Temas de fundo |
IV DOMINGO COMUM - A 1ª leitura (Sf 2,3; 3,12-13): Voltai-vos para o Senhor, vós humildes da terra que cumpris a sua lei. Buscai a justiça e a humildade para assim encontrardes abrigo no dia da cólera do Senhor. Em ti, Israel, subsistirá um povo pobre e humilde, que confiará no refúgio do nome do Senhor. É o resto de Israel que não fará mal a ninguém nem proferirá mentiras. Na sua boca não mais haverá uma língua enganadora. Eles prosperarão e repousarão sem que ninguém os inquiete.
Sofonias (que significa «O Senhor escondeu»), com probabilidade, profetizou em Judá, no tempo do rei Josias, entre 640 e 609 aC . Ele próprio diz que profetizou «nos dias de Josias, filho de Amon, rei de Judá» (1,1). Se é assim, são seus contemporâneos Jeremias e Naum. Os membros mais válidos do povo tinham sido levados para o cativeiro e em Judá as coisas não corriam nada bem. Tinham sido construídos altares em várias partes do país para adoração aos ídolos. Apenas os pobres e os humildes parecem dar-se conta de que, para que as coisas se componham, é necessário redescobrir o papel de Deus. Os pobres, ao contrário dos ricos e poderosos, são os que não confiam no seu poder e força (que não têm), mas tudo esperam de Deus. Sofonias está bem sintonizado com estes sentimentos e, por isso, insiste em fazer com que o povo procure o Senhor e a sua justiça. Para ele, quem está em condições de aceitar os pleanos do Senhor são,com efeito, os pobres, os oprimidos, os fracos e os indigentes, enfim, todos os que, desprotegidos da justiça humana, lançam o olhar para Deus. Sem pretender afirmar que se deve recorrer a Deus só porque não se conseguem resolver as questões de outra maneira, não pode haver dúvidas de que, quando não se vê saída para os problemas, então é mais fácil redescobrir Deus na vida. E, por isso, daí pode-se concluir que nem sempre os males têm apenas uma valência negativa. É que, como se costuma dizer, Deus do mal pode tirar o bem.
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2ª leitura (1Cor 1,26-31): Irmãos, lembrai-vos da vossa vocação. Humanamente falando, entre vós, poucos são os sábios, poderosos, ou de condição nobre. Mas Deus escolheu o que há de louco no mundo para confundir os sábios; e escolheu o que há de fraco no mundo para confundir o que é forte. Ele escolheu o que o mundo considera vil e desprezível; escolheu os que nada são para reduzir a nada aqueles que se julgam importantes. Isso quer dizer que ninguém se pode vangloriar diante de Deus. É por Ele que estais unidos a Cristo Jesus, que é para nós a sabedoria que vem de Deus, a justiça, a santificação e a redenção. Sendo assim, como diz a Escritura, aquele que se gloria, glorie-se no Senhor.
Nunca é demais relembrar que a comunidade/Igreja de Corinto era constituída maioritariamente por cristãos provenientes das classes mais humildes. Por um lado, poderiam alimentar alguns sentimentos de inferioridade perante outras comunidades e, por isso, era preciso dar-lhes coragem. Por outro lado, tonrava-se necessário corrigir-lhes os defeitos (que é o que Paulo faz). Mas, além disso, era também uma comunidade capaz de entender coisas que em outras comunidades tinham mais dificuldade em entender; como, por exemplo, o propor a cruz como algo de central na pregação cristã. O que para pessoas mais ilustradas poderia ser algo de desprezível e até de absurdo, para os coríntios decorria da sua própria experiência de impotência no sentido humano do termo. Estavam então em condições de utilizar, mais do que a inteligência, a interioridade - a alma - para entender o que só a inteligência não é capaz de entender. Como diria Pascal, «o coração tem razões que a razão não entende». Mas há também a acrescentar, a propósito, que essa disposição mental é indispensável para chegar à conclusão de que, afinal de contas, em certos assuntos, é melhor deixar a iniciativa a Deus. De facto, Deus é de tal maneira original, livre e poderoso que «escolhe o que é louco para confundir o sábio, o que é fraco para confundir o forte e o vil e desprezível para confundir aqueles que são alguma coisa». Esta constatação, seguindo a ótica cristã, poderá e deverá levar-nos a fazer, nas pegadas de S. Paulo, perguntas pertinentes como estas: afinal, quem é o verdadeiro sábio? Não será mais sábio aquele que, na cruz de Cristo, é capaz de descobrir o dedo de Deus? Aquilo que para os judeus é escândalo e loucura para os gentios (cf. 1Cor 1,23) não será para os crentes poder e sabedoria de Deus?
