1. TRADIÇÃO E TRADIÇÕES
 

 

Os fariseus já não gostavam muito de Jesus e dos seus amigos. Primeiro, porque não procediam como eles diziam. E depois também porque Jesus não lhas poupava. Então, depois da cura dum homem com a mão ressequida, a fúria dos fariseus ainda aumentou mais. E foi sobretudo a partir desse momento que os fariseus começaram a andar à cata, para ver se apanhavam Jesus e os seus amigos nalguma falha para os poderem acusar e condenar...

 

Duma vez, por exemplo, houve alguns fariseus que notaram que vários dos discípulos de Jesus não lavavam as mãos antes de comer. Segundo o que dizia a Lei, antes de comer, era necessário lavar sempre as mãos; mesmo que estivessem já lavadas. Ora, os discípulos, que se calhar até nem sabiam lá muito dessas coisas, não ligavam muito a todas essas regras de urbanidade...

 

Então, ao verem que eles não tinham lavado as mãos, esses fariseus aproveitaram logo a ocasião para porem Jesus à prova: «Porque é que os teus discípulos não obedecem à tradição e comem sem lavar as mãos? É uma vergonha! São todos uns ateus, não respeitam a Deus nem as suas leis». A resposta de Jesus não se fez esperar. E, diga-se de passagem, foi bem dura. Talvez tenha sido esta a ocasião em ele usou as palavras mais duras da sua vida pública. E, mais uma vez, os principais visados foram os fariseus, que se julgavam perfeitos e que sabiam tudo.

 

Aos fariseus interessava muito mais a letra da lei do que o espírito. Então, Jesus respondeu-lhes mesmo à letra (passe a expressão!): «Imaginem só quem está a falar! Então, não lavar as mãos antes de comer é desrespeitar a Deus? Que é que tem a ver uma coisa com outra? Vós é que desrespeitais a Deus, embora digais que cumpris a Lei! Então Moisés não diz que se deve honrar o pai e a mãe? Diz! Pois bem, vós, para não dar nada ao pai e à mãe, ides à igreja, pondes o que seria devido aos pais no altar da oferendas e depois dizeis que aquilo já não se pode dar a ninguém porque é oferta dada ao Senhor. Quem é que vos disse que isso está certo? Deus não ensinou nada disso. O que Deus ensinou foi que devemos amar o próximo como a nós mesmos. Então e quem é mais próximo do que o próprio pai ou a própria mãe? Hipócritas, honrais a Deus só com os lábios. O vosso coração está muito longe dele. O que vos preocupa é aparecer bem diante dos outros. Mas ficai a saber uma coisa: não é a exterioridade que interessa a Deus; o que Lhe interessa é o que vai no coração. O resto é secundário...».

 

E Jesus continuou: «Vós, se calhar, sois capazes, de pagar a décima parte das hortaliças do vosso quintal, mas desprezais o mais importante da Lei, que é a justiça, a misericórdia e a fidelidade. Coais um mosquito e sois capazes de engolir um camelo... Vós julgais que cumpris a Lei porque pagais a décima parte do que possuís. E então os desgraçados que não têm nada? Estão condenados, porque não têm nada para pagar? Hipócritas! É essa a ideia que fazeis de Deus? Porventura julgais que Deus é tão mesquinho como vós? Vós, que sabeis tanto, nunca ouvistes dizer que os caminhos de Deus são diferentes dos vossos? Quem vos garante que o que vós dizeis e fazeis é o que Deus quer? Hipócritas! Tende mas é vergonha e respeitai esta pobre gente que não tem nada e que também ela foi feita à imagem e semelhança de Deus!...».

