Tema de fundo |
XXII DOMINGO COMUM 1ª leitura (Jr 20,7-9): Seduziste-me, Senhor, e eu deixei-me seduzir! Tu és mais forte do que eu e venceste. Eu sou objecto de contínuo escárnio e todos se riem de mim. Sempre que tenho que falar é para dizer: «Violência! Opressão!». Senhor, sou ridicularizado e escarnecido continuamente por causa da tua palavra. Mas, quando penso para comigo: «Vou esquecê-lo! Nunca mais falarei em seu nome!», a tua mensagem é como um fogo devorador no meu coração, bem lá dentro dos meus ossos. Eu bem me esforço por contê-lo, mas não posso.
* Tu me seduziste, Senhor, e eu deixei-me seduzir. O livro que leva o nome de Jeremias parece-me um dos que oferece mais dados pessoais sobre aquele que supostamente é o seu autor. Esta passagem em particular faz parte do último dos textos a que os hermeu-tas ou entendidos dão o nome de «Confissões de Jeremias» (para além deste, cf. também 11,18-12,6; 15,10-21; 17,14-18; 18,18-23). De todos esses dados autobiográficos é bastante fácil concluir que a vocação de Jeremias não foi nenhum mar de rosas. Apesar de Jeremias se sentir seduzido por Deus, isso não quer dizer que as dificuldades tenham desaparecido. Pode soar a exagero, mas sabe-se que Jeremias não se coíbe inclusivamente de amaldiçoar o dia em que nasceu (cf. 20,14ss). Espero que isso não escandalize os mais pusilânimes. Em todo o caso, o facto é que o enamoramento que o profeta sente por Deus levá-lo-á sempre a ser fiel à sua difícil missão de ser mensageiro do Altíssimo, não obstante os seus protestos contínuos. Apesar de todas as perseguições, o profeta foi ultrapassando todas as dificuldades que lhe advieram por causa da sua missão.
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2ª leitura (Rm 12,1-2): Pela misericórdia de Deus, exorto-vos, irmãos, a que vos ofereçais como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus. É este o vosso verdadeiro culto: o espiritual. Não vos conformeis com a mentalidade deste mundo, mas, ao contrário, deixai que Deus vos transforme, renovando a vossa mentalidade. Então podereis discernir a vontade de Deus: o que é bom e lhe é agradável é perfeito.
Depois de ter exposto a sua mensagem sobre a forma como a salvação trazida por Cristo se estende tambem aos não-judeus, na segunda parte da sua Carta aos Romanos (que tem início precisamente com estes dois versículos), S. Paulo exorta à unidade entre todos os cristãos, seja qual for a sua proveniência, porque o fundamento da unidade é Aquele que é o autor da salvação: Jesus Cristo. Tudo tem nele a sua razão de ser. Isso significa pautar toda a vida pelos «critérios» de Jesus. Nessa linha, a conclusão é clara: é necessário pôr em segundo plano os «critérios» do mundo, porque, a partir de agora, o sentido da nossa história pessoal e coletiva é diferente. E esta mensagem é clara para aqueles que, como nós, dizem acreditar, ou seja, aceitam, a Jesus Cristo como ponto supremo de referência da própria vida. Neste sentido, pode-se concluir que aquilo a que Paulo quer chegar é dizer que as condições para seguir a Jesus são radicais, de modo que só assim a nossa mentalidade será transformada.
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Evangelho (Mt 16,21-27): Jesus começou a fazer ver aos seus discípulos que tinha que ir a Jerusalém e sofrer muito, por parte dos anciãos, dos sumos sacerdotes e dos doutores da Lei; e que tinha que ser morto e, ao terceiro dia, ressuscitar. Então, tomando Jesus de parte, Pedro começou a repreendê-lo: «Deus te livre, Senhor! Isso nunca te há-de acontecer!». Mas Ele, voltando-se, disse a Pedro: «Afasta-te de mim, Satanás! Tu és para mim um obstáculo, porque os teus pensamentos não são os de Deus, mas os dos homens!». Jesus disse então assim aos discípulos: «Quem quiser ser dos meus, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la. Mas quem a perder por minha causa, encontrá-la-á. Com efeito, que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perde a sua vida? Não há nada que ele possa dar para ganhar a sua vida? O Filho do Homem virá na glória do seu Pai, com os seus anjos, para então retribuir a cada um conforme as suas acções.
Não temos que tentar adocicar as palavras de Jesus no que se refere ao seu seguimento, só porque é fácil verificar que poucos põem em prática a sério estas propostas. Se a expressão me é consentida, Jesus não está com paninhos quentes. É também curioso que este trecho, em Mateus, venha logo a seguir à Confissão de Pedro, o qual, em nome de todo o grupo dos apóstolos, reconhece a Jesus como Messias e como Filho de Deus. A partir do momento em que se reconhece a Jesus Cristo ressuscitado como Filho de Deus e Senhor, a forma de pensar tem que mudar necessariamente, até assumirmos os mesmos sentimentos que Ele teve. Nesta perspectiva, embora nos custe admiti-lo, há que reconhecer que, como regra, estamos muito longe da proposta e do ideal de Jesus. Retomando a primeira leitura, não há dúvida de que aquele que se deixa seduzir por Deus suporta tudo, sujeita-se a tudo, não tem medo de perder a sua vida, porque sabe que é assim que a está a ganhar verdadeiramente. E então, se nós ainda não chegámos a essa mentalidade, isso significa porventura que não somos assim tão discípulos de Cristo como deveríamos ser.
