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Aquele jovem de semblante um pouco triste vinha de Anatot, que distava uns quatro quilómetros e meio de Jerusalém. Não é que lhe tivesse acontecido nada de especial para estar triste. Era o seu feitio. Um misto de tristeza e sentimentalismo. Esse jovem chamava-se Jeremias. Em sua casa, falava-se muito de Jerusalém e do grande templo que lá havia. Desde criança, sempre tivera grande desejo de ir ver a cidade; e sobretudo o templo. E agora, finalmente, já crescido, tinha a oportunidade de ir lá...
Jeremias achou Jerusalém uma cidade bonita. Mas a situação política é que não era nada animadora. E Jeremias intuiu logo que a situação política ainda podia piorar e complicar-se cada vez mais. É verdade que a grande Assíria já tinha entrado em declínio após a morte de Senaquerib e que já contava pouco no panorama internacional daquele tempo. Mas isso não queria dizer nada.
Outro país tinha aparecido no horizonte da política e iria ofuscar o esplendor da grande Assíria. Era a Babilónia, que ficava mais para Oriente. A Babilónia já tinha subjugado a Assíria e agora os seus exércitos dirigiam-se para o Sul. A sua ambição era chegar ao grande Egipto. O grande timoneiro desse exército era um militar ambicioso, que tinha o nome esquisito de Nabucodonosor. Parecia não haver ninguém capaz de resistir aos seus ataques.
As tropas da Babilónia continuavam a descer para o Sul em direcção ao Egipto. Judá ficava pelo caminho, mas não seria problema. Aliás, nem era algo que preocupasse muito o grande rei da Babilónia. Ele nem sequer pensava no assunto. Judá, com a capital em Jerusalém, era um país pequeno demais para ele se preocupar. É verdade que o nome de Jerusalém ainda exercia um certo encanto, mas o que Nabucodonosor queria mesmo era ir até ao Egipto. Judá seria uma presa fácil...
Entretanto, em Judá, ao rei Ezequias, sucedeu o rei Joaquim. Ao que parece, não era muito bom em estratégia. Um dia, resolveu libertar duma vez para sempre o seu país das invasões dos países vizinhos. Sabia perfeitamente da antiga grandeza do Egipto. Pensou então que era altura para se aliar com Egipto para lutar contra o invasor. Só que cometeu um erro que já um dos seus antecessores, Acaz, tinha cometido; o erro de se julgar chefe dum país importante. E Judá não era de facto um país importante. Portanto, não podia ter a pretensão de ser tratado em paridade de importância. Judá era apenas um país que estava entre a Babilónia e o Egipto, mais nada. O Egipto não tinha, pois, nenhum interesse e nenhuma intenção de socorrer Judá. Isso era evidente, mas o rei Joaquim não era capaz de ver isso.
O jovem Jeremias, depois de alguns dias na capital Jerusalém, bem depressa se apercebeu de toda a situação, porque era um jovem inteligente. E então, um dia, Jeremias teve uma ideia de toda a situação, quando passou por um lugar qualquer. O que é que ele viu? Pois bem, foi muito simples. Ele tinha um grande sentido de observação. E, de facto, viu o seguinte: à porta duma casa viu um panelão, cheio de água quente. Mesmo ao lado, estavam dois passarinhos a debicar qualquer coisa. A grande panela estava meio inclinada e, volta e meia, derramava um pouco de água enquanto fervia. Ora, cada vez que isso acontecia, os passarinhos assustavam-se e levantavam voo.
Observando a cena, Jeremias, reflectia: «Pois é, o mesmo acontece também com as pessoas... Sem nos darmos conta, há ao pé de nós uma grande panela de água a ferver. É um exército poderoso preparado para nos destruir e nós continuamos na mesma. Quando as coisas se complicam um pouco, lá fazemos um gesto qualquer, como os passarinhos, mas, depois... volta tudo à mesma...».
O facto é que se travaram algumas batalhas entre as tropas babilónicas e as egípcias. Nos primeiros tempos, não houve nem vencedores nem vencidos. E o rei de Judá ficava tranquilo. Mas isso era apenas tranquilidade aparente. Então Jeremias chegou à conclusão que alguém tinha que dizer estas coisas. As pessoas sentiam-se seguras e, por isso mesmo, viviam despreocupadas. Aliás, o passado recente tinha sido bastante bom e havia muito bem-estar. Esse era mais um motivo para as pessoas não se preocupassem com o que estava a acontecer mesmo ao lado...
Ora bem, Jeremias, inspirado por Deus, não via essa indiferença do povo de Judá com bons olhos. E, um dia, reflectindo sobre o assunto, disse de si para consigo: «Mas não haverá ninguém que se levante e diga alto e bom som que, se continuamos assim, isto ainda vai acabar numa desgraça? Mas não. Alguém tem que falar. Nem que seja eu! Deus sabe muito bem quem sou, sabe que sou tímido e que não sei falar. Sabe que detesto dizer às pessoas da minha cidade que, se as coisas continuam assim, vai tudo acabar mal... Bem me custa, é contra o meu feitio, mas alguém tem que falar»!
Durante o reinado do antecessor de Joaquim, um tal Josias, tinha havido uma espécie de ressurgimento patriótico e sobretudo o ressurgimento do espírito religioso. Mas, com Joaquim, as reformas de Josias tinham acabado. O sentido patriótico e religioso das pessoas ia enfraquecendo cada vez mais. E isso era ainda mais evidente no palácio real. Prova evidente da decadência eram os trabalhos forçados a que era sujeita a população para a ampliação do palácio real. Jeremias, entretanto, tinha sido escolhido para conselheiro do rei. Não se sabe bem a razão dessa escolha, mas, se calhar, tinha sido para lhe calar a boca, porque já andava a falar demais. Com efeito, condenava abertamente e com muita veemência os abusos e a decadência em que o rei e a sua corte tinham caído. Denunciava erros, abusos de poder e injustiças que o rei cometia contra o povo...
Há até, a esse propósito, um episódio interessante. O rei estava tão aborrecido com o que Jeremias dizia que um dia, desgostado, rasgou alguns dos escritos do profeta. Jeremias tinha a mania de não estar do lado da autoridade. Essa atitude do rei não constituiu nada de novo; era a sua maneira de proceder. De resto, entre parênteses, eu devo acrescentar que, como regra, a autoridade não gosta nada de quem fale contra as suas decisões. Deve fazer parte da natureza humana.
Seja como for, Jeremias, apesar do seu feitio tímido, não estava disposto a calar o que pensava. Não tinha aspirações a subir na carreira e, portanto, não tinha nada a perder. Mas o que acontece é que, lá dentro de si mesmo, havia qualquer coisa que, mesmo contra o seu carácter, não o deixava estar quieto e sossegado. A leitura de algumas páginas do livro que leva precisamente o nome de Jeremias é muito elucidativa a esse respeito. Ele di-lo claramente e até se queixa de ter que ter um procedimento que é contrário ao seu feitio.
Jeremias poderia ter pronunciado palavras de consolação e de elogio. Assim teria a vidinha garantida. Mas não. Continuou a denunciar as injustiças e a dizer a todos (e ao rei em primeiro lugar) que, se as coisas continuassem assim, o desfecho final seria a desgraça completa e o desaparecimento até da própria nação judaica. O que, de facto, veio a acontecer. Infelizmente. E duma forma trágica.