 

Depois, Jesus voltou-se para todos os que já se tinham junto ali por causa da discussão e disse-lhes: «Ouvi o que tenho para vos dizer. Não é o facto de se comer ou não com as mãos lavadas que tem importância. Isso é secundário. Não é o que entra pela boca que torna puras ou impuras as pessoas». Todos os presentes ficaram pasmados a olhar para ele. Até se notava espanto e admiração nos seus próprios discípulos. E ele: «Então, ainda não compreendestes? Não compreendeis que tudo o que entra pela boca, depois sai? Agora, o que sai da boca das pessoas é que as torna impuras. O que sai do coração é que torna as pessoas boas ou más. Como sabeis muito bem, é do coração que procedem os maus pensamentos, os assassínios, as infidelidades, os roubos, os falsos testemunhos, as blasfémias. Isso sim é que é mau. E não o facto de se comer com as mãos por lavar».

 

Após essa discussão, Jesus saiu do lugar com os discípulos. Dirigiram-se para uma região chamada Caná. Aí, segundo a tradição dos fariseus, vivia muita gente sem lei nem fé, ateus que não respeitavam a Deus. Era gente que não sabia nada da Lei da Moisés. Segundo a maneira de ver dos fariseus, claro! Mas a verdade é que a Lei de Moisés tinha sido de tal maneira desnaturada por esses mesmos fariseus com milhares e milhares de prescrições, que às pessoas mais simples era impossível saber aquelas coisas. Enfim, tinham-lhe tirado a alma e o coração...

 

Acontece que, ao entrarem nessa região, veio ao encontro de Jesus uma mulher de lá. Ela já tinha ouvido falar de Jesus e ao vê-lo não hesitou um momento: «Senhor, Filho de David, tem piedade de mim! É o seguinte: a minha filha é cruelmente atormentada pelo demónio!». Então, uma mulher destas é que era uma mulher sem fé? Não! Podia não saber de leis, mas era duma fé inquebrantável; senão, não tinha feito um tal pedido! No coração, ela tinha muito mais fé que todos os fariseus juntos...

 

Mas, mesmo assim, Jesus quis provar a sua fé. E por isso fez que não percebeu o pedido dela. Se assim podemos dizer, como que fingiu que nem sequer reparou nela. Mas ela não se importou. Continuou a gritar a mesma coisa. Então, os amigos de Jesus, já fartos de tanto ouvir gritar, disseram ao Mestre: «Vá, faz qualquer coisa. Ao menos, despacha-a, para que não continue a importunar-nos sempre com os seus gritos!»...

 

Jesus então parou e respondeu aos discípulos (mas de maneira que a mulher cananeia ouvisse também): «Como sabeis, eu não fui enviado senão aos judeus. Esta mulher não é judia. Por isso, não há nada a fazer!». Mas a mulher não desistiu. Mas Jesus, para provar ainda mais a fé dela, pronunciou uma frase aparentemente duríssima: «Não se pode tomar o pão dos filhos para o dar aos cachorros!». Mas ela respondeu-lhe logo: «É verdade, Senhor, mas até os cachorros comem as migalhas que caem da mesa dos seus donos!». Aqui, Jesus não resistiu. Ela tinha ultrapassado maravilhosamente a prova. E então respondeu-lhe: «Mulher, tu tens uma grande fé. Pois bem, faça-se como desejas!». E logo a sua filha ficou curada.

 

Este encontro com a mulher cananeia foi um alívio. E Jesus foi dizendo aos discípulos: «Acautelai-vos das pessoas como os fariseus. É gente falsa e hipócrita. Por fora, são muito simpáticos e brilhantes até, mas, por dentro, são piores que o diabo. Se estiverdes com atenção, não é difícil descobrir o que vai por dentro das pessoas. Vós sabeis que a árvore se conhece pelos frutos. Pois bem! Em relação às pessoas, é a mesma coisa: depois das palavras, esperai pelos frutos. E não tenhais medo do que elas possam dizer. O que vos deve preocupar é o que vos diz o coração e a consciência. Porque a Deus nada passa despercebido. Ele, que vê tudo, vê muitíssimo bem o que se passa no coração. E isso é que é importante!».