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1ª leitura (Os 6,3b-6): Esforcemo-nos por conhecer o Senhor. A sua vinda está iminente como a aurora. A sua vinda é tão certa como a chuva, como a chuva da Primavera que irriga a terra. (Mas o Senhor diz): Israel e Judá, o que é que vou fazer convosco? O vosso amor por mim desaparece como a neblina da manhã, como o orvalho matutino que logo se dissipa. Por isso vos mandei profetas com mensagens de julgamento e vos transmiti palavras de morte e destruição. O que Eu quero de vós é muito simples: Eu quero o vosso amor e não os sacrifícios; prefiro o conhecimento de Deus aos holocaustos.


* Eu quero o vosso amor e não os sacrifícios. Para entender melhor este trecho, é conveniente saber que Oseias é um profeta que faz uso da sua experiência pessoal para chamar a atenção do povo para a necessidade de ser fiel a Javé. Oseias viu-se obrigado a viver matrimonialmente com alguém que lhe era infiel. O profeta aproveita essa circunstância não só para atrair a si a esposa infiel, mas também e sobretudo para, com esse exemplo, transmitir esta mensagem: Deus está sempre disposto a aceitar de volta a Israel que Lhe é constantemente infiel. O profeta insiste, pois, em que é preciso mudar o coração. Mas, para isso, é preciso muito mais do que simples ritos e gestos externos. Os sacerdotes desse tempo procuravam manipular a religiosidade popular através de sacrifícios e holocaustos, julgando que estes bastavam para reatar os laços e o relacionamento entre Deus e o povo. Mas Oseias fustiga o culto vazio e hipócritas dos que se julgam em ordem com Deus só por porem em prática certos ritos, enquanto se esquecem da justiça e do amor. Muito mais importante que oferecer sacrifícios e holocaustos, é conhecer de verdade o Senhor e dedicar-lhe uma vida de amor. Esta é uma mensagem que continua actual, porque também hoje se corre o risco de pensar que basta um rito ou um gesto externo qualquer para ficar em paz com a consciência.

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2ª leitura (Rm 4,18-25):  Abraão acreditou e esperou contra toda a esperança e, por isso mesmo, tornou-se pai de muitos povos, como lhe tinha sido dito: «A tua descendência será como as estrelas». Sim, ele não vacilou na fé, mesmo vendo como que o seu corpo já sem vida (tinha quase cem anos) e não obstante o seio de Sara estivesse também já sem vida. A sua fé não desfaleceu e não duvidou da promessa de Deus. Antes pelo contrário, tornou-se ainda mais forte na fé e deu glória a Deus, plenamente convencido de que Ele tinha poder para realizar o que tinha prometido. Foi exactamente por causa da sua fé que Deus o considerou como justo. E isto não é só por causa dele, mas também por causa de nós, pois também seremos considerados justos se acreditarmos naquele que ressuscitou dos mortos Jesus, Senhor nosso...

* Diante da promessa de Deus, Abraão não duvidou. A religião que agrada a Deus radica numa fé profunda e madura, cujo modelo é Abraão (= pai duma multidão). Paulo dá uma importância muito grande à fé e, de alguma forma, propõe Abraão como protótipo dessa fé, na medida em que ele esperou nas promessas do Senhor contra toda a esperança. A religiosidade autêntica radica numa fé profunda e madura como a de Abraão. Essa fé realiza-se numa abertura incondicional ao mistério de Deus, que fica bem expressa na maneira como Abraão responde ao convite que lhe é feito: «Deixa a tua terra, a tua família e a casa do teu pai e vai para a terra que Eu te indicar» (cf. Gn 12,1). E - diz a Bíblia - Abraão partiu confiando somente na palavra de Deus e na sua protecção. No caso de Abraão, «a fé é garantia das coisas que se esperam e certeza daquelas que não se vêem» (Hb 11,1).

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Evangelho (Mt 9,9-13):  Jesus deixou aquele lugar e, ao passar, viu um homem chamado Mateus sentado no posto de cobranças e disse-lhe: «Segue-me!». Ele levantou-se e seguiu-o. Ora, estando Jesus um dia à mesa em casa de Mateus, muitos cobradores de impostos e outros pecadores vieram e sentaram-se com Ele e com os seus discípulos. Ao reparar nisso, os fariseus diziam aos discípulos: «Por que é que o vosso Mestre come com pessoas destas?». Jesus ouviu-os e respondeu-lhes: «Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes. Ide, pois, aprender o que significa: "Prefiro a misericórdia ao sacrifício". Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores».

* Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes. O texto evangélico é curto, mas importante. Jesus como que «abençoa» a denúncia feita pelo profeta Oseias ao citá-la literalmente. Tudo acontece no contexto do chamamento do publicano Mateus e do banquete que se lhe seguiu. Mateus é considerado pelos seus compatriotas judeus um pecador público, na precisa medida em que é cobrador de impostos e, por isso, colaborador dos romanos. Mas isso não é impedimento para que Jesus o chame para fazer parte do seu grupo de amigos. É esse gesto provocatório que origina o descontentamento e a acusação por parte dos fariseus que se julgavam privilegiados e puros por cumprirem todos os ritos e não se misturarem com pecadores. Mas a resposta de Jesus não se faz esperar: não são os que têm saúde (no, caso, os fariseus que se julgam santos) que precisam de médico, mas sim os doentes. Quando pronuncia esta frase, Jesus não está a querer excluir ninguém, a não ser os que se auto-excluem. O mesmo há que acrescentar em relação à frase: «Não quero o sacrifício, mas a misericórdia». Seria um erro interpretar esta frase como o querer apresentar uma religião sem qualquer tipo de culto, mas sim que essa religião sem qualquer compromisso com a vida tem pouco ou nenhum valor. Não se trata, pois, de suprimir todo o culto litúrgico (que continua a ser legítimo), mas sim de dar à religião a sua autêntica dimensão, na medida em que deve contribuir para derrubar as barreiras que discriminam os mais fracos.

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. 

q  Eu quero o     vosso amor e não os sacrifícios.

q  Diante da  promessa de Deus, Abraão não duvidou.

q  Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes.

 

EU NÃO VIM CHAMAR OS JUSTOS, MAS SIM OS PECADORES


   Temos nos textos litúrgicos de hoje, nomeadamente na primeira leitura e na passagem evangélica, um estilo de linguagem que é necessário interpretar correctamente sob pena de trair o pensamento original dos autores. Quando, na Bíblia, se diz: «Não quero isto... mas sim aquilo», trata-se duma forma de expressão que indica simplesmente que a segunda proposição deve estar em primeiro lugar na «lista de prioridades» (sem com isso eliminar a primeira). Assim, a frase será mais clara e mais «fiel» se se traduzir com o verbo «preferir», (como já está corrigido no texto evangélico da «Nova Bíblia dos Capuchinhos»).


Misericórdia e não sacrifício

    Também neste subtítulo se aplica o que acabou de ser dito. Por isso, a sua interpretação correcta é: prefiro a misericórdia ao sacrifício. Isso significa que o «sacrifício» não está necessariamente fora de questão, mas sim que esse sem a misericórdia de pouco vale. Esta é uma frase que se repete tanto na primeira leitura como no trecho evangélico. E a mensagem parece-me relativamente simples: ninguém se pode julgar em ordem relativamente a Deus só porque cumpre certos ritos - incluindo mortificações e sacrifícios -, enquanto não se importa com a justiça e com a solidariedade e amor fraternos.

    Jesus, nesse capítulo, é ainda mais radical e anti-formalista, se assim se pode dizer: mais que a observância de formas rituais de culto, o que conta é sobretudo o amor ao próximo, mesmo quando ele se exerce em relação àqueles que estão longe de Deus. É o que quer dizer a frase: «Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes». Donde se pode concluir que, na mente de Jesus, é possível encontrar a Deus onde aparentemente não há sinal dele, embora isso nos possa parecer paradoxal.

    Um caso enigmático, se quisermos, é o próprio chamamento do evangelista S. Mateus a fim de fazer parte do grupo dos doze apóstolos, como é testemunhado pela passagem evangélica de hoje. Dizem os sinópticos (sem excluir o próprio Mateus) que se tratava dum publicano ou cobrador de impostos, sendo, pois, colaborador dos romanos. Ora, sabe-se que os publicanos eram tidos e classificados oficialmente como pecadores públicos pela ortodoxia judaica. Mas Jesus, apesar disso, não se importa com esse pormenor, ou melhor, faz mesmo questão de incluir Mateus no grupo dos seus amigos íntimos.

O amor e não o sacrifício

    Jesus põe a nu, sem margem para dúvidas, a suposta virtude dos fariseus, que se julgavam perfeitos e que, no fundo, traçavam uma linha divisória e discriminatória entre eles mesmos e o resto dos homens, que «eram adúlteros e incircuncisos». Ele desmascara sem dó nem piedade esta espécie de «justiça» ou integridade com expressões que soam quase a violência: «Vós pretendeis passar por justos perante os homens, mas Deus conhece os vossos corações. O que os homens têm por muito elevado é abominável aos olhos de Deus» (cf. Lc 16,15).

