Temas de fundo |
1ª leitura (Is 49,14-16): Sião dizia: «O Senhor abandonou-me! Esqueceu-se de mim». Mas, por acaso pode uma mulher esquecer-se do seu bebé, por forma a não demonstrar carinho pelo fruto das suas entranhas? Mas, mesmo que houvesse uma mulher que se esquecesse, Eu nunca me esquecerei de ti. Eu gravei a tua imagem na palma das minhas mãos. 2ª leitura (1Cor 4,1-5): Irmãos, considerai-me como apóstolo e servo de Cristo, como encarregado dos mistérios de Deus. Ora, o que se requer dos encarregados é que sejam fiéis aos seus donos. Quanto a mim, pouco me importa de ser julgado por vós ou por um tribunal humano. Aliás, eu nem sequer me julgo a mim mesmo. A consciência de nada me acusa, mas nem por isso me dou por justificado. O único que me julga é o Senhor. Sendo assim, não julgueis ninguém antes do tempo, enquanto não vier o Senhor. Ele é quem iluminará o que se esconde nas trevas e desvendará os desígnios dos corações. E então cada um receberá de Deus o louvor que merece. Evangelho (Mt 6,24-34): Ninguém pode servir a dois patrões: ou odiará um deles e estimará o outro ou será fiel a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro. Eis por que vos digo: não vos preocupeis quanto ao que haveis de comer ou de beber para manter a vida, nem quanto ao que haveis de vestir para cobrir o corpo. De resto, não será a vida mais do que o alimento e o corpo mais que o vestido? Olhai para as aves do céu: não semeiam, nem ceifam nem recolhem em celeiros. E, no entanto, o vosso Pai celeste alimenta-as. Ora, não valeis vós mais do que elas? Quem de vós, por mais que se preocupe, pode acrescentar uma hora que seja à sua vida? E por que vos preocupais com o vestuário? Vede como crescem os lírios do campo: não trabalham nem fiam! Pois bem, asseguro-vos que nem sequer Salomão, em todo o seu esplendor, se vestiu como um deles. Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada ao fogo, quanto mais não fará por vós, homens de pouca fé!... O vosso Pai celeste bem sabe que precisais disso tudo. Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais vos será dado por acréscimo. Não vos preocupeis, portanto, com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã já terá as suas próprias dificuldades. Basta a cada dia a sua preocupação. PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. |
* Eu nunca me esquecerei de ti. * O Senhor conhece o homem por dentro. * Não vos preocupeis com o dia de amanhã. |
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BASTA A CADA DIA A SUA PREO- CUPAÇÃO. |
Como é óbvio, o trecho evangélico não é um convite à preguiça, mas sim uma indicação de como tem que haver um escalonamento de prioridades. O que se condena aqui não são os bens (que, naturalmente, como a própria palavra indica, são um «bem»), mas sim a idolatria que dos mesmos é feita.
Deus é digno de confiança acima de tudo
Não há qualquer dificuldade em identificar o tema de fundo deste domingo. Pode-se resumir naquilo a que teologicamente se costuma dar o nome de «Divina Providência». E esta consubstancia-se, digamos assim, na bondade omnipotente de Deus enquanto vela sobre as suas criaturas, as conserva, as enriquece e as inunda abundantemente com o seu amor, segundo os desígnios por Ele de antemão estabelecidos.
É verdade que, à nossa volta, há todos os dias acontecimentos mais ou menos trágicos que nos levam ao pessimismo e ao desânimo. E é nessas alturas que as dúvidas sobre a providência divina se tornam mais atrozes. Mas é também precisamente nestes momentos que se torna necessário renovar a nossa confiança no Senhor, porque sabemos, como aliás se aprende no catecismo, que Ele não se pode nem nos pode enganar. Portanto, mesmo quando as aparências podem levar a conclusões em sentido contrário, no espírito do cristão deve persistir a fundada certeza de que todas as coisas estão sob o seu absoluto controle.
É este o espírito geral que preside à liturgia da palavra de hoje. E, porque está tudo sob o absoluto controlo de Deus, também o homem, e sobretudo este, deve estar sob esse controlo. Mas esta «pretensão» de Deus sobre a vida do homem não será excessiva?, perguntamo-nos. Ou seja, defender a absoluta soberania de Deus sobre as criaturas não será sugerir ao homem que «deixe andar as coisas», já que Deus trata de tudo? É esse um dos grandes erros que se cometem. As imagens utilizadas pelo texto evangélico (como o alimento e o vestido, as aves do céu, os lírios do campo) podem dar azo a que as pessoas pensem a vida em termos de desresponsabilização quanto aos deveres de todos os dias, nomeadamente os que se referem à subsistência.
