Temas de fundo |
1ª leitura (Dt 11,18.25-28): Moisés falou ao povo assim: Gravai estes meus mandamentos no coração e no espírito. Atai-os aos braços como um símbolo e usai-os nas vossas frontes como lembrança. Para onde quer que vades, o Senhor vosso Deus fará com que as pessoas vos temam, como prometeu. E ninguém será capaz de vos resistir. Hoje, dou-vos a escolher entre a bênção e a maldição: a bênção, se obedecerdes aos mandamentos do Senhor, vosso Deus, que eu vos prescrevo; a maldição, se não obedecerdes aos mandamentos do Senhor, vosso Deus, e vos afastardes do caminho, para seguir outros deuses que nunca dantes conhecestes.
O livro do Deuteronómio (Segunda Lei) ocupa um lugar e uma importânvia centrais no edifício doutrinal da Bíblia (pelo menos no que ao AT diz respeito). E se, relativamente aos livros da Bíblia, se deve dizer que têm uma valência eminentemente religiosa, isso é patente neste livro em concreto. A ideia central do texto que temos entre mãos parece ter a ver com a vontade do seu autor em convencer o povo de Deus de que tem que ser povo de Deus de verdade. E, com efeito, para fazer parte a sério do povo de Deus, não basta estar inscrito nos «livros de registos». Também é preciso proceder em consonância com as leis que presidem à organização desse mesmo povo. A partir do momento em que os hebreus, que eram dos mais pequenos e insignificantes povos daquele tempo, foram escolhidos por Deus para serem seu povo eleito, a sua maneira de ser, de conceber a vida, tem que mudar necessariamente. Neste caso concreto, faz parte da identidade desse mesmo povo agir segundo os ditames da Lei transmitida através de Moisés. Sem a obediência à Lei, tudo deixa de ter sentido e, mais ainda, o povo acaba por perder a identidade e isso ser-lhe-á contado em desgraça e maldição. Seja-me permitido daí concluir que talvez seja isso mesmo o que se está a passar, há uns bons tempos, com os chamados povos tradicionalmente cristãos. Se, por algum motivo, no nosso ambiente, há alguns sinais de «desintegração» e desorientação, na medida em que a velha Europa está a perder, porventura sem se dar bem conta disso, algumas das características que ainda a distinguem, talvez tenhamos que nos questionar se isso não se deverá ao facto de ter abandonado algumas «leis» que fazem parte integrante da sua herança e identidade. Nessa linha, mesmo sem querer ser demasiado pessimista - que, neste ponto não o sou - as consequências chegarão inexoráveis.
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2ª leitura (Rm 3,21-25a.28): A maneira de Deus reconciliar o povo consigo foi revelada. Não tem nada a ver com a Lei, mesmo que Moisés e os profetas tenham dado testemunho dela. Deus reconcilia o povo consigo mediante a fé em Jesus Cristo. Deus faz isto com todos os que acreditam em Cristo, porque não há diferença alguma entre as pessoas: todos pecaram e ficaram privados da presença salvífica de Deus. Mas, pelo dom gratuito da graça de Deus, todos são reconciliados com Ele por meio de Jesus Cristo, que é quem os redime. Deus ofereceu Jesus para que, por meio da sua morte, se realizasse a expiação dos pecados mediante a fé nele. Assim se conclui que a justificação se realiza por meio da fé, independentemente das obras da Lei.
* A justificação vem por meio da fé em Jesus Cristo. A ideia que está subjacente a este texto (cuja tradução, neste caso particular, foi adaptada com base numa versão de língua inglesa) é a de que, para ser salvo, não basta ser «proprietário» dum documento (a Lei) que supostamente e de modo como que automático garantiria a salvação. Na Carta aos Romanos, Paulo como que polemiza com um certo judeu imaginário que está convencido de que, tendo a Lei e a circuncisão do seu lado, tem a salvação garantida. Mas a verdade é que, na perspetiva cristã - que é a que interessa neste contexto - não há salvação senão através de Jesus Cristo. Por isso, independentemente da «Lei e dos Profetas», uma condição essencial para que a redenção seja possível é a fé em Jesus Cristo. Não se trata, como às vezes se pretende, de discutir se são necessárias ou não as obras e se, por outro lado, basta apenas a fé. O ponto de vista não é esse; até porque a fé em Jesus Cristo implica forçosamente uma maneira de pensar nova que se traduz em obras/consequência). E, de facto, parece-me que a fé que não seja mais nada do que palavreado - portanto, mesmo a fé em Jesus Cristo - não é uma fé autêntica e, portanto, não tem valor salvífico. Agora, o que não basta mesmo são as simples «obras da Lei». Quando Paulo produz uma afirmação semelhante, está a colocar uma premissa sem a qual não há salvação possível: Jesus Cristo é o Senhor e o Salvador e, por isso, é preciso aderir a Ele para ser salvo.
