1. O PASTOR E O REI
 

 

Desde a morte de Acab, tinham-se passado cerca de cem anos. Agora, em Israel, vivia-se em relativa tranquilidade e bem-estar. A vida das pessoas era mais fácil. Não era só abundância de trigo e cereais, fruta e carne. Havia também comerciantes. Estes compravam o trigo e a fruta dos trabalhadores e iam comerciá-los aos portos do país. Os donos dos navios, por seu lado, vendiam-lhes tecidos, roupas e outros objectos de uso doméstico. Os comerciantes revendiam tudo quando voltavam para os seus lugares de origem...

 

Já naquele tempo, como hoje, uns iam ficando cada vez mais ricos, enquanto outros ficavam cada vez mais pobres. Os comerciantes construíam belas moradias e pouco a pouco iam comprando as terras e as propriedades aos mais pobres, que eram explorados. E os pobres acabavam forçosamente por se tornar escravos dos primeiros. O bem-estar de que a sociedade desse tempo desfrutava era, pois, aparente. E este estado de coisas era mais evidente no reino do Norte.

 

Foi nessas circunstâncias que, um dia, apareceu pelas vilas e cidades do reino do Norte um homem que vinha do Sul. Chamava-se Amós e a sua meta era a capital, chamada Samaria. Apesar de ser de humilde condição, tinha sido inspirado por Deus e falava bem que se fartava. Mais: sendo ele próprio pobre, percebia perfeitamente o que se passava. Ao atravessar as ruas da capital, reparou em mansões luxuosas e jardins bem cuidados. E, naturalmente, viu também como viviam os ricos e as festas que faziam continuamente. Quase se pode dizer que o jetset dessa altura tinha já muito de parecido como o actual...

 

Depois de alguns dias na cidade, Amós por acaso passou por uma rua da chamada alta sociedade. Através das grades que davam para a estrada viu umas ricas senhoras lá dentro no jardim duma casa elegante que comiam e riam a bandeiras despregadas. Aí ele não aguentou mais e foi tocar à porta. Um criado foi abrir e ele, mesmo sem pedir licença, foi indo por ali dentro: «Então, muito boa tarde!» – começou ele por dizer em tom irónico – «A comida está boa, não é verdade»? As senhoras entreolharam-se com cara de parvas, a observar para aquele aldeão atrevido que, ainda por cima, as tinha vindo insultar...

 

Amós não foi bem recebido. Mas o que ele tinha lá dentro tinha que vir cá para fora. E então despejou mesmo tudo: «Ora, ora! Ainda se julgam grande coisa! Parecem uns bichos de estimação, que ganharam um prémio em alguma exposição. Deitadas nos seus sofás, só sabem tagarelar... E nem sequer têm escrúpulos de consciência! Foi tudo pago com o suor duns pobres diabos, enterrados em dívidas. E os tapetes em que estão deitadas? Feitos por gente que anda por aí a morrer de fome! Tudo isto foi adquirido à custa do sangue dos pobres. E, ainda por cima, nem sequer têm compaixão. Ah, mas não julguem que isto pode continuar assim!».

 

As senhoras continuavam parvas a olhar para Amós. E algumas até começaram a cochichar que ele não devia regular bem da tola. Outras começaram a protestar contra a insolência e o atrevimento de Amós: «Cala-te, seu miserável, seu mal-educado! Querem ver? Olha agora, havia de nos acontecer isto?! Aqui é tudo gente educada e de bom senso e vem agora este tipo para aqui dizer baboseiras! Vá, desaparece e cala essa boca, seu imbecil e malcriado!». «Não desapareço, não!» – respondeu Amós – «Tudo isto brada aos céus… Ai de vós se não derdes ouvidos às minhas palavras! Quando um leão urra, não se assustam todos? Pois bem, é a voz de Deus que fala e eu não me posso calar!»...

 

Entretanto, um sacerdote importante e influente, que tinha sido chamado à pressa, apareceu para acalmar as coisas: «Ora, vamos lá ver! Oiça aqui uma coisa. O senhor vem do Sul, não é verdade? Pois bem, então porque não volta para lá e conta lá o que está aqui a dizer-nos a nós? Aqui nós temos já profetas suficientes. Aliás, já há muito tempo! E, por sinal, não ganham nada mal! Ao menos esses fazem bonitos sermões»!

 

Amós ficou furioso. Não tanto pelas palavras que lhe dirigira o sacerdote, mas pela incapacidade daquela gente de compreender o que estava errado. E então, num assomo de raiva, gritou: «Estás enganado, meu amigo. Não sou nenhum profeta profissional. Esses são profetas para ganhar a vida e, portanto, dizem o que vos convém. Eu só digo o que vejo e o que vejo é triste: “Vocês estão a seguir pelo caminho errado. Se continuarem a proceder assim, hão-de vir dias muito maus. Todo o mal que se faz tem que se pagar. Hão-de vir dias em que não haverá festas e em que os vossos cantos se hão-de transformar em lamentações».

 

O sacerdote Amasias, perante o espanto geral, bem procurou acalmar Amós, mas não havia maneira. Até que teve uma ideia. «Olhe, senhor Amós, amanhã, vamos dar uma grande festa e haverá grandes actos de culto no templo. Pelo menos, nessa altura, poupe-nos, entende? Seria uma trapalhada se acontecesse algo de desagradável! Vai estar lá toda a gente que conta e não seria nada elegante que você se pusesse a dizer uma data de disparates! Há que manter a dignidade que uma festa assim merece».

 

Ao ouvir isto, Amós explodiu numa outra descompostura: «Quero lá saber da vossa festa para nada! Mas, já que falam em festa e actos de culto, aproveito para lhes dizer mais alguma coisa: “Sabem o que Deus pensa desses dias de festa que vocês acham tão bonitos?! Não sabem, pois não? Pois bem, Ele sente nojo por tudo isso. Essas festas aborrecem-no mortalmente. Não aguenta essas músicas religiosas que vocês adoram tanto. Ele acha que tudo isso não passa mas é duma grande palhaçada. Deus não se comove nem sequer um pouco com isso...».

 

E, então, já que as circunstâncias eram essas, Amós aproveitou para despejar o saco todo: «O quê? Vocês julgam que, com festas, Deus se vai esquecer do mal que fazem aos outros? Não, de maneira nenhuma. Quando se continua a fazer o mal aos outros, não há sacrifícios ou ofertas que valham a ninguém. Deus preocupa-se bem mais com os que não têm nada que comer, com os que são explorados. As vossas festas só são possíveis porque alguém está a pagar na própria pele as despesas que vós fazeis. Ficai a saber uma coisa: Deus está ao lado dos pobres, dos desempregados e dos que são explorados. Deus está ao lado dos que estão desanimados e que têm medo de levantar o braço para protestar. Deus preocupa-se com essa gente e não com gente como vocês...».

 

O sacerdote Amasias ainda fez um gesto para protestar, mas Amós limitou-se a parar um pouco para tomar fôlego: «Se as coisas continuam assim, isso posso garanti-lo eu, isto vai acabar mal, muito mal. E vocês já sabem que, se Deus vos abandona, não podeis aguentar esse estilo de vida. Ainda estais a tempo de retroceder. Mas não vejo grandes hipóteses, porque vós estais totalmente convencidos de que nada há de condenável na vossa conduta. Pois bem, ireis ver se o que digo é verdade ou não. E, se calhar, já não falta muito tempo para que as coisas aconteçam».