus se deixasse seduzir pelas divindades pagãs e pelas promessas que ao seu culto estavam associadas. É precisamente nesta altura que se sente a necessidade de «repor as coisas» e é sobretudo o profeta Ezequiel que vai exercer essa difícil tarefa. Ele sente que há que corrigir essa mentalidade completamente reprovável, sob pena de se sentir responsável por muitos se perderem sem que ninguém tenha feita nada para obviar à situação. 2ª leitura (Rm 13,8-10): Não fiqueis a dever nada a ninguém a não ser o amor uns aos outros. Pois quem ama o próximo cumpre plenamente a Lei. E, com efeito, «não cometerás adultério, não matarás, não furtarás, não cobiçarás», bem como qualquer outro mandamento, resumem-se a uma só frase: «Amarás o teu próximo como a ti mesmo». Quem ama não faz mal ao próximo. Assim, é no amor que está o pleno cumprimento da Lei. * Quem ama o próximo cumpre a lei. Esta pequena passagem de Paulo aos Romanos aqui inserida eu interpreto-a como uma eventual tentativa de atenuar e prevenir os perigos a que a «correcção fraterna» mal entendida pode levar. Nela se baseia, penso eu, o único critério válido para agirmos nesse campo: ou seja, não há correcção fraterna que valha esse nome se não for revestida do amor para com os outros. Para que a correcção surta efeito, não se pode proceder como se cedesse à necessidade e à vontade de tirar um peso de cima, com a intenção de dizer «uma série de coisas àquele infiel». Dito doutra maneira, quando a correcção fraterna me «dá gozo», é muito mau sinal. Isso é já a negação da caridade e do amor, é a negação do tacto e do respeito que o outro merece, independentemente do que tenha feito e possa fazer. Esta é uma norma válida para todos, mas sobretudo para aqueles que, por inerência do cargo, têm o dever de ser líderes da comunidade. Pior ainda, quando, mesmo não havendo elementos suficientes, nos concedemos comprazidos a permissão de dizer e inventar isto e aquilo do outro, sobretudo nas suas costas, quando não se chega mesmo a montar um tribunal de julgamento em praça pública, sem que o outro tenha a possibilidade de se defender. PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. Evangelho (Mt 18,15-20): Se o teu irmão comete um erro, vai ter com ele e repreende-o a sós. Se te der ouvidos, terás ganho o teu irmão. Mas, se não te der ouvidos, toma contigo mais uma ou duas pessoas, para que toda «a questão fique resolvida pela palavra de duas ou três testemunhas». Se ele se recusar a ouvi-las, comunica-o à Igreja. E, se ele se recusar a ouvir também a Igreja, seja para ti como um pagão ou um cobrador de impostos. Em verdade vos digo: tudo o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu. Digo-vos ainda: se dois de vós acordarem entre si para pedir qualquer coisa, obtê-la-ão de meu Pai que está no Céu. Pois, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, Eu estou no meio deles. * Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, Eu estou no meio deles. Segundo a nota de rodapé da edição da Bíblia dos Capuchinhos relativa a esta passagem, «estes versículos destinavam-se a moderar o rigor dos que exigiam a expulsão imediata dos pecadores da comunidade». Acho esta nota pertinente, porque o tema da correcção fraterna não é assim tão simples como pode parecer à primeira vista. E não há que esconder que, em muitos casos em que se sente a necessidade dessa correcção fraterna, as coisas acabam por não funcionar, porque o que mais falta é precisamente o método que é apontado na segunda leitura deste domingo. Ou seja, a correcção fraterna não pode significar «dar uma boa lição», «pôr a nu os defeitos de alguém», «repor as coisas no seu lugar», mas sobretudo ganhar a confiança e o regresso daqueles que, por qualquer motivo, deixaram os caminhos do Senhor. Lançar à cara (pior ainda quando é com ar sobranceiro) os pecados ou os defeitos não é «táctica» que possa surtir qualquer efeito positivo. A esse propósito, não se esqueça que a preocupação deve ser a de reconciliar com Deus e, para isso, é preciso o seu auxílio: se, em comunidade, se pedir alguma coisa a Deus, Ele concedê-la-á. |
* Ouvir a palavra de Deus e pô-la em prática. * Quem ama o próximo cumpre a lei. * Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, Eu estou no meio deles. |
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QUEM AMA NÃO FAZ MAL AO PRÓXIMO |
Creio que se tem exagerado, por vezes, sobretudo no passado, na interpretação do trecho evangélico que faz parte da liturgia da palavra deste domingo. Tem-se insistido demasiado na obrigação de pôr em prática a chamada «correcção fraterna» entendida simplesmente como a erradicação dum defeito qualquer (sobretudo nos outros!). Ora, sem querer tirar a isso qualquer importância, dá-me a impressão de que o contexto geral das leituras se refere mais à reprovação dum certo rigorismo que existia na comunidade cristã de expulsar os pecadores à mínima infracção. O texto evangélico vem dizer, pois, que, até nestas coisas, é preciso ter muita prudência.