Evangelho (Mt 5,1-12a): Ao ver a multidão, Jesus subiu a um monte onde se sentou. Os discípulos juntaram-se à sua volta e Ele começou a ensiná-los dizendo: «Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu. Felizes os que choram, porque serão consolados. Felizes os mansos, porque possuirão a terra. Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. Felizes os puros de coração, porque verão a Deus. Felizes os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus. Felizes os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o Reino do Céu. Felizes sereis, quando vos insultarem e perseguirem e, mentindo, disserem todo o género de calúnias contra vós por minha causa. Exultai e alegrai-vos, porque grande será a vossa recompensa no Céu».
Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu. As Bem-aventuranças fazem parte do «Sermão da Montanha» (isto segundo a perspectiva de Mateus, pois Lucas apresenta este mesmo ensinamento de Jesus numa planície) e sintetizam, digamos assim, a mensagem que Jesus terá proclamado em várias ocasiões e lugares. Em todo o caso, as Bem-aventuranças são como que um programa de vida, a norma suprema de conduta, o cartão de identidade do cristão. Mas, pelos vistos, parecem estar em completo desacordo com o que é a mentalidade corrente. Segundo uma lógica racionalista, elas são como que oito regras de como não triunfar na vida. Para outros, serão como que um vago idealismo, uma bela utopia que nada produz e nada diz às pessoas de hoje. E, no entanto, são-nos apresentadas assim mesmo, sem tirar nem pôr, por Jesus como base da sua pregação. Aquele que é cristão, ou seja, seguidor de Cristo, não tem o direito, por sua alta recreação, de retirar seja o que for desse «discurso da montanha». Mas as Bem-aventuranças são propostas que só podem ser entendidas em profundidade e no seu sentido autêntico por aqueles que as vivem experimentalmente. No fundo, a questão está em saber o que torna a pessoa realmente, intrinsecamente, feliz. E, nesse aspecto, há que reconhecer que os critérios de Jesus Cristo são diametralmente opostos aos critérios propostos pelo «mundo». Como é evidente, para quem não tenha qualquer perspetiva de vida para além desta vida, as Bem-aventuranças são porventura algo de aberrante, absurdo e sem sentido. Mas, numa perspetiva de fé, e concretamente de fé cristã, «que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua vida?» (cf. Mt 16,26; Mc 8,36; Lc 9,25; Jo 12,25). |
* Procurai o Senhor, vós todos, humildes da terra. * O que há de louco no mundo é que Deus escolheu para confundir os sábios. * Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu. |
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A CARTA DE IDENTIDADE DO CRISTÃO. |
O «Sermão da Montanha», apresentado por Mateus como discurso inaugural da Lei que preside ao novo Reino, reúne diversas sentenças e afirmações atribuídas a Jesus e em que é tratada a estrutura da nova justiça cristã. O texto das Bem-aventuranças serve de «exórdio» a essa nova Lei (cf. Nova Bíblia dos Capuchinhos, na nota introdutória ao Sermão da Montanha).
- Mudança radical de mentalidade
Aquilo a que poderemos apelidar de «Evangelho das Bem-aventuranças» domina por completo a liturgia da palavra deste domingo. As Bem-aventuranças são uma espécie de introdução e, ao mesmo tempo, o resumo do chamado Sermão da Montanha. Esta proposta, encerrada em frases mais ou menos simétricas e ritmadas, é, em certo sentido, um artifício literário de que o evangelista Mateus se serve livremente para encaixar, como num programa de vida, muitos dos «discursos» que Jesus terá pronunciado ao longo de toda a sua pregação. Mateus resume-os e reúne-os num todo compacto, possivelmente para facilitar o trabalho dos encarregados de pregar a Boa Nova (ou dos catequistas).
Por outro lado, ao colocar esta série de ensinamentos num «monte» (o evangelista Lucas - 6,17 - por exemplo, ao contrário, coloca-a num «sítio plano»), a intenção de Mateus não é fornecer-nos qualquer informação geográfica, mas é apresentar o Mestre da Galileia, antes de mais, como o «segundo Moisés», que «sobe ao monte», a fim de promulgar o segundo decálogo de comportamento, a Nova Lei, que vem aperfeiçoar o primeiro decálogo, que tinha sido esvaziado de interioridade. Não se trata de substituir o antigo, como o próprio Cristo dirá durante a sua vida pública (cf. Mt 5,17), mas sim de o aperfeiçoar e de lhe dar sentido.
