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XIV DOMINGO COMUM - A 1ª leitura (Zc 9,9-10): Exulta de alegria, filha de Sião! Solta gritos de júbilo, filha de Jerusalém! Eis que o teu rei vem a ti. Ele chega triunfante e vitorioso, mas ao mesmo tempo humilde e montado num jumento. Ele fará desaparecer os carros de guerra da terra de Efraim e os cavalos de Jerusalém. Os arcos de guerra serão quebrados. O vosso rei vai proclamar a paz entre as nações. O seu domínio irá de um mar ao outro e do rio (Eufrates) até às extremidades da terra.
Os estudiosos dividem o Livro de Zacarias em duas partes distintas: cc 1-8 e cc 9-14. O texto deste domingo pertence à segunda parte (9,1-14,21) e o seu contexto histórico terá a ver com o período em que o reino de Alexandre Magno já se tinha espalhado em todo o lado(332-300 a.C.). Estamos, por isso, já sob a influência da cultura grega, que, como a dos outros «conquistadores», procura eliminar tudo quanto não se adapte às correntes de pensamento próprias do helenismo. Nesta perspetiva, a influência manifesta-se naturalmente no aspeto de organização social e política, mas também em aspetos tão sensíveis como as tradições e sobretudo a religião. A comunidade de extração judaica, sob tão forte pressão externa, que põe em causa a própria identidade nacional, não tem força suficiente para se opor e, como consequência, é levada a não ter confiança em si mesma. É então que alguém - precisamente o profeta Zacarias - lhes vem recordar que, não obstante as aparências, aquele que vem montado num jumento é precisamente o rei capaz de «dominar» até às extremidades da terra, fazendo prevalecer, porém, condições em que desapareçam os carros de guerra e em que os arcos sejam quebrados.
PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.
Os especialistas da Lei (de Moisés) tinham-na complicado de tal modo, com as suas muitas interpretações abusivas, que, na prática, era impossível, até aos mais bem intencionados, saber sequer quando estava a agir de acordo com ela ou não. Se me recordo, li algures que, só no capítulo das proibições, do «código» elaborado por esses peritos, constavam nada mais nada menos que 365 «artigos», o que equivale, digamos assim, a uma proibição para cada dia. Talvez seja também por causa disso que S. Paulo - que, por sinal, era também um «especialista» nessa matéria - desconfia tanto da eficácia da Lei (como era ensinada no seu tempo) e, ao contrário, propõe como meio para a salvação a fé no poder de Jesus. Ao morrer por nós, Ele assume a morte a que a Lei nos condenava. E assim, finalmente, livres da opressão da Lei e guiados pela força do Espírito de Jesus, recebemos o poder e a capacidade de viver de verdade, se «fizermos morrer as obras do corpo». A carne e o espírito são antagónicos, pelo que se excluem mutuamente e, por isso, se quisermos ser salvos pelo Espírito, teremos que renunciar ao ritos e às exigências impostos pela Lei, pelo mundo e pela carne.
PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.
Estou convencido que a ideia mais importante subjacente a este trecho evangélico é, sem dúvida, a de que o Reino de Deus não se compreende graças à sabedoria humana, mas sim por intermédio do coração, da interioridade; da revelação, se quisermos. Há coisas na vida - eu diria, as mais importantes - que não se regem pela lógica humana, porque a ultrapassam. Já lá dizia o pensador Blaise Pascal, que «o coração tem razões que a razão desconhece». Ora bem, para compreender os mistérios de Deus, os pequeninos (no caso, parece que se trata dos discípulos de Jesus, sem, porém, excluir também todos os outros simples), dispõem dum coração aberto e sem subterfúgios que tem vantagem sobre os que, baseando-se na sua inteligência, julgam que tudo podem compreender. Como resultado, eles concluem, na sua autossuficiência, que o que está para além da sua capacidade de compreensão não tem razão de ser. Ora, a verdade é que os mais simples têm essa grande capacidade de entender e aceitar que há muita coisa humanamente falando que não conseguem compreender e, por maioria de razão, tantas coisas que escapam ao controlo da inteligência humana. E isso é mais que evidente no que se refere ao conhecimento de Deus. Pelo que o mesmo Jesus afirma que «ninguém conhece o Filho senão o Pai e ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar».
PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. |
* Eis que vem a ti o teu rei humilde.
* Se fazeis morrer as obras do corpo, vivereis.
* Eu sou manso e humilde de coração. |
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VINDE A MIM E EU VOS ALIVIAREI. |
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Os paradoxos de Deus
Em alguns aspetos, as leituras de hoje assemelham-se a uma espécie de «concentrado» de afirmações paradoxais ou mesmo contraditórias (segundo parâmetros humanos). No caso da primeira leitura, por exemplo, o rei messiânico, cujo domínio se estenderá de mar a mar e do rio até à extremidade da terra, é apresentado numa atitude de total mansidão e como um rei indefeso, cavalgando em jumento e não em fogoso ginete de guerra. E, no entanto, o seu domínio irá de mar a mar e até às extremidades da terra.