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Correcção e responsabilidade
Quando se fala de correcção fraterna, quase todos, indistintamente, temos a tendência pensar que ela é absolutamente necessária. Agora, o que acontece é que o o sujeito ou pessoa a precisar de correcção está sempre fora de nós mesmos. Admitimos, sem grande dificuldade, e, se calhar, até com alguma desenvoltura e auto-satisfação, que a correcção fraterna é útil e inadiável. Mas já é com dificuldade e relutância que aceitamos que quem precisa de correcção fraterna somos nós próprios e não apenas os outros.
À primeira vista, pode-se ficar com a impressão imediata de que o trecho evangélico se refere, prevalentemente, a um tipo de correcção fraterna a aplicar a terceiros. E o facto é que, enquanto for assim, nós estamos encantados da vida. Mas eu creio que essa visão é demasiado redutora. De resto, na interpretação das leituras bíblicas, sempre que isso seja possível, devemos ter presentes as três leituras no seu conjunto. No caso presente, se calhar elas apontam para uma interpretação muito mais abrangente.
Ora, o caso do contexto das leituras de hoje parece bastante sintomático. As leituras bíblicas não são propostas só para aplicar aos outros. Não serão propostas, em primeiro lugar, para aplicar a nós mesmos? No contexto de hoje, as primeiras duas leituras ajudam-nos a extrair conclusões importantíssimas, para não nos contentarmos com tocar a rama das coisas.
A correcção fraterna não será, por vezes, uma acção policiesca que pomos em prática com certa presunção? Pessoalmente, não gostaríamos que outros fizessem isso em relação a nós. A correcção fraterna não pode nem deve prescindir sobretudo do exercício da caridade ou do amor aos outros. É mais que actual o princípio evangélico (e não só) de que não devemos fazer ou querer aos outros o que não queremos para nós. É evidente que gostamos que os outros nos tratem com luvas de caridade. Porquê então tanta relutância em fazermos o mesmo com os outros? Trata-se da responsabilidade de cada um em termos de solidariedade para com os outros (cf., a este propósito, a segunda e a primeira leituras respectivamente).
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Exclusão purificadora
Numa leitura mais aprofundada dos textos em questão, há que admitir que o pano de fundo da «teoria» da correcção fraterna é o convite à misericórdia e ao perdão, e não a perspectiva do castigo e da lição exemplar. Por outras palavras, se com a correcção fraterna, não se corrige nada e muito menos de maneira fraterna, então ela deixa de fazer sentido. Seguindo este raciocínio, o último grau da correcção fraterna, que é a «excomunhão», é mais uma operação e um resultado passivo do que activo, digamos assim. Ou seja, mais do que duma atitude que temos o direito de adoptar, trata-se apenas de chegar à conclusão que alguém não está disposto à comunhão, apesar de todos os meios colocados à sua disposição e que, por isso, se auto-exclui da comunidade.
Nessa linha, a excomunhão deve ser, por um lado, um caso-limite e, por outro, o esforço para fazer entrar em si o sujeito dessa excomunhão, mas também a preocupação por parte da Igreja em defender e proteger os fiéis que não estão doutrinal ou psicologicamente preparados para certos choques no campo da fé. Nesse sentido, trata-se certamente dum procedimento extremo, quando já se perderam todas as esperanças de «conversão».
Mas, como é evidente, não é essa (ou, pelo menos, não deve ser) a regra comum; como alguns porventura possam pensar e pretender. Em todo o caso, mesmo na hipótese extrema, deve haver sempre a preocupação de que seja uma exclusão purificatória e não simplesmente condenatória (como infelizmente, a maior parte das vezes, parece ser o caso), até porque se sabe perfeitamente que só a Deus compete julgar e, portanto, premiar ou condenar...
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Correcção fraterna «passiva»
A práxis penitencial da Igreja dos primeiros séculos, que afastava da Eucaristia, durante um determinado período de tempo, os fiéis que «prevaricavam», é testemunho da grande seriedade e empenho na conversão. O pecador não podia obter o perdão enquanto não «expiasse», perante os irmãos, a divisão que causara.
Esta penitência pública era, na prática, uma espécie de «excomunhão». Ou seja, na prática, era a última consequência da correcção fraterna. Com o decorrer do tempo (há que o reconhecer), muito se perdeu dessa seriedade. O sacramento da Penitência hoje, ou perdeu em actualidade (e muitos dentro da Igreja hierárquica se queixam que as pessoas se confessam cada vez menos) ou então foi reduzido a um gesto ao mesmo tempo automático e mágico, que infelizmente - há que reconhecer isto também - é repetido de forma consuetudinária e rotineira; eu diria, sem aquela seriedade que seria de desejar. O sacramento da Penitência (como os outros sacramentos) não pode deixar de ser uma coisa séria. Nesta matéria, como em outras, é muito fácil ir do oito ao oitenta. Ou seja, abandona-se a prática da penitência pública por ser humilhante e «limpam-se os pecados», até os socialmente mais relevantes, numa sessão privada, como se fosse a coisa mais natural deste mundo.
