1. O FADO DUM TRISTE

 

Jeremias era um homem muito especial. Poderemos quase dizer que era um homem curioso. Na conversa anterior, eu disse que a leitura do livro que leva o seu nome nos conta coisas interessantes. Mas, agora, pensando bem, acho que, em vez de esperar que o amigo ouvinte vá fazer essa leitura, me compete a mim satisfazer algumas dessas curiosidades...

 

Jeremias gostava de caminhar pelas ruas da cidade de Jerusalém. E, nesses passeios, notava que havia muitos mendigos. Quase mais ninguém reparava neles. Mas ele, sim, ia notando tudo. E um dia notou também facilmente como os ricos comerciantes usavam medidas e pesos falsos para enganar os mais pobres, enriquecendo assim ainda mais e mais depressa. Ao notar isso, não foi capaz de ficar indiferente; ao contrário do que acontecia com a generalidade das pessoas...

 

Ora, um dia, aconteceu que, ao passar por um grupo de pessoas, Jeremias ouviu dizer:

«Senta-te aqui ao pé de nós».

Era uma espécie de taberna daquele tempo. Pediram ao dono para encher de novo todas as canecas:

«À tua saúde, Jeremias!», disseram eles.

Mas, ao brindar a saúde, o copo de Jeremias foi ao encontro de outro com tanta força que ambos se quebraram. Os cacos e o vinho espalharam-se pelo chão.

 

Jeremias então aproveitou logo a oportunidade para tirar uma conclusão:

«Ouçam-me, por favor! É assim como estes cacos que estão as coisas no nosso país. O que aconteceu com estas canecas é o que vai acontecer também connosco. Toda a gente aqui na cidade parece satisfeita, mas não se dá conta que está no fim. Infelizmente, só depois de tudo ficar quebrado, é que se pode recomeçar. Prestai, pois, atenção ao que vos digo!...».

 

A conversa na taberna continuou no mesmo tom. Jeremias dizia:

«Mas serei só eu que me preocupo com estas coisas»?!

Todos ficaram a olhar para ele de boca aberta, sem saber o que responder. Eles estavam ali só a tomar uns copos, mais nada. E vinha agora este maduro falar de desgraças. Ora, ora, percebiam lá eles de política! Não, ninguém estava a entender a conversa dele. O dono da taberna é que não se ficou:

«Ah, isto não pode ficar assim. Alguém vai ter que me pagar as canecas». Jeremias não teve outro remédio senão ouvir a queixa. E então saiu logo para ir comprar duas canecas novas... Foi à procura duma olaria.

 

O oleiro, por acaso, nessa altura, estava a acabar um vaso alto e bonito.

De repente, para admiração de Jeremias, esborrachou-o todo, dizendo:

«É uma pena, não é? Pois é, mas é que, sabe, o raio do vaso não me agradava. Havia algo que não me agradava. Havia uma bolha de ar no barro ou assim e... pronto, acho que é preciso começar tudo de novo. É que, senão, depois o vaso não presta».

Jeremias ficou a olhar para ele ali parado. E então compreendeu:

«Assim é também com Deus e com os homens. Deus é o oleiro e nós somos o barro. Se Deus vê que há algo de errado no barro, faz a mesma coisa que este oleiro: amassa de novo o barro para fazer outro vaso. E a mesma coisa faz com os povos...».

 

De regresso à taberna, Jeremias contou o que tinha visto ao oleiro e não perdeu a ocasião para lhes falar novamente da cidade e do povo:

«Pois é! A nossa cidade e o nosso país são como um vaso bonito nas mãos do oleiro. O problema é que esse vaso já está pronto e já endureceu. Nessa altura, já não há remédio. A única coisa a fazer é atirar com ele. É o que acontece com o nosso povo. Deus olhou para a nossa cidade e viu que já está tudo ressequido. Já não há bondade, não há justiça, não há temor de Deus, não há respeito pelos mais pobres e necessitados... É por isso que o pior vai acontecer. A nossa cidade e o nosso país vão ser deitados fora. Deus terá que quebrar esse vaso que somos nós e terá que amassar outro material para fazer um novo vaso».