Mas a verdade é que Jesus não diz aos seus seguidores para não trabalharem, para não semearem nem colherem. As expressões essenciais e mais decisivas do trecho em questão não são essas. O que Ele recomenda é, em primeiro lugar, que os seus discípulos «não devem ficar aflitos, não se devem inquietar nem se devem deixar levar pela ansiedade» (cf. Mt 6,34).
Deus é fiel aos seus projectos
A base da confiança do homem em Deus é a certeza da fidelidade de Deus, a verdade da sua palavra, a solidez das suas promessas (cf. Dt 32,4). Não obstante as infidelidades do homem e os seus contínuos actos de idolatria, representados sobretudo pela procura das coisas materiais, até ao ponto de as alcandorar ao nível de ídolos perante os quais se prostra, Deus mantém-se fiel ao plano original. Com efeito, as suas palavras não passam (cf. Is 40,8), as suas promessas serão mantidas (cf. Tb 14,4), Ele não mente nem se retracta (cf. Nm 23,19); o seu desígnio, desígnio de amor, realizar-se-á infalivelmente (cf. Sl 32,11; Is 25,1). O homem pode, portanto, viver na confiança, porque Deus vigia sobre o mundo (cf. Gn 8,22), mandando o seu sol e a sua chuva igualmente sobre todos, bons e maus, justos e pecadores (cf. Mt 5,45).
A bondade de Deus manifesta-se até nas mais pequenas coisas, conforme ficou implícito nas imagens evangélicas citadas, mas sem anular a iniciativa que cabe ao homem. Mas manifesta-se sobretudo na história das pessoas e particularmente na história dos povos e da humanidade na sua expressão global. É certo que nós nem sempre nos apercebemos de como a providência de Deus se realiza em concreto, sobretudo quando nos parece que as coisas não correm bem. Mas, mesmo nesses casos, não se pode esquecer que, como diz a sabedoria popular, Deus «escreve direito por linhas tortas».
Escrever direito por linhas tortas
Nós, dotados de capacidades limitadas, por vezes, não vemos senão as linhas tortas ou, como se costuma dizer, não vemos um palmo à frente do nariz. Deus, porém, tem outra visão da realidade. E aquilo que para nós, num dado momento, se apresenta apenas com as cores sombrias e aterradoras do desespero e do sofrimento, na óptica de Deus, é apenas um pequeno ponto ou uma parcela de todo o processo de crescimento, que vai desde o início da nossa existência até à passagem a uma outra dimensão.
Se, como diz a Bíblia, «mil anos diante de Deus são como o dia de ontem que passou, ou como a vigília da noite» (cf. Sl 90/91,4), então será fácil admitir que Deus olha para a totalidade da nossa vida num único «golpe de vista», digamos assim. Nessa perspectiva, é natural que Ele «veja» esse determinado momento negro da nossa vida sob a perspectiva da totalidade, o que, portanto, muda o sentido das coisas por completo.
Acresce que não podemos pensar a «actuação» de Deus em termos de encaminhamento forçado para um rígido destino, que tire ao homem a sua liberdade, nem como uma intervenção mágica, que se substituiria à iniciativa do homem. A sua providência consubstancia-se num projecto de salvação, em que Deus e o homem se encontram livremente num diálogo de amor e amizade. Por razões que só Ele compreende, Deus, ao criar o homem livre, quis fazer depender essa mesma salvação do consentimento da sua criatura. Já Sto. Agostinho o dizia na sua maneira toda peculiar de se exprimir: «Quem te criou sem ti não te pode salvar sem ti».
Objectivo de Deus: salvação total
Mais: a fidelidade de Deus às suas promessas não pode ser pautada segundo um quadro de referência simplesmente humano e contingente. As suas promessas são, antes de mais, promessas de salvação (e salvação total) e, por conseguinte, não se exaurem, digamos assim, dentro dos estreitos limites da visão humana das coisas. A «visão» que Deus tem das coisas e da nossa vida é uma visão global e não apenas pontual. Por isso, o que para nós pode ser um momento de sensações apenas desagradáveis (e eu insisto neste ponto, porque o acho essencial), na «previsão» de Deus, esse momento pontual pode fazer parte dum plano global que obviamente inclui outras etapas.