Proclamando felizes os pobres e os humildes, Jesus lança mão dum estilo de linguagem, já utilizado no Antigo Testamento pelos profetas, para falar ao povo israelita; como é o caso de, por exemplo, Sofonias, escolhido hoje na primeira leitura. Trata-se de uma terminologia que transitou, digamos assim, para o «depósito» da linguagem da Igreja primitiva e se transmitiu até nós. Com efeito, nem o próprio Paulo tem qualquer relutância em afirmar que os primeiros a ser chamados são os mais pequenos, os pobres, aqueles que o mundo despreza, mas que são grandes no Reino dos Céus (2ª leitura).
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Um discurso revolucionário
Apesar de não ser completamente original (pois, repito, já se encontra tudo implícito no Antigo Testamento), essa forma de o evangelista se expressar apresenta-se realmente como uma reviravolta no modo de pensar e agir das pessoas. E não me estou a referir somente às pessoas daquele tempo, que, para dizer a verdade, na prática, identificavam as bênçãos de Deus com a riqueza, a saúde, a descendência e o prestígio. Ainda nos dias de hoje, a questão continua a ser muito atual, porque os critérios do «mundo» continuam diametralmente opostos aos critérios do «Sermão da Montanha».
Os hebreus (e os homens de hoje procedem da mesma forma) estavam convencidos de que a prosperidade material, o sucesso, a estima e a amizade de toda a gente, eram sinais inequívocos da bênção e dos favores de Deus. Ao contrário, era convicção generalizada de que sinais de maldição eram, por exemplo, a pobreza, a doença, a falta de honras e a esterilidade. Pois bem, apesar do que se possa dizer e não obstante os vários séculos que se passaram sobre o lançamento desse «Sermão» revolucionário, infelizmente não estamos a falar de algo que seja estranho à mentalidade e critérios das pessoas que nos rodeiam. Ou seja, parece que, nesse aspeto, não evoluímos mesmo nada. A forma de pensar dos homens de hoje não se distancia muito dessa mentalidade antiga: os critérios da felicidade continuam a ser os do bem-estar material, do progresso económico, do sucesso no plano profissional e da estima ou da posição social.
- Uma nova mentalidade
Jesus, na esteira da literatura profética, denuncia a ambiguidade duma felicidade apoiada e consubstanciada exclusivamente na vertente económica, materialista e terrena. A ideia, o objetivo, como é evidente, não é diabolizar os bens, mas a verdade é que a felicidade comporta muito mais do que essa vertente. Com os conhecimentos e a experiência de vida cristã que hoje possuímos, creio que isto não é algo assim tão difícil de entender. Agora, o que é já muito mais complexo e problemático é aceitar e pôr em prática essa «visão das coisas» na vida quotidiana.
Segundo a «nova mentalidade» introduzida por Jesus (que, de resto, para todos os efeitos, continua a ser «nova» nos dias que correm), os felizes não são necessariamente os ricos deste mundo, aqueles a quem não falta nada, os prestigiados, os famosos e os que recebem homenagens de toda a gente. Nós, que nos dizemos cristãos, em teoria, até somos capazes de admitir sem muita relutância esta nova «visão do mundo». Agora o que já é mais difícil de «engolir» é que sejam felizes os que têm fome e sede, os que choram, os pobres e os perseguidos...
Na ótica cristã, é esta a nova lógica, quer queiramos quer não. Mas atenção! Também neste caso, é necessário entender as coisas não de maneira mecanicista, mas sim no seu sentido mais profundo. E então, quando é assim, não servem as desculpas ou explicações. É a lógica de Maria, a feliz e bem-aventurada criatura por excelência, que se expressa de forma inequívoca: «Tirou os poderosos dos seus tronos e levantou os humildes; encheu de bens os famintos e mandou embora os ricos de mãos vazias» (cf. Lc 1,52-53).
- Auto-suficiência igual a condenação
As oito Bem-aventuranças de Mateus (em S. Lucas são quatro, seguidas de quatro maldições) resumem-se, bem vistas as coisas, à primeira: «Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu». Pobre em espírito é aquele que está sempre disponível para as propostas de Deus. Nesse sentido, as outras Bem-aventuranças são como que o corolário e uma explicitação desta.
Todavia, há que precaver-se contra um mal-entendido: a pobreza como tal não é primariamente um estado sociológico, mas sim uma disposição interior. Quer dizer, a indigência de meios económicos não constitui uma condição automática de felicidade. Por outras palavras, se é verdade que não se é necessariamente feliz por estar na posse de bens materiais, também não se é automaticamente feliz só por se estar privado desses mesmos bens materiais, de sucesso e honras. O que significa que, neste contexto, a pobreza «constrangida» (passe a expressão) não é a que conta. A pobreza que conta é a pobreza escolhida como renúncia consciente à posse a todo o custo e à violência sobre os demais. Em contraposição, ser rico, nesse contexto, significa exercer poder, receber honras e desempenhar um papel de sobranceria sobre os outros. E é na forma como se é rico que reside o perigo, porque, onde há poder, riquezas e sobranceria, há muito frequentemente (ou quase sempre?) oprimidos, escravos, desprezados, explorados.
