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Constata-se uma coisa importante na vida de qualquer pessoa. É o seguinte: a pessoa vive sempre em função de algo mais perfeito. Parece que nunca estamos contentes com o que temos e com o que somos. Na vida andamos sempre à procura de algo mais. Andamos à procura de algo que está para além de nós mesmos. De esperança em esperança, o homem vai construindo sempre mais: aquilo a que alguns costumam chamar progresso. Outros chamam a essa procura contínua felicidade. Desde que o homem é homem, sempre isso tem acontecido. A esperança de algo melhor é a mola que leva o homem, através da história, a fazer coisas.
Sob o ponto de vista humano, a essa procura incessante das pessoas por algo mais e melhor dá-se o nome de busca da felicidade. Mas há outros pontos de vista. Há, por exemplo, também o ponto de vista religioso. Sob este ponto de vista, o homem procura uma grandeza que o ultrapassa. É uma espécie de procura da divindade. Por outras palavras, o homem como que sente em si mesmo um desejo inconfessado de ele próprio ser a razão da sua própria existência. Ele próprio sente o desejo inconfessado de ser a regra de si mesmo.
Esta sede insaciável é a marca e o selo de Deus. É a marca da divindade. É uma espécie de saudade dum estado antigo de graça perdido. É a saudade do chamamento de Deus. É a voz de Deus que ecoa no coração e chama por nós. A procura nem sempre segue os caminhos certos. Há frustrações que põem tudo a perder. Mas as pessoas, inconscientemente, são atraídas por algo que em linguagem religiosa se diz «imagem e semelhança de Deus». As pessoas como que andam à procura do fotograma original da sua própria identidade.
Agora, o que não podemos esquecer também é que a cópia nunca é igual ao original. Nós somos a cópia dum original que está escondido, digamos assim, na essência de Deus. A cópia é parecida ao original, mas não é o original. Tem sempre imperfeições. Tem sempre limites. No caso da pessoa humana, trata-se duma cópia que tem personalidade própria: inteligência, vontade, desejos, sentimentos, instintos; enfim, tudo o que constitui a pessoa. O erro da cópia (repito, neste caso, da pessoa humana), é pretender ser e substituir-se ao original...
Seja como for, é legítimo que o homem queira ser grande, queira ser mais, queira ser sempre algo mais. Mas nunca pode esquecer que só poderá construir a sua grandeza na medida em que se assemelhar cada vez mais ao original. Utilizando termos religiosos, então podemos dizer o seguinte: o homem será tanto maior quanto mais se aproximar da imagem original, que é o próprio Deus. Por isso, querer ser independente de Deus e afastar-se dele não conduz a uma maior dignidade do homem, mas sim precisamente o contrário...
Aqui está o segredo que muitos de nós temos que descobrir. Confrontarmo-nos com o nosso original que é Deus, significa que podemos chegar longe, mas significa também que temos que admitir os nossos limites. O segredo para os nossos anseios passa precisamente pela nossa capacidade de admitir que somos simplesmente cópias, que somos criaturas, que dependemos de Alguém, que dependemos de Deus. Dependemos dele, primeiro para existir e, depois, para progredir e alcançar a felicidade tão desejada e arduamente perseguida.
Vamos partir do suposto, verdadeiro, de que somos inteligentes. Uns mais que outros, é verdade, mas todos inteligentes. Bom, sendo assim, então podemos chegar a uma conclusão muito simples: e é que não somos infinitamente inteligentes. Como diria o outro (e a gente nunca sabe quem é o outro), por mais inteligentes que sejamos, nunca somos suficientemente inteligentes. Se é assim, então talvez tenhamos que admitir que há certas coisas que não estamos em condições de compreender. Então, talvez sejamos capazes de admitir também que, se calhar, há pelo menos Um que é infinitamente mais inteligente do que nós...
Quem sabe (admitamo-lo!), esse Alguém veja as coisas de maneira diferente de nós. Talvez nos fique bem admitir que esse Alguém, a quem podemos chamar também Deus, tem os seus caminhos e que não são exactamente os nossos. Foi uma experiência que até os pais de Jesus, por exemplo, tiveram que fazer. Aos chegar aos 12 anos, eles levaram Jesus a Jerusalém. Cumpridas as obrigações que estavam previstas na Lei de Moisés, iniciaram a viagem de regresso a Nazaré (que distava – e dista! – da capital mais de 120km). Mas Jesus de propósito fica para trás sem conhecimento de José e Maria...
O evangelista diz-nos que os pais de Jesus não compreenderam o motivo do procedimento do filho. E, no entanto, eles souberam respeitar esse facto. A fé levou-os a fazer um raciocínio muito simples: «Ele é o enviado de Deus. Portanto, se assim procedeu, Ele lá deve ter tido os seus motivos! Vamos ver o que se segue». A atitude de Jesus foi uma atitude estranha? Foi, em termos humanos, mas José e Maria já estavam habituados à forma estranha de proceder de Deus. A começar pela maneira como nasceu em Jesus Cristo. Não haja dúvida que um Deus infinitamente perfeito, que se faz homem e se sujeita a todas as etapas de crescimento e aperfeiçoamento dos homens, é um Deus estranho...
O amigo ouvinte não me leve a mal que eu insista neste ponto: Deus tem a sua forma estranha (para nós!) de proceder. Isso é verdade, mas não temos nada que estar a discutir essa maneira estranha de Deus proceder. E o facto é que os cálculos que nós fazemos não são os da matemática de Deus. A matemática de Deus é diferente da nossa. Disso não tenhamos dúvida.
Como parece evidente, estou a falar de matemática em sentido figurado. Mas não tanto como isso. Se não, vejamos. Para nós, por exemplo, um ano é um conjunto de 365 dias (algo, de resto, convencional, porque às vezes até tem 366 e para outras culturas os anos são contados de outra forma), mas para Deus esse cálculo não tem sentido nenhum, porque para Ele um ano ou um dia é a mesma coisa e dez mil anos são a mesma coisa que um minuto ou um segundo. Sendo assim, não tem sentido nenhum queixarmo-nos de que Deus não previu isto ou aquilo ou não impediu aquilo e aqueloutro.
Se não admitimos a existência de Deus – e estamos nesse direito – não temos nada de que nos queixar de quem não existe. Se admitimos a existência de Deus, então tenhamos a coragem de admitir, duma vez por todas, que Ele lá sabe porque é que faz as coisas e como as faz. Se aceitamos que a Deus nada é impossível, deixemos a Ele resolver os problemas segundo os seus tempos e segundo os seus cálculos, que não são exactamente os nossos. Por mais incrível que pareça, Deus, a quem nada é impossível, um dia decidiu fazer-se homem em Jesus Cristo. Tornou-se alguém que passou a conviver connosco. E não fez só isso. Resolveu também que, sendo todo-poderoso, não Lhe era impossível viver no próprio coração das pessoas. É uma forma estranha de ser Deus, mas a verdade é que, para quem tudo pode, nada é impossível.