1. HERDEIRO ERRANTE

 

E o inesperado aconteceu. Sara tinha passado a idade de conceber, mas ficou grávida contra todas as expectativas. Abraão, claro, estava todo radiante. Entretanto, como tinham tomado conhecimento do que tinha acontecido em Sodoma e Gomorra, já tinham abandonado o local onde estavam. Foram para um país mais fértil. Ali, sim, podiam começar uma vida um pouco mais estável. Não precisavam de andar sempre dum lado para outro à procura de boas pastagens para os gados. E assim, pouco a pouco, como que abandonaram a vida errante. Fixaram residência e deixaram de pensar em voltar para a terra. Isso já tinha ficado para trás.

 

Entretanto, chegou a altura de a criança nascer. Na tenda, para assistir Sara no momento do parto, havia outras mulheres. Já era quase de noite quando uma das escravas veio dar a notícia: a criança tinha nascido e era um rapaz. Abraão nem queria acreditar no que via. Quem é que podia imaginar uma coisa dessas! E sorriu todo contente.

 

Esse foi um dos dias mais felizes da sua vida. Finalmente! Esse era o filho há tanto tempo esperado, o filho da sua Sara! Abraão entrou. Ao lado de Sara, estava o bebé. Era de facto um rapagão. Sara não parava de chorar de contente... Oito dias depois, puseram-lhe o nome de Isaac. Em hebraico este nome – Isaac – quer dizer «aquele que traz alegria».

 

Quando Isaac completou um ano de idade, Abraão preparou uma grande festa de aniversário. Sentaram-no numa almofada especial. Estavam lá ainda a escrava Agar, que tinha dado a Abraão o filho Ismael. Este teria sido o natural herdeiro de Abraão, se Isaac não tivesse nascido. Mas assim perdia todos os direitos. Embora fosse filho de Abraão, não passava também ele de escravo. E isso era uma coisa que ele já compreendia. É, pois, natural, que tivesse ficado cheio de ciúmes. Afinal, a ele nunca tinham feito uma festa de aniversário daquela maneira!

 

E então a reacção de Ismael não foi a melhor. O facto é que ele ia quase estragando a festa toda. E a sua mãe nada fazia para o ter quieto. Fartou-se de fazer brincadeiras estúpidas. Diga-se, de passagem, que a sua mãe Agar até mostrava um certo ar de satisfação. Também ela estava cheia de inveja. Sara naturalmente não gostou nada do que se passou. E, à noite, não deixou perder a ocasião para se queixar logo ao marido: «Abraão, aquilo foi demais. O Ismael esteve simplesmente impossível! Mas o pior é que aquela Agar até estava a gozar com a paródia!

 

«Não, isto não pode continuar assim – disse Sara. Não, não pode ser. Ismael fez tudo para desviar a atenção sobre si, porque quer ser o primeiro e tirar o lugar a Isaac. Ora, eu não posso admitir isso de maneira nenhuma. E, claro, Agar está por trás de tudo isto. Tens que resolver a situação duma vez por todas. Tens que a mandar embora desta casa...».

 

Abraão ficou profundamente desgostado com o sucedido. E a exigência da sua mulher pareceu-lhe exagerada. Mas que é que podia fazer? Ele amava o seu filho Ismael, mas Isaac era o herdeiro legítimo. E, sendo assim, ele tinha que tomar uma decisão. Foi uma decisão precipitada, mas em circunstâncias semelhantes, as coisas acontecem sempre assim. No dia seguinte, mandou chamar Agar e Ismael e disse-lhes sem muitos rodeios que tinham que deixar imediatamente o local. Deu-lhes um pouco de pão e água e obrigou-os a sair. Simplesmente assim...

 

A decisão de Abraão não foi nada fácil. Ismael, afinal de contas, também era seu filho. Só que, desde que houvesse filhos legítimos, os outros, mesmo que tivessem nascido antes, eram excluídos da herança. Abraão estava afeiçoado a Ismael, como é natural, mas não podia proceder doutra maneira. Era preciso manter a paz em casa e, para isso, não havia outra solução. Mas consolava-o a ideia de que Agar era uma mulher de coragem e era bem capaz de criar o filho, custasse o que custasse. Por outro lado, o facto de Sara lhe ter dado aquele filho, quando já não o esperava, fazia-o pensar...

 

O ter que mandar embora Ismael e a sua mãe deixou Abraão desolado. Mas consolava-se pensando: «Não sei, mas Deus deve querer alguma coisa de nós. Que é que Ele quererá ao permitir que a minha mulher exija que mande embora Agar e Ismael? Sei lá o que lhes vai acontecer, coitados! Mas, pronto, já não posso voltar atrás. Agora já é tarde. Eles já se foram embora. Mas estou convencido de que Deus não os vai abandonar. Custa-me muito pensar nas dificuldades que irão encontrar pela frente, mas tenho a certeza que Deus os vai proteger...»

 

Agar e Ismael saíram e perderam-se no deserto. No deserto verdadeiro; e no deserto da vida. E, se a vida no local onde tinham vivido até esse momento, já era complicada, muito mais difícil se tornou no deserto. Bem depressa a comida e a bebida se acabaram. Agar ficou agoniada, desesperada. Como é natural. Estava preocupada com a saúde e até a sobrevivência do seu filho. É verdade que se sentia também cheia de medo por estar só, mas Ismael era a sua principal preocupação.

 

Com o passar dos dias, Ismael ficou tão fraco que já nem se tinha em pé. Só com grande esforço é que a mãe o conseguia levantar de novo. Mas ela resistiu até ao limite das forças. Por fim, totalmente exausta, também ela desistiu e deixou-o deitado no chão. Agar ainda experimentou dar alguns passos à procura de alimento, mas caiu imediatamente a soluçar e a chorar de desespero. Não aguentava aquele espectáculo: o seu filho a definhar, a morrer de fome e de sede!

«Então este é que é o Deus de Abraão?» – gritou ela no seu desespero. «Que Deus é este que quer que nós dois, eu e o meu filho, morramos, para que Isaac viva? Então o Deus de Abraão não é meu Deus também?»... Agar fez ainda um último esforço e reparou que, à sua frente, havia uns arbustos. Então ela pensou para consigo: «Ou é desta vez ou então temos que nos sujeitar à nossa sorte. Tem que haver acolá água, um poço, sei lá». E, nesse momento, pareceu-lhe que ainda lhe restavam algumas forças. Eram as últimas. Levantou-se e foi até ao local. Lá havia umas árvores e atrás das árvores havia água. Voltou para junto do seu Ismael, molhou-lhe primeiro a boca e depois deu-lhe de beber. E um sorriso se desenhou na sua face esquelética.

 

Encorajada, tentou encorajar também o seu filho: «Ismael, o teu pai Abraão abandonou-nos, mas Deus não nos abandonou. Ele também é o nosso Deus. Tens que ter coragem, para seres o pai dum grande povo». E, de facto, Deus protegeu o menino que cresceu no deserto e aí se tornou um hábil guerreiro. Aí ficou a residir e aí deu origem a um grande povo. A história de Agar e Ismael aqui terminam bruscamente. Corre a tradição que diz que Ismael terá sido a origem dos povos árabes que nós conhecemos actualmente. Esta, porém, é uma conclusão que eu não posso determinar, porque não tenho elementos suficientes para o fazer. Mas é uma hipótese que não repugna absolutamente nada. Seja como for, fica demonstrado que, apesar de tudo, Deus não abandona os seus filhos, sejam eles quais forem.