Temas de fundo |
1ª leitura (Sir 27,30-28,9): A ira e o furor são coisas abomináveis que o pecador nutre no seu coração. Quem se vinga de alguém sofre a vingança do Senhor, que lhe pedirá contas rigorosas dos seus pecados. Mas, se perdoares ao teu próximo o mal que te fez, também os teus pecados serão perdoados, se o pedires na tua oração. Quem guarda rancor contra alguém não pode esperar que Deus lhe perdoe a si. Tu próprio és pecador e, se não perdoares aos outros, não terás direito que o Senhor te perdoe a ti. Se tu guardas rancor, não esperes ser perdoado, tu que és um simples mortal. Lembra-te disto! Um dia morrerás. Não nutras, pois, inimizades e vive segundo os mandamentos do Senhor. Lembra-te dos mandamentos e não te irrites contra o próximo. Lembra-te da aliança com o Altíssimo e não faças caso da ofensa recebida. * Perdoa ao próximo o mal que te fez. O livro de Ben Sirá, antes mais conhecido por Eclesiástico, procura fazer uma espécie de síntese do pensamento helénico e judaico, numa altura (a sua publicação data provavelmente do ano 180 a.C.) em que os invasores gregos procuravam dominar todo o mundo com a imposição da sua cultura e até do conteúdo do seu pensamento de carácter filosófico e religioso. Sendo um facto que o autor defende a fé tradicional do seu povo, para que possa continuar a viver segundo a Lei de Deus, isso, no entanto, não impede que se esforce por incorporar tudo o que de positivo conseguiu descortinar na chamada «cultura laica» de então. Uma das coisas mais interessantes deste livro é que a sua linguagem está bem perto da nossa e, por isso, como regra, não temos dificuldades de maior em entender o que ele nos quer dizer. Neste trecho, a grande ideia de fundo é que nos convém ser bondosos e perdoar aos outros, porque essa é a atitude mais inteligente. Da capacidade de perdão que formos capazes de demonstrar para com os outros, depende também - por assim dizer - o perdão que poderemos obter por parte de Deus. E é esse, na realidade, o perdão que conta para nós. PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. 2ª leitura (Rm 14,7-9): Ninguém de nós vive para si mesmo e nenhum morre para si mesmo. Se vivemos, é para o Senhor que vivemos e, se morremos, é para o Senhor que morremos. Portanto, quer vivamos quer morramos, é ao Senhor que pertencemos. Aliás, foi para isto que Cristo morreu e voltou à vida: para ser Senhor tanto dos mortos como dos vivos. * É ao Senhor que pertencemos. Havia dois grupos rivais entre os cristãos de Roma (não significa que os não houvesse também em outras comunidades cristãs): por um lado, aqueles a que Paulo chama «fracos» e que se identificam com os que procuravam seguir escrupulosamente as normas e os ritos da Lei até ao ínfimo pormenor; e, por outro lado, aqueles a que ele chama «fortes» e que se identificam com aqueles que consideravam essas normas e ritos de importância secundária. Dessa posição extremada, surgiam contendas e desentendimentos que tendencialmente ameaçavam a unidade da Igreja. É muito possível que S. Paulo até nutrisse alguma simpatia pelos «fortes», mas a verdade é que, no caso, a sua preocupação é preservar a unidade e, para isso, apela naturalmente à necessidade do perdão, porque a intolerância e o desejo de supremacia não podem ter senão consequências nefastas. E a razão apresentada pelo Apóstolo é muito simples: seja qual for a condição e até mesmo as convicções pessoais, o mais importante é que pertencemos ao Senhor. PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. Evangelho (Mt 18,21-35): Pedro foi ter com Jesus e perguntou-lhe: «Senhor, se o meu irmão me ofender, quantas vezes lhe devo perdoar? Sete vezes?». Jesus respondeu: «Não te digo sete vezes, mas setenta vezes sete». A propósito, o Reino do Céu é semelhante a um rei que quis ajustar