Por outras palavras, como disse acima, Deus olha, num mesmíssimo instante (se assim me posso expressar), para todo o arco da nossa existência e não apenas para um episódio singular situado num ponto determinado dessa mesma existência. Por ser fiel relativamente à totalidade da nossa existência é que, por vezes, a nós nos pode parecer que Ele está ausente num ponto determinado dessa caminhada. Mas é apenas sensação que deriva da nossa incapacidade de englobar toda a realidade.
Gente de pouca fé!
Quando Jesus fala das coisas de todos os dias (Evangelho), quer focar a nossa atenção no essencial, tendo como objectivo levar-nos a não despender energias inutilmente. A raiz profunda das nossas preocupações e afazeres é a nossa falta de fé, a nossa incapacidade de compreender que, não obstante o que acontece, ainda é Deus que tem nas mãos as rédeas do mundo e da história.
Mas as rédeas é Ele que as controla, à sua maneira e não à nossa, embora respeitando o nosso livre arbítrio. Ele tem nas mãos também as rédeas da existência individual de cada um de nós. Nós é que tantas vezes não nos damos conta disso. Quase imperceptivelmente, tornámo-nos pagãos: «O que comeremos? O que iremos beber? E a casa? E a indumentária? E as férias e os divertimentos?». Cristo diz-nos que com todas estas coisas se preocupam os pagãos.
Repito que isso não significa que o cristão não tem «direito» também a essas coisas e que deve deixar de trabalhar. Mas os problemas da vida não deveriam fazer-nos perder a alegria de viver. Apesar de todos os eventuais problemas com que possamos deparar, na nossa condição de cristãos, no fundo, temos é que descobrir que, como se costuma dizer com termos populares, a nossa vida está nas mãos de Deus.
Ainda seremos pagãos?
Se reconhecemos que estas preocupações «mundanas» são a nossa prioridade, então teremos que nos qualificar de pagãos. Por outras palavras, pondo acima de Deus as garantias humanas e o dinheiro, estamos a ser exactamente como os que de Deus não querem saber. E, de facto, o que se nota é a corrida aos juros, às riquezas, ao poder, que permitam satisfazer também outros desejos; mesmo quando isso significa esmagar os outros e passar por cima da própria dignidade humana. A nível nacional ou internacional, isso traduz-se na corrida ao domínio mundial, na infiltração na política dos estados mais fracos, na exploração dos recursos dos outros países, mesmo que isso signifique a fomentação de revoluções e guerrilhas e de várias formas de terrorismo.
Se no coração dos homens reinasse Deus e a sua justiça (e a fé devia dar-nos e induzir-nos a essa certeza) então a justiça seria um dever imprescindível e os esforços para que a ninguém falte nada um corolário natural. «A vida vale mais que o alimento e o corpo mais que o vestido», diz-nos Jesus (cf. Mt 6,25).
Para quê Deus, se o homem é que conta?
Posso parecer repetitivo, mas há que relevar que a confiança na «providência divina» não significa «deitar-se à sombra da bananeira». Há quem espere (e exija) de Deus tudo quanto lhe possa servir, desde a chuva ao bom tempo, desde a passagem num exame a um bom êxito num negócio qualquer. E há ainda quem pense e defenda que isso é que é ter fé. Mas este é um conceito errado de fé. Uma pessoa assim não serve a Deus, mas serve-se de Deus.
Todavia, há também aqueles que de Deus nada esperam; antes pelo contrário, chegam mesmo a pensar que a fé ou confiança em Deus é «ópio», é um impedimento para que o homem seja bem sucedido nas suas iniciativas. Pode-se resumir assim mais ou menos este tipo de mentalidade: «Crer? Para quê crer? Vós, cristãos, pondes na conta de Deus coisas que nós já sabemos e vivemos sem precisar dele!
Antes, quando as coisas corriam mal (traduzidas em guerras, cataclismos, doenças, insucessos, etc.), a gente revoltava-se contra Deus. Mas isso era por ignorância. Hoje, já estamos suficientemente esclarecidos e o problema já não seque se põe! Não precisamos de Deus para explicar essas coisas!». Sem entrar no mérito (?) da questão, o que eu gostaria de augurar é que os cristãos não dessem motivos para justificar estas afirmações. E, já agora, posso acrescentar que, se crer fosse realmente isso, então não faria sentido e, portanto, não seria preciso crer. Mas será isso crer?