A vinda do Messias não se parece nada com a cena fulgurante do triunfal regresso dum rei guerreiro e vitorioso, atrás do qual se arrasta vagarosa a coluna de prisioneiros completamente derrotados. Não. O Messias é um rei pacífico que dispensa todos os símbolos e instrumentos de guerra. A sua pessoa e o seu programa, digamos assim, lembram sobretudo a figura do «Servo de Javé» (cf. profeta Isaías). É o paradoxo dum rei humilde e, todavia, «dominador» do mundo inteiro. É um rei que é identificado pelos cristãos com Jesus e que, no entanto, no Dia de Ramos, faz o seu ingresso «triunfal» em Jerusalém cavalgando um humilde jumento.
Igualmente paradoxais são as afirmações do Evangelho. À semelhança do que acontece no chamado Sermão da Montanha, em que os pobres, os humildes e os perseguidos são considerados felizes, assim também nesta passagem, são os humildes, os ignorantes, os oprimidos e os marginalizados aqueles a quem Deus revela os segredos do seu Reino.
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Os paradoxos dos homens
Ao contrário, nós, que talvez não sejamos ninguém de relevo (e muito menos «messias salvadores»), todavia, julgamo-nos sempre pessoas muito importantes e, acima de tudo, achamos que o ser importante e ter influência é a condição para vencer as dificuldades. Mais, pensamos que resolvemos todas as disputas recorrendo à sobranceria e à violência. Melhor ainda, julgamo-nos sempre mais fortes e inteligentes que os outros, chegando a pensar até que temos nas mãos os destinos de toda a gente.
É certo que muitos dos discursos das pessoas que se julgam importantes, pelo menos na aparência, dão a impressão de não falar senão de paz e de concórdia, de concertação de opiniões e de consenso, de negociações e de pactos. E, não obstante, experimentemos ler nem que sejam apenas os títulos da crónica de um dia qualquer do ano: atentado no Iraque num bairro populoso; ETA espalha o terror na cidade de Madrid; milhares de refugiados morrem de fome no Darfur; um doido, roído de ciúmes, mata a mulher e ateia incêndio à própria casa; as grandes potências não cedem na questão nuclear; novo surto de bombas e mortes no Afeganistão; tentativa de extermínio selvagem dum povo; atentado terrorista em Nova Iorque, em Madrid ou no Médio Oriente... E a lista poderia continuar por muito tempo.
Em cada um de nós, está sempre latente e, por vezes, prevalece, a lei da violência ou, como se costuma dizer, a lei da selva; que é, no fundo, a lei da exploração sem escrúpulos e da apetência desenfreada pelo poder e pela riqueza, que se sobrepõem a quaisquer outros valores e princípios éticos e humanos. E não vale a pena querer enganar-nos a nós próprios, afirmando que isso são coisas que acontecem com os outros. O que é que fazemos nós no nosso meio, na nossa família, no nosso emprego, no nosso dia a dia?
Os nossos instintos para o mal têm tendências inconfessáveis de predomínio e de guerra. Quem é instruído ou, melhor, quem tem um degrau académico (o que nem sempre quer dizer necessariamente que saiba mais e muito menos que seja mais sábio) pensa que vale mais que os outros, porque pensa que a importância duma pessoa depende do número de livros que leu ou, melhor dizendo, dos livros que tem na biblioteca. Quem, por qualquer motivo, detém o poder, pensa que o poder está ao serviço dos seus próprios interesses... Isto apesar de declarar alto e bom som que a sua maior preocupação é servir a nação ou a comunidade.
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Sugestões da Palavra de Deus
Jesus, na sua «qualidade» de Deus, poderia impor à força, digamos assim, a sua lei a todo o mundo (não é Ele o Rei do Universo?), mas eis a novidade: o Senhor anuncia a paz e a bondade, ao contrário dos detentores do poder que só estão bem a declarar e a fazer a guerra; por outro lado, o poder do Messias é simbolizado por um humilde jumento, não por mísseis ou pelo troar dos canhões e por ogivas nucleares (como parece óbvio, os mísseis e os canhões e as ogivas nucleares, neste caso, são apenas símbolos).
S. Paulo virá dizer-nos, logo ao início da sua priemira Carta aos Coríntios, que Deus escolhe as coisas humildes e as pessoas fracas para confundir os poderosos e para fazer calar os que se consideram sábios (cf. 1Cor 1,27-28). Rigorosamente, estas ideias não são exclusivas de Paulo, porque se encontram no cântico de acção de graças que Maria entoa aquando da visita que faz à sua prima Isabel (cf. Lc 1,46-55). Por sua vez, as palavras pronunciadas por Maria encontram-se disseminadas por várias páginas do Antigo Testamento.
