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1ª leitura (Ex 19,2-6a):  (De Refidim), os hebreus chegaram ao deserto do Sinai e acamparam no sopé da montanha. Então Moisés subiu até ao cimo do monte para se encontrar com Deus. Da montanha o Senhor chamou-o dizendo: «Dirás à casa de Jacob e anunciarás aos filhos de Israel o seguinte: "Vós vistes o que Eu fiz ao Egito e como vos carreguei sobre asas de águia e vos trouxe até mim". Agora, se escutardes bem a minha voz e guardardes a minha aliança, sereis para mim a minha propriedade particular entre todos os povos. É minha a terra inteira, mas vós sereis para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa».


* Sois para mim uma propriedade particular.

O livro do Êxodo, como o nome quer dizer, trata fundamentalmente da saída ou libertação do povo hebreu da escravidão no Egito. Mas essa libertação não se exaure no exato momento em que os hebreus conseguem escapar à perseguição dos egípcios. Mas essas datas de mudança radical são dignas de ser assinaladas, mas não são mais do que o ponto de partida de um processo «revolucionário» que inclui etapas ulteriores, destinadas a consolidar as conquistas feitas e a fortalecer o novo regime que depois se vai instaurar. A essas datas de exaltação vão seguir-se outras de menos fervor. É por isso que é necessário, por exemplo, repensar, rever, atualizar e modificar a «Constituição». É esse, se assim se pode dizer, o facto a que se faz referência neste texto do livro do Êxodo, nomeadamente no que diz respeito à aliança que Deus faz com o seu povo. Ele compromete-se, por assim dizer, a aceitar o povo como propriedade privada. Mas esse acontecimento está sujeito a uma condição: escutar a voz de Deus e a guardar a aliança estabelecida. Dito doutra maneira, o «processo revolucionário» posto em movimento por iniciativa de alguém não tem consequências automáticas; é preciso atuá-lo no concreto do dia a dia. Isso é verdade a nível político e social e é também verdade a nível religioso e comportamental. O grande erro dos hebreus daquele tempo - e também o grande erro de todos os tempos - é pensar que as coisas acontecem sem nós termos que fazer nada para isso. Utilizando as imagens do texto, nós somos propriedade particular do Senhor, mas também temos que nos esforçar por ser uma nação santa.

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2ª leitura (Rm 5,6-11):  Quando ainda estávamos fracos, Cristo morreu pelos pecadores no tempo estabelecido por Deus. É difícil que alguém morra por um justo. Quem sabe, por uma pessoa boa talvez alguém se atreva a morrer. Mas Deus demonstrou-nos o seu amor pelo facto de Cristo ter morrido por nós quando ainda éramos pecadores. E agora, que fomos justificados pelo seu sangue, com muito mais razão havemos de ser salvos da ira, por meio dele. Se, de facto, quando éramos inimigos de Deus, fomos reconciliados com Ele pela morte do seu Filho, com muito mais razão, uma vez reconciliados, seremos salvos pela sua vida. Mais ainda, alegramo-nos pelo que Deus fez em Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual agora somos amigos de Deus.

 

* Jesus morreu por nós quando ainda éramos pecadores.

Não sei bem em que circunstâncias terá Paulo pronunciado estas palavras, mas de certeza que elas revelam um júbilo e uma paz de espírito capazes de levar a um otimismo contagiante. Depois de insistir em que a nossa salvação assenta, não propriamente nas obras da Lei, mas sim no poder de Deus e na fé em Jesus Cristo, Paulo solta um grito de alegria, porque no centro da salvação está o amor incondicional de Deus, que tudo vence. O amor abundante e totalmente gratuito, de que só Deus é capaz, manifesta-se na entrega voluntária de Jesus que aceita a morte, mesmo sabendo que nós éramos pecadores, «inimigos». Esta é uma passagem da Carta aos Romanos em que o sacrifício de Cristo se contrapõe claramente à convicção que, por vezes (não se sabe porquê) nos inibe de pensar que a benevolência de Deus em relação a nós seja gratuita e desinteressada. Mas, se partirmos do suposto que Deus não precisa de nós para nada - como, de facto não precisa - então torna-se mais fácil admitir que, se Ele se interessa pessoalmente por nós - e interessa-se - é porque quer que esse seu interesse produza efeito na nossa vida. A reação mais espontânea então deveria ser a do agradecimento pelo facto de Deus nos ter salvo pela vida do seu Filho, Jesus Cristo, e pelo facto de nos considerar seus amigos. Pensando bem, é realmente algo de extraordinário e inaudito que Deus queira ser nosso amigo e tudo faça - incluindo a aceitação da morte de Jesus Cristo - para que esse laço seja estabelecido de maneira definitiva.