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Evangelho (Mt 7,21-27): Nem todo o que me diz «Senhor, Senhor!», entrará no Reino do Céu, mas sim aquele que faz a vontade de meu Pai que está no Céu. Quando chegar o dia do julgamento, muitos me dirão: «Senhor, Senhor, profetizámos em teu nome, em teu nome expulsámos demónios e em teu nome fizemos muitos milagres». E então eu dir-lhes-ei: «Nunca vos conheci. Afastai-vos de mim, vós que praticais a iniquidade!». Assim, quem escuta estas minhas palavras e as põe em prática é como um homem prudente que constrói a sua casa sobre rocha. Cai a chuva, engrossam os rios, sopram os ventos contra essa casa. Mas ela não cai, porque está fundada sobre a rocha. Ao contrário, quem escuta estas minhas palavras e não as põe em prática, é como um homem insensato que edifica a sua casa sobre areia. Cai a chuva, engrossam os rios, sopram os ventos contra aquela casa. E ela desmorona-se e é grande a sua ruína.
Este trecho evangélico de Mateus é a parte conclusiva do Sermão da Montanha, que nos é proposto durante os primeiros domingos do tempo comum. É um texto que não parece deixar margem para dúvidas. Não corramos, pois, o perigo de cair na tentação de diminuir o seu impacto dizendo que são afirmações paradoxais. Sinceramente, não vejo que as palavras de Jesus possam ser interpretadas doutra maneira. Para entrar no Reino do Céu não basta o palavreado, mas é preciso fazer a vontade do Pai. E este pormenor parece tão importante que Jesus «exagera» nas suas afirmações: pode mesmo acontecer que alguém expulse demónios e faça milagres em nome de Jesus e nem sequer isso baste para entrar no Reino do Céu. Esta é uma constatação muito séria, que não se pode eliminar, de ânimo leve, do Evangelho. Mas então fazer milagres em nome de Jesus não é importante? Claro que é - ninguém contesta isso -, só que isso não é suficiente para «cumprir». Por outras palavras, a pertença sociológica a uma determinada herança cultural e religiosa é importante, mas não suficiente. Dito doutra forma, é necessário que haja uma coerência a toda a prova entre o que se confessa e o que se faz. Se é certo que é preciso estar alicerçado em Cristo - como diz S. Paulo na segunda leitura - também não deixa de ser verdade que o verdadeiro alicerce se funda na rocha segura que é o cumprimento escrupuloso da vontade e dos planos de Deus na vida individual e social. PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA COMENTÁRIO EM BAIXO. |
* Podeis escolher entre a bênção e a maldição.
* A justificação realiza-se por meio da fé em Jesus Cristo.
* Salva-se quem faz a vontade do Pai que está nos céus. |
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NÃO O QUE DIZ, MAS, SIM, O QUE FAZ. |
Para comentar a liturgia da palavra de hoje, limito-me a oferecer uma tradução livre e incompleta, com a devida vénia, do respectivo texto de Settimio Cipriani (do livro Convocati dalla parola, Ciclo A).
Entre o dizer e o fazer
«A oração depois da Comunhão parece resumir de modo maravilhoso o significado fundamental das leituras bíblicas de hoje, que giram todas elas à volta da necessidade de tornar realidade a nossa fé nas obras: "Ó Pai, que nos nutriste com o corpo e o sangue do vosso Filho, guiai-nos com o vosso Espírito para que, não só com palavras, com obras e com a vida, possamos dar testemunho e assim entrar no reino dos céus».
«Não bastam as palavras, mesmo as mais grandiosas, com que proclamamos a Cristo como "Senhor" (cf. Mt 7,21.22), se não fazemos o que elas significam: a nossa profissão de fé arrisca-se a ser apenas uma "mentira" repetida constantemente. Da mesma forma, até a celebração litúrgica se torna, a maior parte das vezes, só uma declaração de boa vontade, pontualmente desmentida pelos factos. Quer dizer, a Eucaristia, que deveria fomentar e dilatar o amor, de facto continua a deixar-nos fechados no nosso egoísmo»...