Seria um tema demasiado longo e complicado o da redescoberta do sentido penitencial das penas impostas (da correcção a impor), sem cair na casuística improdutiva. E eu não pretendo seguir esse caminho. Mas também não me compete culpar as estruturas pelo facto de as coisas não correrem como deveriam, porque, também neste campo, as iniciativas locais talvez devam olhar para o problema com outro olhar; e sobretudo um olhar evangélico.
Para além desse aspecto, há um outro muito importante em termos de operacionalidade, digamos assim. É a seriedade da responsabilidade que deveria ter cada um de nós (e, como regra, não tem) relativamente àquilo a que eu chamaria «correcção passiva», ou seja, à correcção aplicada a si mesmo: primeiro, como aceitação da correcção recebida dos outros em relação à minha própria pessoa; depois, como decisão de tomar a sério todas as críticas que me são feitas para realmente me corrigir, penitenciando-me do que está mal. De resto, é essa a condição essencial para ter autoridade moral para corrigir os outros...
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Correcção igual a fraternidade
Mas, mesmo no caso em que se fale de correcção fraterna dos outros, temos que evitar sempre qualquer resquício de auto-complacência e sobretudo julgamento. Em minha opinião, quando nos comprazemos por poder corrigir os outros, isso é o primeiro sinal que o não devemos fazer. É certo que é mais fácil ver o que está mal nos outros, mas isso deve levar-nos a concluir também que aos outros é mais fácil ver o que está mal em nós. Seja como for, o reconhecimento de que os outros precisam de correcção não nos dá o direito de nos proclamarmos superiores ou melhores que eles. É que, na verdade, quando nos julgamos aptos ou «na obrigação» de corrigir os outros, corremos o risco de pensar que nós próprios somos perfeitos. Ora, se é esse o caso, então estamos certamente também nós a precisar de correcção, porque, em termos rigorosos, perfeito só Deus.
Quem com mais facilidade se sente tentado a «corrigir» os outros e a dizer-lhes «uma data de verdades» examine-se se não terá também tantos ou mais defeitos a corrigir que os outros. Aliás, devo acrescentar que «quem mais ferve em pouca água» (e dispara críticas em todas as direcções) corre o sério risco de ser visto como um perigo a evitar. Isso significa também que não terá quem esteja disposto a apontar-lhe falhas e defeitos (que certamente tem). Ora, a verdade é que a correcção fraterna deve ser mútua.
E, no entanto, a correcção fraterna, bem entendida deveria ser, por assim dizer, um corolário fundamental do cristianismo, ou seja, o resultado do amor e da preocupação de uns para com os outros. Uma comunidade de amor é, pois, sempre uma comunidade de reconciliação e correcção, pois este processo faz parte do crescimento e do progresso. A comunhão perfeita nunca será um processo concluído, mas uma conquista contínua, só possível através deste rever em todos os momentos a própria posição.
A correcção como «reconciliação de uns com os outros» é um corolário da fraternidade, porque o amor e o perdão autênticos (que excluem a violência) nunca deixam as pessoas como são, com os seus defeitos e os seus limites de sempre. Amar um irmão é ajudá-lo a crescer a todos os níveis, querer concretamente a sua libertação verdadeira de tudo quanto é defeituoso e mau. Mas é, ao mesmo tempo, deixar-se questionar e corrigir por ele.
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A correcção é uma coisa séria
Bem, reconheço que o que acabo de escrever é muito mais fácil de verbalizar do que de pôr em prática. Mas não posso deixar de acentuar que, à luz do Evangelho, corrigir não pode ser senão uma obra de amor. Mais, se o não for, poderá haver tudo menos correcção. Corrigir não é - não pode ser - simplesmente «criticar», «lançar em rosto», «ler a cartilha», «dizer uma série de coisas» a alguém. Mais que uma acção isolada, mais do que lançar em rosto um pesadelo que nos queima cá dentro, consiste em nunca apagar a chama que fumega, quer dizer nunca extinguir energias e entusiasmos, é contribuir para a construção da pessoa.
A correcção fraterna eficaz é ajudar a ver as coisas sem fazer pressão. É levar a «raciocinar» evangelicamente sem dar a entender que o mérito é todo nosso. É saber mudar as coisas, dando a impressão que realmente não se muda nada por nossa causa. E há algo, neste campo, que se não pode esquecer: encorajar as pessoas é um processo que leva tempo. É um empenho que implica saber olhar para os outros realmente com olhos de amor, dando a compreender, sem margem para dúvidas, que, afinal, as pessoas são mais importantes que as coisas que se dizem e que as regras que se impõem. E, de facto, nada é mais encorajante que a atenção vigilante, o interesse e o respeito não puramente formais, a inesperada palavra de parabéns, a presença constante sem forçar nem humilhar.