1. UM HOMEM SANGUINÁRIO
 

 

Quando um homem rouba a mulher de outro ou vice-versa, durante algum tempo esse facto é o pratinho mais apetecido de toda a gente; sobretudo quando esse homem é alguém importante. Ora, toda a gente em Jerusalém ficou a saber do caso entre David e Betsabé. E todos comentavam maliciosamente a maneira iníqua como o rei tinha roubado a mulher a Urias. Os comentários eram feitos em voz baixa, não fosse o diabo tecê-las. Mas a realidade é que esse facto foi assunto de conversa durante muito tempo...

 

Mas havia um homem que não queria saber dessa arte da crítica em voz sussurrada. Ele tinha a sua opinião pessoal, mas queria ir dizê-la directamente na cara de David, sem grandes rodeios. Esse homem chamava-se Natã. O povo achava que ele era um homem de Deus, um profeta. Não tardou, pois, que ele pedisse uma audiência ao rei. David, que era um homem muito religioso, ficou encantado com a visita do profeta...

 

Ao chegar, Natã, meio no gozo meio falando a sério, disse ao rei: «Então, já sabes a última? Pois bem, fora da nossa cidade, vivia um rico fazendeiro. Tinha os seus currais cheios de cabras e cabritos; além de muito gado bovino que lhe dava bons rendimentos. Um dia, chegaram a casa dele, umas visitas. Naturalmente, convidou-as para jantar e para ficar em casa. Esse rico fazendeiro tinha também um criado pobre, que tinha apenas uma ovelha pequenina que lhe custara muito a comprar. Tinha-a comprado na feira e criava-a com muito carinho. Vivia até com ele em casa, com os seus filhos, comendo o seu pão, bebendo do seu copo. O pobre homem tratava a ovelha quase como se fosse sua filha» …

 

«Então, esse homem rico chamou o pobre homem e disse-lhe assim: “Se você tem alguma coisa, é porque eu o deixo trabalhar nas minhas terras. Pois bem, agora, em troca desse favor, quero ficar com essa ovelha que tem aí”. O homem rico não quis tocar nas suas ovelhas para preparar o jantar e dar de comer aos hóspedes que tinham chegado. E, por isso, foi tirar a ovelha do pobre. Era a única ovelha que o pobre tinha...».

 

E Natã concluiu a sua história: «Há coisas destas que acontecem no nosso país». Aí... David ficou mesmo indignado contra um tal homem: «Juro pelo Deus vivo» – exclamou David – «Uma pessoa que faz uma coisa destas não merece viver no meio de nós e pagará sete vezes o valor da ovelha, por ter procedido dessa maneira». Nesse momento, Natã respondeu a David: «Pois bem, esse homem és tu! Deus ungiu-te rei de Israel, salvou-te das mãos de Saul, que te queria matar, entregou-te todos os bens e até o pessoal do palácio e tu... desprezaste o Senhor, fazendo o que é mal aos seus olhos».

 

David compreendeu imediatamente a lição da parábola do profeta Natã. Com essa história, ele tinha-lhe feito compreender a maldade que cometera contra Urias, ao tê-lo mandado assassinar para ficar com a sua mulher. E então disse a Natã: «Tens razão, homem de Deus. Fiz mal. Aceito se Deus deixar de me proteger». Em todo o caso, o profeta Natã tranquilizou-o nestes termos: «É verdade, fizeste mal e vais pagar pelo que fizeste. Mas tem confiança: o Senhor perdoa o teu pecado. Todavia, como desprezaste a lei do Senhor, vais ser castigado...».

 

Natã ficou essa noite no palácio. E, ao que se pode supor, continuou a falar do mal que o rei David tinha feito. Por fim, David confessou do fundo do coração toda a sua culpa e pediu a Deus: «Senhor, apesar do que fiz, nunca me abandones. Aceita-me da maneira como sou, mesmo quando faço coisas erradas. Sei que não está certo, mas só agora é que me dou conta disso. Ajuda-me a sair desta situação. Aceitar-me-eis se me coloco, diante do Teu altar, só com a minha miséria, cansado e ferido no coração»?

 

Entretanto, o tempo foi passando. E Betsabé deu um filho a David, o primeiro. Mas a criança adoeceu. Adoeceu muito gravemente. David foi ao templo pedir a ajuda de Deus. Deitou-se por terra e rezou. E depois ainda jejuou. Não comeu nem bebeu senão pão e água durante sete dias. Os seus conselheiros ainda o quiseram demover do seu propósito, mas de nada valeram as insistências. Foi uma penitência dura. Infelizmente, o menino, depois do sétimo dia, morreu. Ninguém se atrevia a dar-lhe a notícia. Quando o rei viu os amigos juntos em pequenos grupos a cochichar, cabisbaixos e assustados, aproximou-se deles e perguntou-lhes: «Do que é que estais a falar tão baixo? O quê, a criança morreu»? «Sim» – confirmaram eles – «o seu filho morreu».

 

Sabida a notícia, David deixou o local, lavou-se, mudou de roupa e foi novamente ao templo para adorar o Senhor. Depois disso, voltou para casa e mandou que lhe fizessem uma refeição. Agora, é que ninguém entendia esta atitude do rei. E era natural, porque, quando alguém morre, as pessoas ficam tristes e nem sequer têm vontade de comer. E foi isso mesmo que os seus conselheiros lhe fizeram notar. Mas ele respondeu: «Eu jejuava e orava pelo menino enquanto ele estava vivo. Mas agora, acabou-se, o menino morreu e, portanto, já não há nada a fazer. Para que hei-de jejuar mais? Posso porventura fazê-lo voltar à vida? Não! Portanto!...». Os conselheiros nem sequer se atreviam a abrir a boca...

 

David tinha razão. Ele sabia muito bem que não valia a pena estar a chorar sobre o leite entornado, como se costuma dizer. Por isso decidiu fazer o possível para que a sua vida e a dos seus decorresse com toda a normalidade possível. Quem precisava dele agora eram os que estavam vivos. E em primeiro lugar, Betsabé, que estava completamente destroçada. Então, David resolveu ir ter com ela para a consolar e para lhe incutir coragem. E ela bem estava a precisar disso. E foi talvez a partir desse momento que começaram a gostar realmente um do outro. Já não era uma simples paixão, mas amor autêntico. O coroamento desse amor entre os dois foi o nascimento doutro filho no ano seguinte. O nome do filho era Salomão.

 

David chorou muito os seus erros no campo das relações humanas. Mas não deixou de dar exemplo no campo da táctica militar, digamos assim. Sabemos, por exemplo, que, por diversas razões, se tinha deixado ficar em Jerusalém quando o seu general Joab estava lá na frente da batalha. Então, quando este lhe mandou dizer que tinha conquistado outras cidades, pensou que tinha que fazer alguma coisa.

 

David deve ter ficado com certo receio de que Joab se tornasse tão importante aos olhos do povo que este acabasse por aclamá-lo rei. Por isso, decidiu ir também ele para a frente da batalha. E, de facto, tomou parte em muitos ataques, submetendo a Israel a maior parte dos reinos vizinhos. E derrotou definitivamente sobretudo os mais temíveis de todos, que eram os Amonitas. Depois de os Ter derrotado a todos, manteve-os escravos enquanto durou o seu reinado.