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* Tu me seduziste, Senhor, e eu deixei-me seduzir.
* Não vos acomodeis a este mundo.
* Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua vida? |
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QUEM PERDE A VIDA POR MINHA CAUSA GANHA-A. |
As expressões que encontramos no texto evangélico de hoje não são exclusivas desta passagem. Seria um bom exercício procurá-las noutros capítulos de Mateus e dos outros evangelistas. Seja como for, o que o seu aspecto de exagero quer realçar é, claramente, a radicalidade do Reino ou da nova sociedade que Jesus propõe. Isso quer dizer que Jesus não admite meias tintas no que se refere ao nosso relacionamento com ele.
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Pregar Jesus ressuscitado
Toda a liturgia da palavra deste domingo fala da necessidade de aceitação das limitações e da relatividade desta vida. A primeira leitura é um dos trechos das «confissões» amargas e dolorosas do profeta Jeremias. Hostilizado no exercício da sua missão, não obstante tudo, permanece fiel até ao fim, apesar dos obstáculos que se lhe deparam contantemente. A segunda leitura incita a não deixar-se enredar pela mentalidade deste mundo. E, finalmente, o trecho evangélico relativiza sem margem para dúvidas as prioridades e critérios que os homens estabelecem, declarando sem rodeios: «Quem quiser salvar a própria vida, há-de perdê-la; ao contrário, quem perder a própria vida por minha causa, então é que a encontrará».
Não tenho dúvidas em admitir que, aos olhos da mentalidade comum, esta forma de pensar é algo de inacreditável, absurda e inclusivamente ridícula. E, com efeito, até se aceita que haja, de facto, uma enorme dificuldade em assumir atitudes que contradigam o que são os padrões de felicidade e de bem-estar propostos por uma sociedade cujos objectivos são a satisfação imediata e sem regras dos instintos de comodismo. Mais, é verdade é que o discurso sobre o «sofrimento e a paixão» não tem absolutamente sentido nenhum caso não se perspetive a vida humana em termos de eternidade. Por outras palavras, parece por demais evidente que não faz sentido nenhum «perder a própria vida» nesta vida se depois não se ganha nada numa outra vida. Já S. Paulo o diz doutra maneira na sua primeira Carta aos Coríntios: «Se Cristo não ressuscitou, também nós não ressuscitaremos. E então, se esperamos em Cristo só (o sublinhado é meu) nesta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens, porque perdemos esta e a outra vida» (cf. 1Cor 15,13ss). Mas Paulo acrescenta logo que Jesus ressuscitou e, então, as coisas já tomam outro sentido.
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Ministério muito incómodo
Quem tenha que pregar que os caminhos de Deus são diferentes dos caminhos dos homens não pode certamente acalentar uma vocação para a tranquilidade. A missão do «arauto de Deus» é incómoda e incomodante. Jeremias é paradigma dessa situação de fronteira. Totalmente contra o seu feitio, ele tem o incómodo encargo de dizer aos seus contemporâneos coisas que gostaria de não ter que dizer. E, no entanto, não as pode calar, porque dentro de si há como que um fogo que não pode conter. A sua alma é como um vulcão e um autêntico campo de batalha. Entre Deus e a mentalidade do mundo parece não haver possibilidae de entendimento; entre a necessidade de se sacrificar a sua própria existência, a sua tendência e feitio para a tranquilidade e o imobilismo, não parece haver no espírito inquieto do profeta Jeremias qualquer possibilidade de tréguas. E, por isso, ao fim e ao cabo, ao profeta Jeremias não resta senão uma alternativa: deixar-se seduzir por Deus.
Não vou aqui percorrer as vocações de outros profetas e homens de Deus para provar a mesma realidade. Não posso, no entanto, deixar de acentuar que, dum modo geral, em todos eles, há essa «dicotomia»: por um lado, a resistência ao mandato de Deus; e, por outro, a incapacidade de resistir a essa urgência de serem os seus porta-vozes. Diversa é a atitude de Jesus; precisamente porque já alcançou a consciência perfeita da indefectibilidade da vida. Para Ele, o sofrimento, a paixão e a morte não só não são escândalo nem absurdo, mas são a consequência do estado de pecado introduzido no mundo, que, no entanto, é possível reverter. Nas palavras de Jesus, a paixão e a morte não são apenas «previsões» e consequência da recusa relativamente a Ele e à sua doutrina por parte dos anciãos e chefes do povo, mas é qualquer coisa que «deve» acontecer, um momento já prefigurado e anunciado pelos profetas e que faz parte do plano salvífico de Deus.