contas com os seus servos. Começadas as contas, trouxeram-lhe um que lhe devia dez mil talentos (*). Não tendo ele com que pagar, o senhor ordenou que fosse vendido com a mulher, os filhos e todos os seus bens, a fim de pagar a dívida. O servo lançou-se então aos pés do rei dizendo: «Dá-me um prazo e tudo te pagarei». O senhor, compadecido do servo, mandou-o em liberdade, perdoando-lhe a dívida. Ao sair, o servo encontrou um dos seus companheiros que lhe devia cem denários. Segurando-o, começou a apertar-lhe o pescoço, dizendo: «Paga o que me deves». Então o companheiro caiu a seus pés e suplicou-lhe, dizendo: «Concede-me um prazo e pagar-te-ei». Ele, porém, não consentiu e mandou-o prender, até que pagasse tudo quando devia. Testemunhas desta cena, os seus companheiros ficaram muito tristes e foram contar ao senhor tudo o que tinha acontecido. Então, o senhor mandou-o chamar e disse-lhe: «Servo mau, perdoei-te tudo o que me devias, porque mo pediste. Não devias também tu compadecer-te do teu companheiro, como eu tive compaixão de ti?». E o senhor, indignado, entregou-o aos verdugos, até que pagasse tudo o que lhe devia. Assim procederá convosco o meu Pai celeste, se cada um de vós não perdoar a seu irmão de todo o coração. (*) Equivalente a mais de sete milhões de euros.
(Recomenda-se naturalmente a leitura do resto do texto evangélico, porque disso depende uma correcta compreensão das reflexões que são feitas). * Devemos perdoar «setenta vezes sete». Este trecho evangélico segue-se ao que tinha como tema a correcção fraterna (domingo passado). Na correcção fraterna, muito provavelmente, o perdão tem um papel essencial. Dada a importância que é dada ao assunto, presume-se que o perdão das ofensas é uma das características que deve distinguir o discípulo de Jesus. E tanto a expressão «setenta vezes sete» como a parábola que se lhe segue falam claramente de perdão sem limites nem condições. Quanto a isso, não me parece assim tão difícil de compreensão o texto em exame. Agora, o que se torna complicado é pôr isso em prática, porque não vale a pena esconder o facto de que temos uma dificuldade enorme em perdoar. Mas a verdade é que só o perdão está em condições de romper o círculo vicioso do ódio e da vingança. Não é pelo rancor e pela vingança - sobretudo quando já estamos fartos de «aturar» certas coisas - que se rompe a espiral da violência, mas sim através do perdão incondicional. E o problema é bem colocado, quando Jesus - exagerando obviamente as quantias - nos diz que o que nós temos que perdoar é uma ninharia (cem denários) em comparação com o que a nós nos é perdoado (dez mil talentos é uma soma incalculável e mesmo difícil de quantificar). Resta-me, por isso, dizer que a «teoria do perdão» está intimamente ligada àquele que é o mandamento por excelência, que é o amor. PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. |
* A ira e o furor são coisas abomináveis. * É ao Senhor que pertencemos. * Devemos perdoar «setenta vez sete vezes». |
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PERDOAI-NOS AS NOSSAS OFENSAS COMO NÓS PERDOAMOS A QUEM NOS OFENDE. |
PERDOAI-NOS AS NOSSAS OFENSAS,
ASSIM COMO NÓS PERDOAMOS A QUEM NOS TEM OFENDIDO.
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O perdão sem limites
Antes de mais, há que reconhecer que o judaísmo já conhecia o facto e o dever do perdão das ofensas, como é documentado, por exemplo, pela primeira leitura de hoje. Era, se assim se pode dizer, uma conquista relativamente recente (o livro de Ben Sirá deve ter sido escrito por volta do ano 180 a.C.). Mas há que acrescentar que obedecia a certas normas e condições bem precisas. Quanto a isso, não há margem para dúvidas quanto às limitações em que o perdão devia ser exercido. Ou seja, o perdão não era incondicional.