Meter as palavras no coração
«Já a primeira leitura, que é um pouco como a parte conclusiva da grande introdução ao chamado "código deuterocanónico" (Deut cc. 16-26)... é um convite vibrante, dirigido a Israel, no sentido de demonstrar com os "factos" a própria fidelidade ao Senhor, assumindo plenamente a responsabilidade das próprias acções: "As palavras que Eu vos digo gravai-as no vosso coração e na vossa alma, atai-as à mão como um sinal"...».
«Como se vê, é determinante o "obedecer" ou "não obedecer" aos mandamentos do Senhor, o seguir ou não os caminhos por Ele indicados... Jesus acusa os fariseus do seu tempo precisamente por se terem deixado formalizar por este culto exterior da "palavra" sem pôr em acto as suas exigências: "Quanto vos dizem, fazei-o e observai-o, mas não façais segundo as suas obras, porque eles dizem e não fazem... Todas as suas obras as fazem para serem admirados pelos homens: alargam as suas filactérias e as borlas" (cf. Mt 23,3.5)».
«Se a palavra de Deus é apenas ornamento da inteligência ou pretexto de superioridade sobre os outros, então é, acima de tudo, instrumento de "maldição" e de condenação, mais que de esperança de salvação».
Profetizar em nome de Jesus?
«O trecho evangélico vai na mesma linha, com imagens ainda mais frescas e perspetivas mais impressionantes. Escutar a palavra de Deus e não a pôr em prática significa condenar-se à ruína completa da própria obra, como quem constrói sobre a areia, em vez de construir sobre fundamentos sólidos»...
«Estamos na conclusão do Sermão da Montanha, onde Jesus promulgou o estatuto do reino e abriu diante dos olhos perplexos dos seus discípulos o horizonte infinito do espírito das Bem-aventuranças. Nada de mais apto a criar uma forte tensão espiritual e um grande entusiasmo! Mas é precisamente aí que está a insídia: pensar que basta o entusiasmo para as grandes causas, sem empenho dia a dia para chegar à sua lenta e trabalhosa realização...».
«É fácil, e talvez até entusiasmante, proclamar numa recolhida assembleia litúrgica a nossa fé em Cristo como Senhor, mas já não é assim tão fácil reconhecê-lo como Senhor na nossa vida, em tudo o que fazemos, pensamos ou desejamos...».
Sábio é aquele que faz
«É precisamente neste fazer aquilo em que se crê, sobretudo quando isso é difícil, que está a sabedoria, embora possa parecer, por vezes, mais cómoda e esperta a simulação: parecer e não ser, dizer grandes coisas sem as fazer, precisamente como os fariseus contra os quais Jesus se lança!»...
«Professar a fé e não a viver coerentemente em todas as suas exigências significa, ao fim e ao cabo, nem compreender sequer a fé. Sendo assim, a falsidade é total: não só a falsidade da vida, mas também a da fé, que queríamos a todo o custo proclamar diante do mundo, pelo menos em palavras, mas que não conta nada»...
Homem justificado pela fé?
«Ao tema da fé refere-se também a segunda leitura, que nos propõe o núcleo central de toda a Carta aos Romanos, com o objectivo principal de demonstrar que só Cristo nos salva, "independentemente das obras da Lei" mosaica (Rm 3,28)...».
«Antes de mais, as obras que Paulo exclui relativamente à aquisição da justiça, ou seja, da salvação oferecida por Deus em Cristo, são as que provêm da "lei mosaica": não são certas práticas de culto ou certas observâncias morais que nos "justificam" perante Deus, livrando-nos da pecaminosidade radical em que todos, judeus e pagãos, nos encontramos! Ou seja, só Deus pode salvar o homem, permanecendo assim fiel ao seu amor e às suas promessas».
«Em segundo lugar, a fé de que fala Paulo, aqui e noutros lugares, é algo de extremamente difícil e empenhativo: não é um graça a "baixo preço" (D. Bonhoeffer). Ela significa, pelo contrário, a capacidade de confiar, sem qualquer reserva, na iniciativa livre e gratuita de Deus, que nos salva em virtude da morte de cruz do seu Filho, entendida como o gesto mais desconcertante de amor e de doação...».
«Daqui se pode ver que, para Paulo, a fé é só a que se traduz nas obras da vida, que, aliás, são as obras do amor. Na Carta aos Gálatas, dirá precisamente que "em Cristo Jesus, não é nem a circuncisão que conta nem a não circuncisão, mas sim a fé que opera por meio da caridade" (Gl 5,6)».