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Evangelho (Mt 9,36-10,8):  Ao ver a multidão, encheu-se de compaixão por ela, pois estava cansada e abatida. Eram como ovelhas sem pastor. Disse então aos seus discípulos: «A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos. Pedi, pois, ao Senhor da messe que mande trabalhadores para a sua messe». Depois Jesus chamou a si os doze discípulos e deu-lhes o poder de expulsar os espíritos malignos e de curar todas as enfermidades e doenças. Os nomes dos doze Apóstolos são estes: antes de mais, Simão, também chamado Pedro, e André, seu irmão; Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão; Filipe e Bartolomeu; Tomé e Mateus, o cobrador de impostos; Tiago, filho de Alfeu, e Tadeu; Simão, o zelota, e, finalmente,  Judas Iscariotes, que o traiu. Jesus enviou estes doze com as seguintes instruções: «Não sigais pelo caminho dos gentios nem entreis em cidades de samaritanos. Ide antes às ovelhas perdidas da casa de Israel e, pelo caminho, proclamai que o Reino do Céu está próximo. Curai os enfermos, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos e expulsai os demónios. Recebestes de graça, dai de graça».

 

* Recebestes de graça, dai de graça.

Não é nenhuma novidade se disser que o trecho evangélico trata fundamentalmente do chamamento e da constituição do primeiro grupo de doze apóstolos. Mas talvez seja uma novidade o facto de o seu envio ser gratuito, portanto sem intenção de obter lucros e proveito próprio. E é caso para nos perguntarmos, a esse respeito, se a falta de «sucesso» na missionação não se deve ao facto de, por vezes, os enviados se deixarem enredar precisamente pela preocupação do lucro ou pelo menos do sucesso próprio. A esse propósito, já S. Paulo, «polemizando» com alguns judeus que o criticavam por não acharem que ele tinha autoridade suficiente, dizia que para si evangelizar não era motivo de glória, mas algo que ele sentia como necessidade e obrigação; e tanto é assim que chegou mesmo a resumir o seu pensamento afirmando: «ai de mim se não evangelizar (cf. 1Cor 9,16). Em todo o caso, fica sempre de pé o dever de, pelo caminho, proclamar que o Reino de Deus está próximo. Embora não seja muito claro o sentido desta expressão, estou convencido de que a mensagem essencial do nosso anúncio é a de que Deus ama o homem, o convida à fé e à sua amizade e que faz dele seu filho através de Jesus Cristo. A fé proposta pela pregação não se deve limitar, pois, à simples proposta de um tesouro de verdades - embora importantes - mas sim à proposta da possibilidade que o Espírito de Deus tem de se meter na nossa vida, digamos assim, para a modificar a partir de dentro. Essa mudança interior terá efeitos no comportamento exterior, que se manifestará na cura dos enfermos, na ressurreição dos mortos, na purificação dos leprosos e na expulsão dos demónios.

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 

q   Sois para mim uma propriedade particular.

 

qJesus morreu  por nós quando ainda éramos pecadores.

 

qRecebestes de graça, dai de graça.

PROCLAMAI

QUE

O REINO

DE DEUS

ESTÁ

PRÓXIMO.

    Uma parte dos comentários que se seguem são a tradução, adaptação e resumo dum texto de Settimio Cipriani (Convocati dalla Parola) que acho interessante. O resto e os subtítulos são da minha responsabilidade. Como no domingo anterior, o tema fundamental pode identificar-se com a forma gratuita como Deus chama o seu povo (o antigo e o novo) e como este deve corresponder a essa iniciativa de Deus e levar o conhecimento desse desígnio a todos os povos.