Nesse aspecto, os homens de hoje, passados mais de vinte séculos, não progrediram muito, porque a mentalidade que vigora é a de que se pode perdoar eventualmente, mas sob certas condições. No Evangelho, temos essa questão colocada sob a forma de pergunta: «Quantas vezes é necessário perdoar?».
Os rabinos, para sublinhar a liberalidade de Deus (fazendo-O à imagem e semelhança deles), afirmavam que Ele perdoava três vezes. Mas, à quarta vez, não havia remissão possível. E, nas suas escolas, ensinava-se que, sim senhor, os discípulos deviam perdoar três vezes à mulher, aos filhos, aos irmãos, aos amigos, etc. Não é de admirar, pois, que Pedro faça uma pergunta deste género. Mesmo reconhecendo que a doutrina do Mestre sempre era mais perfeita do que a dos escribas, ele ousa «alargar» o âmbito da liberalização chegando até ao máximo de sete vezes.
Nos dias de hoje, uma tal ingenuidade por parte de Pedro, sobretudo em ambientes cristãos verdadeiramente «informados», pode fazer sorrir. Compreende-se, efectivamente (em termos teóricos pelo menos), que o perdão que não seja sem condições não é verdadeiro perdão. No entanto, na prática, estamos muitas vezes ainda ao nível de Pedro e dos judeus. Ou, estamos pior ainda, pois somos capazes de até nem sequer estar dispostos a perdoar uma única vez. Perdoar, sim, mas desde que nos não espezinhem! Perdoar, sim, mas desde que haja muito respeitinho! Perdoar sim, mas desde que não passemos por parvos... Pois, mas então que espécie de perdão é esse? Não me parece que esse seja o perdão evangélico. Pois bem, a condição para nós sermos perdoados é nós perdoarmos também. E isto não é só uma frase retórica.
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Tanto ainda por fazer!
Nessa perspectiva e a propósito, parece-me que, infelizmente, não nos é ainda possível contemplar os louros das conquistas alcançadas no campo da tolerância e do perdão, já que a história dos povos (incluindo naturalmente os de civilização tradicionalmente cristã) estão cheios de testemunhos negativos: guerras, desentendimentos, violência, vingança, injustiças, guerras de religião, explorações de toda a ordem. Está-se, nesse sentido, ainda antes do Antigo Testamento. A Lei de Talião obrigava a não causar aos outros mais danos do que os que os outros tinham causado. Por isso, para obviar aos abusos que eram habituais, em boa hora apareceu uma máxima correctiva: «Olho por olho, dente por dente» (cf. Lv 24,20). Como que a querer dizer que quem fica sem um olho não se pode vingar tirando, por exemplo, os dois. E, todavia, não obstante os ideais cristãos (e até segundo outros credos), continua-se a dar a morte por tudo e por nada, incluindo a seres inocentes ou ainda não nascidos, sem que eles se possam defender.
A responsabilidade dos cristãos, iluminados pelo Evangelho, perante os irmãos ainda não iluminados pela luz da fé, é enorme e irrecusável. Proceder em contradição com a doutrina evangélica é um contra-senso e sobretudo um contra-testemunho. Sob o plano dos factos, o contra-testemunho desmente e inutiliza todo o esforço de evangelização e compromete a própria credibilidade do Evangelho. Mais um sinal de que, com muita probabilidade, muitos cristãos nem sequer se deram conta de que o Evangelho é para levar a sério.
