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Sodoma era uma cidade com problemas muito parecidos aos das cidades dos nossos dias. Já naquela altura, reinava uma grande confusão. Havia simultaneamente uma riqueza escandalosa e uma miséria intolerável. Havia muito desemprego. E os que trabalhavam eram explorados, levando uma vida de autênticos escravos. A recompensa que recebiam pelo trabalho era tão escassa que não dava para nada. A maioria dos trabalhadores vivia em barracas sem quaisquer condições. A vida deles era realmente uma vida de escravos.
Havia também aqueles que aproveitavam para roubar a torto e a direito. Quando surgia qualquer oportunidade para meter barulho, eram autênticas batalhas campais. Os ricos eram poucos, mas ricos demais. Tinham os seus criados, os seus escravos. Praticamente não lhes pagavam senão a comida (e pouca!) e até os filhos dos criados não tinham outro destino senão serem, também eles, escravos. De resto, tinha sido à custa do suor e do sofrimento dos escravos que eles tinham enriquecido. Só pagavam bem aos capatazes que estavam encarregados de controlar tudo. A esses convinha-lhes pagar bem, para os terem também controlados.
Os peregrinos, que no dia anterior tinham estado com Abraão, chegaram finalmente a Sodoma e perguntaram por Lot. Um rapaz com cara de poucos amigos indicou-lhes o caminho. Quando chegaram a casa de Lot, este estava sentado à porta. Ao vê-los chegar, levantou-se e foi imediatamente ao seu encontro. Lot era um pouco diferente das outras pessoas. Era uma espécie de imigrante e tinha outros hábitos. Um deles era o de receber os hóspedes com todo o respeito. Desfazendo-se, pois, em amabilidades, pediu-lhes para entrarem em casa.
Eles não queriam entrar, mas Lot tanto insistiu que eles resolveram passar ali a noite. Lot mandou preparar o jantar. A meio do jantar, um dos peregrinos disse-lhe: «Hoje estivemos com o seu tio Abraão. Ele é que nos falou de si. Nós viemos para o pôr de aviso contra algo de terrível que vai acontecer nesta terra. Esta cidade está perdida. A maldade é tanta que Deus vai permitir que os seus habitantes se desbaratem uns aos outros. No entanto, nós prometemos uma coisa ao seu tio. Ele intercedeu por esta cidade e nós combinámos uma coisa: se encontrarmos aqui pelo menos dez pessoas como o senhor, então a cidade ainda tem sorte: será poupada. Ora bem, o senhor será capaz de nos apresentar essas dez pessoas»? Lot coçou a cabeça e encolheu os ombros. E depois disse apontando lá para fora: «Sei lá! Sinceramente não sei. Não sendo daqui, conheço pouca gente. De resto, eles não confiam muito em pessoas de fora!»...
«Entretanto, lá fora, em frente da casa de Lot, juntava-se uma multidão cada vez maior. É que já se tinha espalhado a notícia de que aqueles três peregrinos tinham vindo a ameaçar a cidade. E, claro, eles não iam deixar passar a ocasião. Lot foi lá fora falar com aquela gente toda para acalmar os ânimos e para explicar o que se tinha passado. Eles lá dispersaram, mas voltaram algum tempo depois, quando os hóspedes e a família de Lot ainda não estavam deitados. Desta vez, porém, eram ainda mais numerosos. Vinham até velhos e crianças. Cercaram de novo a casa de Lot e chamaram por ele com ameaças: «Onde é que estão esses tipos que ficaram em tua casa? Ou os trazes cá para fora ou então já sabes o que te acontece; a ti e à tua família! Nós queremos ter uma conversa a sério só com eles»!
Lot usou de toda a sua esperteza e de todas as astúcias para acalmar aquela gente. Mas, vendo que não podia fazer mais nada, mandou trancar imediatamente a porta. Só que a multidão não estava para mais aquelas e procurou forçar a entrada. De dentro, reforçaram a porta com mesas, cadeiras e até um armário. Felizmente aquilo resultou e assim ninguém conseguiu entrar.
Mas a situação assim tornava-se insustentável. Então, um dos três hóspedes disse assim a Lot: «Você tem que sair daqui já. Tem que abandonar a cidade, porque senão está perdido. Mas, se fugir, salva-se. Olhe, oiça uma coisa: esta cidade é uma cidade perdida. Nem o Deus de Abraão, que é também o seu, pode salvar esta cidade, porque ela própria não quer ser salva. Deus não vai forçar as coisas. As pessoas querem assim? Pois, é isso mesmo que vai acontecer! Você e a sua família podem salvar-se. Aliás, é a única que se pode salvar nesta cidade».
Aquela conversa demorou ainda um pedaço. Lot queria saber notícias do seu tio que, aliás, tinha abandonado em circunstâncias um pouco estranhas e, para dizer a verdade, não muito amistosas. Entretanto, o barulho continuava lá fora. De tal maneira que Lot nem sequer queria acreditar. Mas, por outro lado, havia dentro de si qualquer coisa que lhe dizia que ia mesmo acontecer uma desgraça.
E então tomou uma decisão rápida, própria destas ocasiões em que não se fazem muitos raciocínios e muito menos contas. Saíram todos, incluindo os hóspedes, por uma janela da cozinha, nos fundos da casa, e esgueiraram-se com cuidado até ao muro que circundava a cidade. Mas da família de Lot só a mulher e duas filhas quiseram acreditar. Os outros membros da família não tomaram aquilo a sério e recusaram-se a partir.
Saíram da cidade era ainda noite e caminharam sem parar. E, no meio de tanta confusão, essa família em fuga perdeu também os três peregrinos, que nunca mais voltaram a ver. Lot, a mulher e as duas filhas já estavam bastante longe da cidade quando voltou a escurecer. De repente ouviu-se um forte estrondo. Eram os sinais claros dum terramoto. A terra estremeceu toda. Foi como se tudo fosse sacudido violentamente. O terramoto foi acompanhado dum incêndio pavoroso. As casas caíam como se fossem bonecos e jogos de crianças. E os habitantes morreram debaixo dos escombros. Dava a impressão que tinha caído sobre aquela cidade enxofre e fogo. Era um espectáculo horroroso. Lot assistia de longe com a alma em dor e sofrimento, sentado numa pedra a chorar a sorte dos seus familiares.
A sua mulher, porém, não aguentou e, no dia seguinte, decidiu voltar com as filhas à cidade para ver se ainda encontrava alguém... Lot nunca mais a viu. E agora estava sozinho. Sozinho e sem nada. Ele lá tinha o seu temperamento (e nisso era parecido com o tio), mas, no fundo, era um homem bom. Toda a vida se tinha esforçado por viver a bem com todos os seus vizinhos. Imaginar que tudo pudesse acontecer não lhe passava de maneira nenhuma pela cabeça. Era o espectáculo mais aterrador que jamais tinha visto na sua vida!
Lot tinha até arranjado umas boas economias, porque era um homem prático e com queda para o negócio. Mas agora via tudo isso desfeito em cinzas. Não havia nada a fazer. Paciência! Mas o que mais lhe custava era ter perdido todos os seus amigos, os seus familiares e sobretudo a sua mulher e as filhas. O que iria agora fazer? Nem ele sabia. Aliás, nem ninguém chegou jamais a saber exactamente o que Lot fez da sua vida. O desespero pode-lhe ter pregado uma partida, mas o facto é que, a partir desta altura, nunca mais se sabe nada de Lot.