A aliança é recíproca

     «O relacionamento de Deus com o seu povo, precisamente na medida em que se trata de um relacionamento de amor, exige uma resposta de amor e fidelidade. Sempre que esta resposta não é dada, então também o empenho de Deus não pode "surtir efeito". É desta forma que se explica o facto de o povo eleito ter falhado; o que com tanto sofrimento é referido por Paulo nos capítulos 9 a 11 da sua Carta aos Romanos».

    «Mas eu acrescentaria também que "decai o empenho" de Deus para com a Igreja, que é o novo povo de Deus, quando ela é infiel às exigências da nova aliança. É isso que recorda S. Paulo aos cristãos de Roma, que podiam deixar-se tentar por uma subtil auto-satisfação de certeza espiritual ao sentir que tinham sido escolhidos a suceder ao antigo Israel: "Não sejas soberbo, mas toma cuidado. Se Deus não poupou os ramos naturais, também não te poupará a ti. Portanto, olha bem para a bondade e severidade de Deus: severidade para os que caíram e bondade para contigo, desde que permaneças fiel à sua bondade. De contrário, também tu serás cortado" (Rm 11,20-22)».

    «A única certeza é que Deus levará avante à mesma o seu plano de salvação, talvez com outra gente, disposta a colaborar com o seu amor. Ou seja, a Igreja existirá sempre, mas as Igrejas, além dos cristãos individualmente, podem falhar, como, de resto, a história tem demonstrado de maneira ampla e dramática. A dramática experiência de Israel deveria ser tomada mais a sério como "paradigmática" pela Igreja enquanto tal...».

Um povo de sacerdotes

    Não gostaria, porém, que ficasse uma ideia demasiado sombria da realidade dum povo que deve estar sempre atento para não cair, mas que também pode corresponder àquilo que é o desígnio salvífico de Deus. Ou seja, não deve prevalecer a ideia - que é sempre errada - de que Deus só está à espera que o seu povo se desvie para o castigar e para o descartar. Até no caso em que pontualmente (como se diz agora) haja «traições», Deus é sempre fiel e tudo faz para reaver a parte da sua herança.

    Essa ideia e essa realidade são bem expressas pela imagem que é utilizada pelo autor da primeira leitura quando imagina o povo de Deus como um povo de sacerdotes. Entre os outros povos, portanto, o povo de Israel (e também o novo povo) tem um estatuto especial, digamos assim: se é verdade que todos os povos pertencem a Deus, a verdade é que só a tribo dos sacerdotes tinha o poder de se aproximar de Deus. A imagem é bonita e descreve a forma como Deus, gratuitamente, trata o povo por Ele escolhido.

    «O sacerdócio está intimamente ligado à ideia de culto e celebração litúrgica. Por isso, Israel, precisamente enquanto povo ("um reino de sacerdotes") tem um destino "litúrgico" de exaltação de todas as maravilhas de Deus na criação e na história, não só em relação a si mesmo, mas também em relação aos outros povos... Israel é, pois, uma "nação santa" em duplo sentido. Antes de mais, porque está, de modo particular, "consagrado" ao Senhor: "Tu és, de facto, um povo consagrado ao Senhor teu Deus; o Senhor teu Deus escolheu-te para seres o seu povo privilegiado entre todos os povos que há na terra" (Dt 7,6). Em segundo lugar, porque deve realizar uma específica santidade de vida...».

    «... Quando os primeiros cristãos tomaram consciência de que eram os membros da "nova aliança" selada no sangue de Cristo (cf. Lc 22,20), então também se deram conta de que o desígnio de Deus não era interrompido com a recusa do Evangelho por parte de Israel, mas continuava neles, que se sentiam como o novo povo de Deus, constituído agora já por todas as nações, todas as línguas e todas as raças».

Cristianismo é missão

    Das características específicas de «povo sacerdotal», que a Igreja herdou do Israel antigo, decorre a sua vocação e obrigação de partir e ir dizer a todos que, «mesmo sendo inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte do seu filho», como diz Paulo na segunda leitura. É este, resto, o pensamento central (penso eu) do trecho evangélico, que abre, por assim dizer, o discurso apostólico de Jesus. A imagem das ovelhas sem pastor e da seara sem trabalhadores é mais que evidente a esse respeito.