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Os esquemas do messianismo
No contexto do anúncio da sua própria paixão e morte, com as suas afirmações, Jesus afasta-se, de maneira definitiva, da concepção messiânica do seu tempo, que era partilhada também pelos seus discípulos na sua vertente social e política. Mas Ele não é um Messias político e guerreiro, nem sequer simplesmente um profeta como os outros, mas Aquele que tem que dar a sua vida para cumprir o plano do Pai. Sim, ao contrário do que pensavam os seus conterrâneos, Ele é um Messias que vai ser entregue pelos chefes do povo para ser maltratado e crucificado.
Segundo o texto evangélico, é sintomática a maneira como Pedro reage a este pré-anúncio. É a reação típica de todos aqueles que, tendo uma ideia limitada da vida, não podem, de maneira nenhuma, compreender e imaginar para além desta dimensão terrena. Digo mais: é uma reação que partilhamos todos nós, hoje, como homens de pouca fé, como o foram as pessoas do tempo de Jesus, incluindo os seus próprios discípulos.
Para estarmos em condições de compreender algo do mistério da dor e do sofrimento de Jesus, é indispensável revestirmo-nos da sua mentalidade. Mas, geralmente, não é isso que acontece. De qualquer forma, o facto de que Jesus tenha aceitado a paixão e morte numa opção consciente, está a indicar que, se vale a pena sacrificar esta vida pela outra, a outra deve ter bem mais valor do que esta; ou melhor, está a indicar que esta vida, sem a outra, não vale a pena ser vivida.
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Duas mentalidades opostas
Há muitos que esperam a salvação e a felicidade do sucesso terreno, das coisas, do «ganhar o mundo inteiro». E, por isso, organizam a sua vida e as suas actividades nesse sentido. E não é um pequeno número. Talvez seja mesmo a maioria. Ou - felizmente, espero eu - talvez seja apenas um engano da minha parte. Todavia, há outros que esperam a salvação das mãos de Deus procurando viver na fidelidade à sua vontade, mesmo que aos olhos do mundo pareça que «perdem a sua vida», mesmo que os seus passos pareçam encaminhar-se para o falhanço e para o insucesso.
Esta dicotomia simplista poderia levar a concluir que a humanidade se pode dividir em duas categorias de pessoas: os que, apostando só nesta vida, perdem a outra; e os que, apostando na outra, podem perder esta. Mas é uma conclusão ilegítima e apressada, porque não se trata senão de uma verdade apenas parcial. O facto é que essas duas posições opostas se encontram no interior do mesmo indivíduo...
Há também uma outra oposição radicada no íntimo de cada indivíduo. É a que aceita a palavra de Jesus em teoria e como afirmação verbal, digamos assim, mas depois a desmente pontualmente na práxis e na vida de todos os dias. Quantas vezes já ouvimos, por exemplo, as seguintes palavras citadas pelos Sinópticos com mínimas variantes: «Para que serve ganhar o mundo inteiro se, depois, acabamos por nos perder a nós mesmos?». Certamente já as teremos ouvido inúmeras vezes. Mas habituámo-nos de tal maneira a elas que já as esvaziámos por completo do seu sentido radical. Faz-nos muito mais cómodo reduzi-las a «slogans», a modos de dizer paradoxais e de efeito, mas que, por isso mesmo, acabam por ser inofensivas. E, no entanto, essa e outras frases parecidas estão lá no Evangelho e não é só para efeitos de ornamentação.
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A técnica do compromisso
Com Deus, a estratégia do compromisso não vale. É típico de não poucos cristãos (e não vale a pena excluir-nos desse número!) um comportamento prático e concreto que acaba por prevalecer sobre o Evangelho. Ou seja, achamos bonito o que o Evangelho diz, mas, na prática, acabamos por optar pelo «modo de raciocinar segundo os homens». «Perder a vida para a ganhar» é uma frase bonita (pensamos nós) mas é só para constar lá nas páginas do Evangelho ou então - concedemos - para os grandes santos! Como se, na ótica do Evangelho, não devêssemos todos ser santos!
Ora bem! Não se pode celebrar a Eucaristia em toda a sua dimensão sem levar essas palavras a sério. A Eucaristia é memória e atualização da morte e ressurreição de Jesus. Jesus é «o Filho de Deus vivo» (como confessava Pedro no texto evangélico do domingo passado), mas é também o Jesus crucificado. Não é possível entrar em comunhão com esse Jesus se não se aceita a dimensão do sofrimento e da morte, embora isso nos custe a admitir. E, nesse aspeto, não se pode falar de mudança sem falar também de conversão real: da nossa maneira de equacionar a vida segundo coordenadas puramente humanas para a maneira de Jesus equacionar a vida. E foi precisamente Ele que disse que só quem perde a sua vida por causa dele é que a ganha. Não se pode ser verdadeiramente cristão aceitando apenas uma parte de Jesus.