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Romper a cadeia do ódio
A iniciativa da reconciliação incondicional parte sempre de Deus, porque dele nasce o amor. O perdão e o amor aos inimigos (ou até só a quem é estranho) não é compreensível senão a partir desta fonte. É, pois, tarefa dos cristãos ser operadores da paz e da concórdia no mundo, criando no ambiente em que estão inseridos um clima de reconciliação, de perdão, de diálogo e encontro, de fraternidade e igualdade em todos os sectores, quer a nível nacional quer internacional. O mesmo se aplica a nível de relações de vizinhança, de trabalho, de relações entre pais e filhos, entre trabalhadores e patrões, entre pobres e ricos... Se esses resultados não se verificam, é porque verdadeiramente o autêntico espírito cristão ainda não está inserido no ambiente.
A espiral da violência tem origem na desigualdade e na diversidade de oportunidades que são ou não são dadas às pessoas. Mas não é através do ódio, da vingança e da guerra que os focos de desigualdade são apagados. Em todo o caso, não há relação humana que não possa ser melhorada. Porém, nunca serão as teorias e as ideologias, mesmo as de cariz cristão, a modificar seja o que for. Se a teoria não se «corporizar», por assim dizer, na prática quotidiana, não passará disso mesmo: teoria. A espiral da violência só pode ser vencida pela corrente ininterrupta do amor, mas do amor cristão, que é capaz de amar até o próprio inimigo. Só esta capacidade de perdoar e de aceitar os outros poderá levar à construção duma comunidade aceitável a nível nacional e internacional.
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Setenta vezes sete
A posição de Jesus quanto a este assunto não deixa margem para dúvidas. Ele ensinou a amar os próprios inimigos, a orar pelos perseguidores e pelos que nos fazem mal, para sermos filhos do Pai que está nos céus, o qual faz surgir o sol sobre os bons e sobre os maus e chover sobre os justos e os pecadores (cf. Mt 5,44-45).
No Pai-Nosso, Ele ensinou assim: «Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos aos que nos tem ofendido». S. Pedro conclui que não é suficiente a medida do perdão do judaísmo e então avança com o número sete, que era mais do que o dobro do que estava indicado na tradição. E, além do mais, era também um número simbólico da perfeição. Pois bem, Jesus aproveita-se do simbolismo do número, fazendo uma operação matemática muito simples (multiplicar setenta por sete) que, segundo a mentalidade daquele tempo, indicava plenitude. É preciso, portanto, perdoar não só sete vezes, mas sempre...
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Perdão... só desinteressado
A parábola contada por Jesus para ilustrar o princípio de que é preciso perdoar sempre é uma descrição adequada também para o perdão sem limites nem condições. Além de ser preciso perdoar sempre, é preciso perdoar também sem condições preestabelecidas. O sentido da parábola é que Deus perdoa gratuitamente a quem lhe pede perdão; e sempre de forma desinteressada. Do mesmo modo, o perdão do homem para com o outro homem será tanto mais válido quanto mais for desinteressado, assemelhando-se ao perdão de Deus. É por isso que o perdão das ofensas e o amor aos inimigos estão entre as características mais palpáveis e ao mesmo tempo mais difíceis de pôr em prática da moral evangélica.
Em teoria, o princípio não parece deixar dúvidas, mas, no fundo, para ter efeito de testemunho, é necessário pô-lo em prática! No concreto, como acontece não raras vezes, quanto maiores são as exigências e mais alta a meta, mais pobre e mesquinha é a sua realização. Mas, seria uma injustiça não afirmar que, ao longo da história da Igreja, muitos cristãos tomaram a sério as palavras de Jesus sobre o perdão e o amor aos inimigos. Todavia, é também legítimo perguntar quanto tem influenciado a doutrina evangélica do perdão o comportamento prático de tantos outros cristãos.
De qualquer forma, é de justiça constatar também que se, nos dias de hoje, se fala tanto de paz, desarmamento, solução pacífica das controvérsias e conflitos internacionais, de ajuda aos povos pobres ou incorrectamente chamados em vias de desenvolvimento, isso deve-se, implícita ou até explicitamente, pelo menos em parte, à maturação na sociedade desses ideais herdados do cristianismo...