O verdadeiro sentido de «pobreza em espírito», como a entende Jesus, só será perfeitamente compreendido a partir de algumas passagens do AT. Segundo a visão vétero-testamentária, o «pobre», para além e acima dos condicionalismos de ordem sociológica, é sobretudo o homem honesto, pio, que pratica a justiça, que vive sob o jugo do rico, do influente e do opressor. Nesse sentido, e apesar de todas as vicissitudes e contratempos, quem vive honestamente, praticando a justiça e estando aberto aos apelos de Deus, será recompensado por Ele.
- Pobreza igual a felicidade?
A pobreza em si mesma não equivale, pois, automaticamente, a felicidade. A pobreza feliz é a que é acompanhada da simplicidade do coração, da convicção profunda da dependência de Deus e da integridade de vida e de respeito pela vida dos outros. É com pobres assim que Jesus se compara. Esses são os seus eleitos. A sua solicitude pelos pobres, infelizes, doentes, era e é um sinal da sua missão. Ele leva aos deserdados, digamos assim, não só a garantia de que um dia gozarão do Reino de Deus, mas que este Reino já chegou. Semear e fazer crescer no interior das pessoas a autêntica felicidade é a missão de Jesus, que se estende a todas as misérias físicas e morais.
Seja como for, a salvação não é só uma realidade futura (também é isso obviamente); mas é algo já possível agora, apesar da falta de tudo o que constitui a aparente felicidade, como os bens materiais e o sucesso a todos os níveis. Dá-se, digamos assim, e já nesta vida, uma mudança de rumo no conceito de felicidade. E, nesse sentido, felicidade é muito mais do que o sucesso ou a acumulação de bens materiais. Ela é possível mesmo quando não se verificam essas condições. E esta é, sem dúvida, uma grande notícia, uma «boa nova», na medida em que corrige os parâmetros de valutação da felicidade da mentalidade corrente (no tempo de Jesus e agora). E até se dá o caso que os que não sabem quanto têm, mesmo assim ainda não estão contentes e querem cada vez mais. Será isso felicidade?
O novo conceito de felicidade inaugura, desde já, a possibilidade de serem felizes e de alcançarem a salvação mesmo os que até agora não teriam sequer hipóteses de sonhar com ela. Mais: inaugurada que foi a fase da salvação, acresce a certeza, amadurecida pela fé, de que Deus concede a prioridade a todos os que mais necessitam dela: precisamente os «pobres».
- Pobreza e sociedade de consumo
Seja como for, as considerações até aqui tecidas não evitam que os problemas e as perguntas continuem a colocar-se num mundo que teima em não aceitar nem assumir a «mentalidade» de Jesus Cristo. Num ambiente como o do mundo moderno (como o do mundo de todos os tempos, diga-se, aliás, em abono da verdade), que sentido tem ainda a proposta do Sermão da Montanha? Que sentido tem propor um texto desse teor ao homem duma sociedade de consumo, que mede a felicidade, a bem-aventurança e a plenitude da vida, com o metro do ter, do sucesso e do poder? Por outro lado, no contexto do mundo subdesenvolvido, em que se vive em condições infra-humanas, como será recebida a proposta: «Felizes os pobres... felizes os que tem fome... felizes os perseguidos?». Não soará como afronta à sua miséria ou como tentativa de narcotizar e adormentar a «cólera dos pobres»?
Perguntas extremamente actuais e provocatórias, que trazem associadas a si até teorias filosóficas e económicas tendentes a condenar uma atitude de resignação definida como «narcotização do povo». E, todavia, é evidente que, como cristãos, não podemos anular esta parte do Evangelho (ou qualquer outra parte do Evangelho) sem com isso anular o próprio Cristo.
- A outra «narcotização»
Por outro lado, porventura será suficiente prometer aos pobres e aos deserdados que serão felizes quando, pela revolução, se inverter a sua situação, passando eles a ter acesso aos bens e à plataforma de «status» social em que se encontram os que eles agora invejam? Quer dizer: quando os que agora são ricos forem pobres, então o mundo sertá uma maravilha? Não será também isso um outro tipo de «narcotização»?
