1. UMA ARCA MISTERIOSA
 

 

Os judeus já tinham aceitado a sua situação de escravos na Babilónia. Isso, porém, não impedia que se reunissem para pensar e ver se a situação ainda podia ser modificada. Em todo o caso, queriam compreender um pouco melhor as razões por que lhes tinham acontecido tantas desgraças. Apesar de tudo, no fundo, eram homens religiosos. E, por isso, procuravam descobrir também o que é que Deus queria deles. O que lhes estava a acontecer era certamente uma experiência dolorosa, mas Deus certamente lhes estava a dizer alguma coisa.

 

Entre eles havia bons narradores, que lhes recordavam as histórias do passado. E, mais do que isso, procuravam descobrir a razão última das coisas. Por isso, recordavam como é que eles achavam que tinha começado o mundo, como é que tinham aparecido os primeiros homens e como, logo no início, tinha havido ódio e violência. Ódio e violência que, de resto, se estavam a repetir também agora. Uma das histórias que recordavam com saudade era a «epopeia da arca misteriosa». Recordavam com frequência a história de Noé e alimentavam uma ligeira esperança de que Deus não os iria abandonar assim nas mãos dos babilónios...

 

Já se tinha passado muitíssimo tempo desde que Adão e Eva e os seus filhos tinham morrido. Agora, passados vários séculos, havia muita gente sobre a face da terra. Mas o que acontece é que havia cada vez mais gente que não se importava nada com Deus. Havia cada vez mais pessoas que se julgavam donas de tudo, pisando os mais fracos e enriquecendo à custa da miséria alheia. Os costumes eram cada vez mais depravados...

 

Então, uma vez, alguém contou a história desta situação nestes termos. Eu não sei o que realmente terá acontecido. Mas diz-se, desde tempos imemoriais, que, perante a situação caótica em que estava a terra, Deus decidiu que já era tempo de fazer qualquer coisa. Os homens estavam a arruinar cada vez mais o belo mundo que Ele tinha criado. E, sendo assim, as coisas tinham que mudar. Para as pessoas, Deus já não existia e então era necessário que elas compreendessem o que significa não querer saber de Deus para nada. É que as pessoas estavam realmente tão esquecidas de Deus que, um dia, Deus decidiu mesmo dar-lhes uma lição... Nesse sentido, é uma mensagem sempre actual.

 

Felizmente, havia um homem que honrava e agradava a Deus, cumprindo os mandamentos que Ele tinha ordenado. Noé era esse homem em quem Deus podia confiar. Então, um dia, encontrou-se com ele e disse-lhe: «Noé, meu amigo, como vês, isto está cada vez pior. Não há ninguém que se salve. Mas esta situação assim não pode continuar. Eu tenho que fazer alguma coisa para compor as coisas. As pessoas já não se importam comigo. Mas não sabem que, sem Mim, não podem fazer nada. Nem sequer respirar. Pois bem, acho que vou deixar de os proteger. O facto é que o mundo não pode continuar assim. Eu acho que vai voltar tudo à situação inicial, quando não havia nada sobre a face da terra...».

 

E Deus continuou: «Pelo rumo que as coisas levam, os homens vão dar cabo de tudo. Está tudo a ficar muito confuso: a terra, as nuvens, as águas... Enfim, será o fim de tudo. Mas assim também não pode ser. Para impedir que seja a ruína completa, Eu tenho que fazer alguma coisa. É preciso salvar o que há de bom e precioso no coração do homem; aquilo que ainda se pode salvar. É por isso que te escolhi a ti, Noé, à tua mulher, aos teus filhos, aos teus netos e aos teus animais. É tudo o que posso fazer, já que os outros não querem saber de Mim para nada...

 

Noé ficou assustado com estas palavras. O que iria acontecer? E o que é que ele próprio teria que fazer para se salvar? Estava ele ainda a cismar nestas coisas quando Deus lhe disse: «Noé, tu vais fazer exactamente como eu te vou indicar. E desenhou-lhe uma espécie de navio: da proa até à popa terá 150 metros por fora. A parte mais larga terá 25 metros e terá uma altura de 25 metros, da quilha ao convés. Essa grande arca terá três andares. Trata de arranjar lugar para todos os animais e para todos os teus familiares. Não te admires do que te estou dizer, mas podes construir o barco ali atrás da tua casa. Só terá uma grande porta, no segundo andar e uma janela lá em cima. Achas que és capaz de fazer isso»? Noé pensou um pouco, olhou demoradamente para o desenho e disse: «Bem, se quer que eu faça, acho que sim, que posso. Pelo menos vou tentar».

 

Após outra pausa de silêncio, Noé prosseguiu: «Afinal, para que é tenho que construir esse navio? Vai acontecer alguma desgraça»? Então Deus explicou-lhe: «A terra está corrompida e os homens só pensam no mal. E, por isso, tudo vai ser exterminado. Vai haver água por todos os lados. Os rios vão transbordar e toda a terra ficará alagada». E Deus foi-se embora. Noé ficou sozinho. Olhou ao redor e... não estaria a sofrer alguma alucinação? Então tudo iria acabar assim? Não era possível! Realmente tinha que fazer alguma coisa para impedir que a vida fosse totalmente destruída. Era, de resto, essa a impressão com que tinha ficado... E Noé, embora sem compreender bem o que lhe tinha acontecido, começou a trabalhar. Chamou toda a família. Alguém tinha que fazer aquele trabalho. Não podia ser ele sozinho. Ele já tinha idade e aquele era um trabalho imenso. E, assim, todos deitaram mãos à obra. Todos ajudavam na construção daquela arca; desde os mais velhos até aos mais novos; e até os próprios animais.

 

Antes de prosseguir a história, eu gostaria de esclarecer, mais uma vez, que estamos perante uma linguagem especial. Há vários indícios pelos quais podemos concluir que realmente se trata de linguagem especial. Antes de mais, estamos ainda muito longe no tempo dos hábitos migratórios do tempo do autor da história. Nesses tempos, as pessoas talvez nem sequer soubessem o que era o mar. É muito possível que tinha havido uma inundação de vastas proporções. Ora, a impressão que esse facto terá causado terá sido aproveitada para transmitir uma determinada mensagem religiosa... Hoje, vem-nos à ideia logo a palavra «tsunami».

 

Em segundo lugar, a arca, se atendermos às medidas, seria uma espécie de transatlântico inconcebível para as possibilidades daquele tempo. O que denota o seu carácter lendário. Aliás, como é que era possível meter lá dentro todos os animais? Não apenas alguns, mas todos os animais do mundo. E se a palavra «todos» indicar apenas «muitos», como quando a gente diz «todo o mundo sabe»? Mais: o dilúvio está descrito duas vezes. Da primeira vez, fala-se dum par de animais de cada espécie; na segunda trata-se de sete pares. Não era o caso de alguém corrigir essa discrepância? Claro que era, se não se tratasse de números simbólicos.

 

Antes mesmo de concluir a narração, seja-me permitido fazer algumas observações finais para a conversa de hoje. Como me parece claro, trata-se de uma narração de tipo lendário. Hoje não é fácil descobrir com precisão a mensagem que o autor então queria transmitir. Seja como for, e em poucas palavras, pode-se dizer que o homem tem que aceitar as consequências do que faz. E depois, concluir que, apesar de todas as desgraças que acontecem, o homem tem dentro de si capacidades desconhecidas que o levam a fazer, em caso de necessidade, até o impossível para salvar as situações.