Confiança plena, mas não passiva
O cristão esclarecido é aquele que foge à concepção simplista, ingénua e mágica de quem confia de maneira passiva e quietista em Deus. Mas o cristão foge também à pretensão orgulhosa do ateu que cancela pura e simplesmente Deus do seu horizonte. É que, bem vistas as coisas, torna-se muito difícil, senão impossível) motivar as pessoas no sentido de contribuir para o progresso do mundo e da sociedade com razões de simples ideal pessoal ou terreno. No máximo, a motivação será suficiente para melhorar o próprio estatuto pessoal. Que interesse posso ter eu em contribuir para o bem do mundo e da sociedade em geral só por motivos de ordem pessoal? Sim, que importância tem isso se, afinal de contas, tudo se reduz à dimensão economicista e tudo acaba inapelavelmente dum dia para o outro?
Ao contrário, é da sua confiança em Deus que nasce, no cristão esclarecido, o seu «activismo», o seu esforço para que as coisas melhorem no ambiente em que vive. Porquê? Porque sabe que o seu trabalho é continuação da obra criadora de Deus. Pela fé, o cristão sabe que tudo o que fizer será transformado, no devido tempo, por Deus em benefício de toda a humanidade, que tudo o que ele faz, embora pareça insignificante, tem uma valência de eternidade. Por isso, como se costuma dizer, ele trabalha e empenha-se como se tudo dependesse de si, mas confia em Deus como se tudo dependesse (como, de facto, depende) da sua providência.
Esta atitude de fundo leva-o a manter o equilíbrio e, ao mesmo tempo, a dar sentido àquilo que faz, sem, no entanto, nunca se julgar senhor seja do que for. Embora saiba que, segundo o relato do Génesis, ele é como que o rei da criação (cf. Gn 1, 27-28), o cristão autêntico também sabe que é um rei apenas por procuração. Foi «coroado» rei da criação, mas não é (digamo-lo sem rodeios) dono dessa criação. O mal começou precisamente por aí: o homem quis assumir-se como dono da criação, substituindo-se ao seu criador, quando é apenas administrador.
Só pode haver um «patrão»
Quando o homem é levado pelo desejo de tudo possuir ou pela ganância de tudo dominar, por mais paradoxal que possa parecer, a tudo se «sujeita» e, por isso, acaba por se submeter de tal maneira a esse espírito de ganância e possessão que se torna escravo das coisas. Ora, como diz o Evangelho, não se pode servir a dois senhores. Ocorre escolher. Este «ou/ou» assume toda a sua peremptoriedade neste contexto, porque não se pode servir ao mesmo tempo a Deus e ao dinheiro.
O dinheiro (termo neutro traduzido por «mamona») é, neste contexto, o símbolo de todos os bens materiais e das garantias simplesmente humanas. E, sendo assim, de alguma forma, assume uma coloração negativa: as coisas, quando tomadas como padrão da própria vida, separam o homem de Deus e do Reino. O «dinheiro», ou melhor, a pessoa dominada pelo dinheiro, é adversário de Deus, pois é origem de ordens que são contrárias às de Deus. Na sua actuação concreta, em vez de dizer «ama o pobre», a sua política é explorar o pobre para acumular cada vez mais...
Em todo o caso, o convite a «procurar antes de mais o Reino de Deus e a sua justiça» (cf. Mt 6, 33; Lc 12,31) não é um convite à passividade; não dispensa o compromisso com a história. Ao homem foi confiada a missão de fazer produzir a terra com o «suor do seu rosto» (cf. Gn 3,17-19). Só que, na óptica cristã, a escala de prioridades deve ser mantida, pois o empenho «nas coisas deste mundo» deve ser subordinado ao Reino de Deus. Aqui está todo o sentido da escolha. A alternativa é incontornável: ou viver como se, na prática, Deus não existisse, ou então confiar de tal maneira nele que, corram como correrem as coisas, tudo é compreendido e aceite como vindo e guiado por Ele.
No fundo, é esse o resultado prático que se nota na vida das pessoas. Quando «descartam» a Deus como um ídolo inútil e maléfico, acabam por colocar no altar da existência outros ídolos que, basicamente, são representados pelo grande ídolo de todos os tempos, que é o «deus dinheiro». E a pergunta que, como cristão, muito sinceramente, deixo neste espaço e à qual cada um terá que responder é simplesmente esta: o que valerá mais? o Deus único e verdadeiro ou o «deus dinheiro»?