O primeiro pobre e o primeiro perseguido foi Ele; Ele que, sendo rico («por meio dele foram feitas todas as coisas», como se diz na Introdução ao IV Evangelho), não deixou de optar pela pobreza extrema, mesmo no sentido de privação material. Parece, pois, haver no Evangelho um apelo claro ao seguimento dum Cristo que não encontrou lugar onde nascer (cf. Lc 2,7), que não tinha sequer uma pedra para reclinar a cabeça (cf. Lc 9, 58), que morreu pobre e despido numa cruz e abandonado de todos. Não há outro Cristo senão esse.
É ilegítimo e inútil procurar dourar a sua figura com traços estranhos às páginas evangélicas. De resto, é curioso constatar que, como regra, a multidão que segue a Jesus não é constituída por escribas, fariseus, levitas ou poderosos de qualquer espécie. Tudo isto são factos que não podemos ignorar ou distorcer. Mas, apesar de tudo, as perguntas lançadas acima continuam a ser actuais e a causar dificuldades.
- Contrastes que vêm de longe
Mais de seis séculos antes de Cristo, Sofonias vê-se obrigado a desempenhar a sua tarefa de profeta em situação difícil; curiosamente, uma situação bem semelhante à atual. O profeta vive tempos dramáticos: desequilíbrios sociais, subversões políticas, nacionais e internacionais, opressões a todos os níveis, factos de crueldade e de sangue, aviltamento da vida civil, política e religiosa. A pergunta «fatal», já nesse tempo, é a seguinte: porque é que Deus não intervém? E, se intervém, em que é que consiste a salvação prometida ao povo de Israel? A intervenção de Deus não é certamente política (pelo menos de maneira explícita). A era messiânica é, acima de tudo, uma renovação interior, uma renovação do coração e das mentalidades. Depois desta transformação (que, todavia, é muito lenta), todos os que estiverem disponíveis à ação do Senhor formarão um «povo humilde e pobre que confiará no nome do Senhor» (Sf 3,12). É a melhor definição de pobre. Os que souberem acolher esta pobreza serão os verdadeiros continuadores da história da salvação e só esses gozarão da paz imperturbável que Cristo dará, e que não é a paz deste mundo.
Por seu lado, o quadro que Paulo nos desenha é praticamente o mesmo. E a resposta de Paulo: «Deus escolhe o que é fraco para confundir os soberbos» (cf. 1Cor 1,27), tal como a de Sofonias (podemos dizê-lo), se considerada apenas na sua vertente humana, é incompleta e insuficiente. Mas acontece que essa resposta ultrapassa o limiar humano e político. Tem que ser procurada a outro nível, já que nem todas as respostas humanas e políticas são exaustivas.
- Uma nova «escala» de valores
Ora, em termos de mensagem cristã, esta é também uma constatação que não se pode escamotear. A salvação é algo de bem mais profundo e íntimo que a simples ausência de opressão ou mesmo muito mais que a simples reposição da justiça política ou social. A salvação mais autêntica e completa, na ótica de Jesus, passa por aderir a Deus e por operar a sua justiça por causa dele. Também hoje, embora entre tantas incertezas, ameaças, medos e apreensões pelo futuro, a certeza de que «Deus está no meio do seu povo» (cf. Sf 3,17) é a mola que faz saltar por terra toda a jerarquia de valores que o mundo estimula e endeusa.
O quadro traçado por Paulo descreve, em pinceladas mais concretas, estes pobres, humildes e observantes verdadeiros da Lei, em contraste com os «grandes» deste mundo. Havia então em Corinto fortes contrastes entre categorias de pessoas. Dum lado, os ricos, os sábios, os poderosos, os nobres, pessoas humanamente importantes. Do outro lado, a gente sem valor, inculta, humilde e desprezada.
Mas, diante de Deus, dá-se uma inversão de valores: os menos dotados de bens materiais e inteletuais são, por vezes, os que estão cheios dos bens de Deus, de maneira que os humanamente fracos confundem os humanamente fortes. Numa palavra, mais sábios e prudentes que os filósofos e que os grandes, são os pobres e humildes que se inserem nas fileiras de Deus e optam por seguir a «lógica» de Deus. Se a salvação e a felicidade globais têm o seu fundamento em Deus (e é essa a proposta cristã), então, segundo esses critérios, os que põem a sua confiança em Deus têm o futuro assegurado. Enfim, no fundo, tudo depende do conceito que se tem de felicidade e do alcance que se atribui ao futuro. E, nesse aspecto, essa nova maneira de ver as coisas não se dá sem uma autêntica conversão da mentalidade «mundana» para a mentalidade de Deus.