    O contexto da primeira leitura, tirada do capítulo 6 do livro de Oseias (que fala da falsa conversão), é também o da urgência da sinceridade e «transparência» diante de Deus. Vendo as coisas mal paradas - passe a expressão - as autoridades de Israel, na tentativa de obter os favores do Senhor, mandam organizar uma liturgia penitencial na expectativa de que Deus se comova diante de tão belos ritos e os livre magicamente dos problemas. A resposta de Deus é inequívoca: «Eu quero a misericórdia (o amor) e não os sacrifícios, o conhecimento de Deus mais que os holocaustos».

    No que nos toca, não deixemos que estas palavras de Oseias nos passem por cima como água em pena de pato. O amor de Deus exige de nós, mais que simples ritos e gestos externos, uma atitude de ternura, abandono e piedade, que são, no fundo, a expressão da submissão alegre à sua vontade na caridade para com o próximo.

Ele veio para os pecadores

    Diz o Messale dell'Assemblea Cristiana» (ed. de Turim), no comentário a este domingo, assim: «Há certas categorias de pessoas no Evangelho em relação às quais parece que Jesus tem uma verdadeira alergia, uma instintiva incompatibilidade de carácter: trata-se dos que se julgam "justos". Diante deles, Jesus quase se sente desarmado e inútil. Não pode entrar em diálogo com eles, porque eles sentem que "estão em ordem", não precisam de salvação nem de perdão. São pessoas áridas, incapazes de ir para além do estritamente estipulado. A sua religião é a do "do ut des" (dou para que tu me dês)».

    Estando de acordo com esta «diagnose», não gostaria de deixar de acentuar que, neste caso, não basta estar de acordo com a análise; como não basta condenar a atitude desses que se julgam justos. É preciso fazer um exercício que talvez se torne doloroso. E que é o de nos examinarmos no sentido de descobrirmos se também nós não caberemos nessa categoria. Ou seja, a pergunta é muito simples: não será que também nós nos consideramos do número dos bons, daqueles a quem ninguém tem nada a apontar e, por isso mesmo, não precisam da ajuda de ninguém, nem do próprio Cristo?

    Por outras palavras, nunca nos esqueçamos dum pormenor importante: as palavras que estão na Bíblia (e, mais concretamente ainda, no Evangelho) não são para as pessoas que viveram há dois mil ou mais anos. Essas já não precisam delas. As palavras da Bíblia são para nós, hoje. E por isso, quando lemos, por exemplo, a chamada Parábola do Filho Pródigo (que prefiro chamar Parábola dum Pai Misericordioso), exclusiva do Evangelho segundo S. Lucas (cf. Lc 15,11ss), não nos limitemos a condenar ou pelo menos a fazer um juízo de valor sobre o filho mais novo. Isso é muito fácil e deixa-nos apenas satisfeitos com o facto de termos detectado o «infractor». Agora, a coisa já se torna mais séria - e sobretudo mais comprometedora - se nos questionarmos se não somos também nós esse filho mais novo e, com maioria de razão, também o filho mais velho, que achava que tudo lhe era devido, porque tinha sempre sido cumpridor.

    Um retrato que também nos deve questionar seriamente é o apresentado pela Parábola do fariseu e do publicano (cf. Lc 18,9ss). É certo que o evangelista Lucas, que no-la conta, tem em mente, em primeiro lugar, os fariseus, mas dá-me a impressão que a forma como ele introduz a parábola vai mais além deles: «Disse também a seguinte parábola, a respeito de alguns que confiavam muito em si mesmo, tendo-se por justos e desprezando os demais». E a verdade é que, nesse número, podemos estar incluídos também nós.

Desarmados perante Deus

    O trecho evangélico deixa-nos também a ideia de que, perante Deus, o melhor é «deixar-se de peneiras» (perdoe-se-me a expressão). Mateus, apesar do seu estatuto de pecador público (que, segundo os preconceitos do seu tempo, não merecia sequer perdão), perante o convite de Jesus a segui-lo, larga a sua banca e não hesita um momento. Basta uma única palavra de Jesus para ele mudar por completo de vida e para lhe dar um sentido totalmente novo.

    É essa a pureza de coração e de intenção que é exigida não só de Mateus, mas também de qualquer outra pessoa. É inútil que tomemos a atitude de nos colocarmos diante de Deus com exigências, supostamente resultado dos nossos méritos e acções maravilhosas. É certo que as acções e os actos de culto não são de «descartar», mas não se pense que isso baste para nos salvar. Estou farto de dizer que, por mais méritos que possamos ter, nunca serão suficientes para «comprar» o reino de Deus.

    A atitude mais inteligente que se pode tomar, portanto, diante de Deus é apresentar-se nu e desarmado perante a sua palavra, inclusivamente sem projectos especiais e sem cálculos, mas confiando apenas nessa palavra e na misericórdia dum Deus que se fez homem, «não para chamar os justos, mas sim os pecadores».