Aliás, todos sabemos que Jesus chama felizes aos pobres, aos mansos, aos humildes e aos perseguidos. E isso não se pode rasgar do Evangelho. Este escreve assim a crónica da nossa vida, afirmando que os contrastes e os conflitos se resolvem com a mansidão e que os pobres não são para serem esmagados, mas sim ouvidos e ajudados.
Em última análise, segundo a óptica do Evangelho, nem a violência de qualquer tipo nem o poder político «conquistam» o mundo e os homens de maneira convincente e muito menos de maneira definitiva, mas só lhe acrescentam a vertente do terror. Dito de outra maneira, se quisermos, a violência e o poder político podem vencer os outros, mas não os convencem necessariamente. É que, como se compreende facilmente, vencer e convencer não são exatamente o mesmo. A violência e o poder político não tocam os corações, mas fecham-nos num ódio cada vez mais feroz.
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As leis do Reino de Deus
Sabemos que Deus se revela a todos. Mas os que se julgam a si mesmos sábios tornam, com frequência, ineficaz e vã a revelação de Deus. Aqueles que são tratados por inteligentes e sábios no tempo de Jesus são os escribas, os fariseus, os conhecedores e entendidos da Lei e os hábeis manipuladores da tradição. Arrogando-se o exclusivo do conhecimento da Lei, facilmente se tornavam opressores, carregando aos ombros fracos dos pobres e dos ignorantes «pesos insuportáveis que eles nem com um dedo levantavam» (cf. Lc 11,46).
Jesus, ao contrário, chama a si os que estão cansados e oprimidos. O seu jugo é suave e o seu fardo é leve (cf. Mt 11,30). Todavia, esse jugo e essa carga não são leves pelo facto de Ele não ser exigente, como se a sua moralidade fosse uma moralidade de permissividade, mas sim porque é Ele torna leve o peso com a sua solidariedade e concreta participação. Com efeito, Ele é o primeiro dos pobres (que não tinha sequer uma pedra onde reclinar a cabeça), o primeiro dos simples, o primeiro dos mansos de coração.
A lei do Reino de Deus é a lei do mais pequeno, do mais pobre, do mais necessitado. Deus escolhe os humildes e dá-se a conhecer aos ignorantes. A lei do Reino de Deus é como a lei do pequenino grão de mostarda, que é a mais pequena das sementes dos produtos hortícolas, mas que acaba por se tornar um arbusto imponente (cf. Mt 13,32).
É isso que Paulo faz notar aos seus cristãos de Corinto, como que doentes de megalomania, desejosos de dons e carismas que dessem claramente nas vistas, grandes apreciadores da sabedoria do mundo. Com efeito, Paulo escreve: «Deus escolheu o que é louco para confundir os sábios. Deus escolheu o que no mundo é ignóbil e fraco para confundir os fortes. Deus escolheu o que no mundo é desprezado e o que é tido por nada para reduzir a nada as coisas que são, para que nenhum homem se possa gloriar diante de Deus» (1Cor 1,27-29).
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... Todavia, não haja dúvidas
No entanto, não há que confundir ou identificar necessariamente a pobreza sociológica com a situação descrita por Jesus no Evangelho; como se ser pobre e oprimido em termos meramente materiais e formais correspondesse por si mesmo e de forma automática a ser filho do Reino de Deus. O que me parece que Jesus quis dizer é que a riqueza, a sabedoria e a grandeza, «segundo a óptica do mundo», podem, isso sim, constituir grave obstáculo ao ingresso no Reino de Deus, na medida em que denotam segurança e confiança apenas nas próprias forças, numa atitude de auto-suficiência, que Jesus sempre condenou aos «grandes» do seu tempo e que está na base da recusa do Reino por parte deles.
Certamente Jesus quis dizer que os pobres, os últimos e os humildes estão nas condições ideais para acolher a sua mensagem de libertação total, mas também eles têm igualmente necessidade de passar através dum novo processo de mentalização (conversão) para viver as exigências do Reino.
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Disponibilidade para a esperança
A capacidade de acolher a mensagem evangélica em todas as suas consequências passa por uma certa liberdade que deriva da «não-possessão», embora o não-possuir, de per si, não origine, como que por geração espontânea, uma consciência evangélica. Só quer dizer que os pobres podem ter as condições (que faltam aos ricos) de poder viver o Evangelho, porque estão disponíveis para a esperança.
Mas também eles não o viverão se não tomarem consciência, através de opções e escolhas renovadas todos os dias, de que são filhos de Deus, não quando possuem mais, mas quando são solidários com os outros homens e entendem a vida como um construir na esperança de algo que já começou e está a progredir, mas que não será plenamente alcançado no âmbito desta realidade presente.