    E mesmo que, por hipótese, subsistissem algumas dúvidas, as «instruções» de Jesus são peremptórias: Ide e proclamai que está perto o reino dos céus. E acrescenta que os seus discípulos devem curar os enfermos, ressuscitar os mortos, sarar os leprosos e expulsar os demónios. São estes os sinais de que a «nova ordem» está em ato. Mas há mais uma nota a não omitir. Jesus diz taxativamente aos discípulos: «Recebeste de graça, dai de graça». O serviço dos discípulos é gratuito, como o é a salvação oferecida por Deus. Mal de nós quando a missão da Igreja se caracterizar pela ambição do lucro e do sucesso.

    A este propósito, seja-me consentido citar aqui palavras muito acertadas de B. Cabalhero (A Palavra de Cada Domingo): «O Evangelho, ou seja, a Boa Nova da salvação de Deus para o homem, não se taxa nem se vende. Se não fosse assim, há muito tempo que o Evangelho teria sido domesticado e convertido em monopólio dos ricos, em poder, cultura, influências, prestígio, dinheiro e tecnologia. E, desse modo, os pobres ficariam dele excluídos, quando foram eles, precisamente, os destinatários da mensagem de Cristo».

Ovelhas sem pastor

    Seja como for, a mensagem de Jesus Cristo tem que ser passada a todos, mas de forma organizada, para que todos sejam um só rebanho sob a guia dum só pastor. «Não há povo verdadeiro a não ser onde cada um tenha o seu papel específico a desempenhar e onde cada um esteja aberto aos outros e disposto a reconhecer as tarefas confiadas por Deus a cada um. Na Igreja que só Deus pode convocar em Cristo, só Ele pode confiar tarefas e serviços, sobretudo os de guia e vigilância. Neste sentido, a Igreja não pode ser senão "teocêntrica" no sentido mais verdadeiro e profundo do termo: só Deus, por meio de Cristo, é o seu Senhor».

    «Jesus, vendo as multidões, sentiu compaixão, pois eram como ovelhas sem pastor... A messe é grande, mas os operários são poucos... Há aqui duas imagens que se sobrepõem: a das ovelhas que não têm pastor; e a da messe abundante sem suficientes trabalhadores. O resultado é, de forma dramática, igual: o risco de que as ovelhas morram cansadas ou devoradas pelos lobos, se não intervêm em tempo oportuno os pastores a guiá-las e a protegê-las dos animais vorazes; e o risco que a messe, já pronta para a ceifa, apodreça nos campos e não sirva para ninguém».

    «Jesus traça o perfil, de maneira dramática, e a necessidade que sente de "colaboradores" para a sua missão de salvação. Essa deve estender-se a todos os homens de todos os tempos, de todos os lugares, de todas as culturas, de todas as raças. Só o dono da messe, que é o Pai celeste, tem o poder de enviar os operários que quer, na condição, porém, que as pessoas lho peçam (cf. v. 38)... Ninguém se pode auto-investir como pastor e nem sequer o rebanho pode escolher o seu próprio pastor. Só pode pedi-lo».

O cristão, alma do mundo

    Se é certo que ninguém se pode arrogar o direito de ser pastor do rebanho do Senhor, não deixa de ser verdade também que a tarefa de levar o nome e a mensagem de Jesus aos outros é confiada a todos aqueles que acreditam realmente nele. Quem acredita nele, o leva a sério e gosta dele, naturalmente tem que falar dele. Por isso é que se costuma dizer que a Igreja, no seu conjunto, é missionária. Todos os cristãos, justificados por Cristo (segunda leitura) são chamados a colaborar na tarefa de construir o Reino.

    O cristão é o sinal que deve resplandecer, com a sua vida, aos olhos de todos, para que a figura de Cristo fique bem delineada. Cada cristão é «mandado» a repetir a Palavra ouvida, meditada e vivida. Cada cristão, de alguma forma, é «responsável» para que essa Palavra não perca o sal que dá gosto à vida e para que seja a luz que mostre claramente o caminho que leva à verdadeira felicidade. Cada cristão - e nisso não é substituível por ninguém - deve levar ao ambiente em que vive e opera aquela luz e calor que o próprio Cristo trouxe ao mundo.