 

A ideia do vaso ficou-lhe na cabeça. Jeremias tinha compreendido uma data de coisas com isso. Então, um dia, comprou um vaso grande e muito bonito. E foi levando o vaso pela rua, de maneira que todos pudessem ver. Claro que todos se viravam quando ele passava. Sempre era uma coisa estranha andar assim pela cidade. Depois, parou de repente numa praça e começou a dizer:

«Venham aqui todos».

Foi-se juntando um magote razoável de gente. Depois, levou-os ao grande templo e começou a falar:

«Que belas estátuas, não é verdade? Uma maravilha! Este templo é realmente um belo espectáculo. E os actos de culto são também esplêndidos e grandiosos! Pois bem, digo-vos uma coisa. Estes ornamentos, embora sendo de ouro, não passam de estátuas, não passam de espantalhos...»

 

As pessoas olhavam admiradas para aquele sujeito estranho. E Jeremias continuou:

«Cumprir ritos não é garantia de que tudo vai correr bem. Todos pensam que, se fizerem uma determinada porção de ritos, Deus não vai permitir que nada de mal aconteça. Pois bem, eu digo-vos que não é verdade!».

«Calma aí!» – gritou um dos mais velhos dos presentes – «Ora, ora, então agora já não se respeita nada? Nós levamos a religião a sério. Você, seu ateu, não tem o direito de estar a gozar com a religião e connosco. Só nos faltava mais esta»!

 

«Não é nada disso!» – interrompeu Jeremias – «Eu só gostava que todos compreendessem uma coisa: Deus não quer ser um deus como os deuses dos outros povos. Deus quer é que nós tratemos de auxiliar os pobres e de aliviar o sofrimento dos que sofrem. Em vez de esbanjarmos tudo em luxos inúteis. Se nós não sabemos ajudar-nos uns aos outros, é inútil estarmos a esperar por auxílios extraordinários... É esse exactamente o erro do nosso rei. Ele julga que é um valentão, que ninguém pode com ele. Ele espera que Deus resolva tudo automaticamente, que garanta a nossa vitória. Mas isso não é assim tão simples. Deus quer que nos protejamos e ajudemos uns aos outros primeiro...».

 

Os presentes continuavam intrigados e a não perceber nada. Então Jeremias continuou:

«O que eu vos digo é o seguinte: estão para chegar exércitos que vão transformar esta cidade numa autêntica ruína. Se as pessoas continuam a não se interessar por nada, vai ser isso mesmo que vai acontecer. É tão certo como dois e dois serem quatro. A nossa cidade é como este vaso bonito que tenho aqui. É bonito, não é verdade? Mas, se tiver um defeito, que é que fazemos com este vaso? Isto!...».

E Jeremias atirou com o vaso para o chão. Claro, o vaso espatifou-se em mil pedaços... Aquela gente ficou toda ali ao redor de Jeremias a olhar para os cacos. Infelizmente, nesse momento, apareceram as forças da ordem e prenderam Jeremias. Provavelmente já alguém as tinha mandado chamar. As pessoas ficaram parvas a ver aquilo que acontecia a Jeremias e começaram a cochichar. Mas ninguém protestou, ninguém mexeu palha, ninguém ajudou e defendeu Jeremias. Ele não tinha feito nada de mal, mas foi malhar com os olhos na prisão.

 

Na prisão, Jeremias queixava-se a Deus: Não ouves o que estão a dizer de mim? Ó Deus, para quê tudo isto?... Eu não queria nada disto. Eu quero ser uma pessoa normal. Quantas vezes procurei calar-me, mas não fui capaz. Tu, Senhor, seduziste-me e eu não fui capaz de resistir!...».