1. ESPLENDOR E VERGONHA
 

 

Quando Saul e todos os seus filhos morreram no campo de batalha, o povo foi ter com David. Não havendo nenhum descendente do rei e tendo ele próprio sido ungido pelo profeta Samuel, David achou que era a altura de começar a reinar. Não escolheu nem uma grande cidade do Norte nem do Sul. Preferiu ficar a morar numa pequena vila do centro do país. Por incrível que pareça, essa vila chamava-se Jerusalém. Esta cidade só irá adquirir importância e esplendor com David e sobretudo com um dos seus filhos, Salomão.

 

De qualquer forma, David quis transformar Jerusalém numa cidade em que toda a gente se sentisse bem; uma cidade que ninguém jamais devia esquecer. E assim, após alguns meses dessa decisão, começaram a aparecer pedreiros em todos os cantos para construir elegantes muralhas, portões e casas de habitação. E David observava tudo orgulhoso, do terraço da sua casa provisória. Ele tinha em mente fazer também um palácio para o rei; que fosse a inveja de todo o mundo.

 

Uma tarde, era já quase de noite, estava a passear lá no terraço, quando viu uma mulher ainda nova, que lavava roupa e tomava banho lá em sua casa. Era muito bonita. Chamou então logo um criado e perguntou-lhe se conhecia uma senhora que vivia em frente do palácio, numa casa assim e assim... «Ah, a senhora daquela casa além?! Sim, sim, eu sei quem é. É uma senhora que se chama Betsabé. Olhe, é a esposa dum dos seus homens fortes do exército. O seu marido chama-se Urias e está na guerra. Anda lá sob as ordens do seu general Joab!». «Bem, já chega de informações» – atalhou David – «Estás dispensado. Sai!».

 

No dia seguinte, mandou um dos seus emissários ir ter com ela para a convidar a vir ao palácio. Queria falar-lhe do seu marido que estava na guerra... Betsabé não se opôs a tal proposta. Era uma honra para ela. É claro que tinha alguns receios, mas era um convite do rei. Acontecesse o que acontecesse, se o convite vinha do rei, então hão havia nada a temer. Em outras circunstâncias, correria perigo, agora com o rei... não, isso não constituía perigo de qualquer espécie. E, quando o mensageiro do rei bateu à porta, não se fez rogada. Pediu-lhe para esperar um pouco que se ia preparar para se apresentar como deve ser perante o rei. Não demorou muito a alinhar-se...

 

E o que era previsível aconteceu. Nesse mesmo dia, David começou a tratá-la como se fosse a sua própria esposa, embora sendo mulher de outro...David achava que a um rei tudo era permitido. Ele já tinha várias mulheres e... mais uma menos uma, isso não era problema para ele. E depois... esta era tão bonita! E mais: David justificava-se pensando: «O marido dela é um dos meus soldados. Ele pertence-me e, portanto, também ela me pertence. Porque é que não havia de poder ficar com ela»?!

 

Só que as coisas não correram bem como ele tinha previsto. Por pouca sorte, ela engravidou e mandou-o dizer a David. Mais convencido ficou então que ela tinha que ir viver para o palácio. Não podia pertencer a mais ninguém. David concebeu, portanto, um plano hediondo para se desfazer do marido dela, mesmo antes que ele notasse o que tinha acontecido...

 

Mandou chamar Urias ao palácio, provavelmente com a intenção de o envenenar com algum prato. Ao chegar a Jerusalém, pediu-lhe notícias do general Joab e da guerra. Depois, disse-lhe para se preparar e ir ter ao palácio para tomar parte num jantar que ele tinha mandado preparar. Todavia, Urias, sendo um homem de carácter e certamente pouco dado a certos luxos e festas, respondeu-lhe: «Assim como Joab e todos os soldados dormem ao relento, como posso ter eu a coragem de entrar no palácio do rei para comer, beber e dormir com a minha mulher? Não, meu senhor e meu rei, não posso fazer isso».

 

A resposta não agradou nada a David. Até porque as palavras de Urias eram uma acusação indirecta contra o rei, por este ter ficado em Jerusalém a gozar do conforto do palácio, enquanto os militares estavam lá na linha de batalha a defender o país. E o rei David acabou por se deixar vencer pelo desejo de se ver livre de Urias; e também com uma pontinha de ódio e inveja por Urias ser mais recto do que ele...

 

E David nem sequer se lembrou dos dias da sua juventude em que Saul, o primeiro rei, o tinha tratado exactamente da mesma maneira. Urias ficou em Jerusalém mais uns dias. E David, por manhas e artimanhas, lá conseguiu que ele aceitasse o convite para ir jantar ao palácio: «Tenho umas coisas a combinar contigo. As nossas tropas estão a ter certas dificuldades na frente da batalha. Temos que acertar algumas estratégias para acabar com a guerra e dar cabo dos inimigos. Vai hoje ao palácio. Enquanto comemos qualquer coisa, discutimos este assunto».

 

Urias não podia desconfiar das intenções de David, mas, convencido pelos argumentos apresentados, lá foi. Durante o jantar, tudo foi feito para embriagar Urias, mas este, talvez ainda consciente, saiu do palácio e foi ter com os escudeiros que o tinham acompanhado. Seja como for, no dia seguinte de manhã, David mandou entregar-lhe uma carta que devia ser entregue ao general Joab. Urias, mal recebeu a carta das mãos do rei, partiu imediatamente para a frente de batalha.

 

A carta do rei, afinal de contas, não passava de um bilhete em que estava escrito o seguinte: «Joab, manda Urias para a frente da batalha, onde o combate é mais renhido, pois ele é um guerreiro valente. Estou convencido que este plano irá resultar! Assinado: o rei David». Joab, que procurava tomar a cidade de Rabat, obedeceu às ordens do rei. E, no combate do dia seguinte, colocou Urias lá bem na frente, onde combatiam os guerreiros mais valorosos...

 

Os inimigos não eram menos valorosos e foram-se aos israelitas com toda a coragem. No combate feroz que se travou, morreram alguns soldados israelitas, incluindo Urias. Joab então mandou informar imediatamente o rei David de todas as peripécias do combate. O mensageiro partiu, pois, e foi dar a notícia ao rei em Jerusalém, referindo-lhe tudo o que Joab lhe tinha mandado.

 

É muito difícil entender porque é que David, depois de tantas provas de coragem dadas antes, ficou em Jerusalém e mandou o seu general Joab para a frente de batalha. De resto, é também muito difícil de compreender que um rei se tenha deixado vencer de tal maneira pela paixão e tenha ordenado fazer o que fez a Urias. Não há dados suficientes para avaliar dessas atitudes, mas não podemos deixar de as condenar sem margem para dúvidas... O certo é que, perante a notícia de que Urias tinha caído na frente de batalha, David ficou contente. Também se pode calcular que Betsabé não estivesse lá tão inocente como isso. Seja como for, e como não podia deixar de ser, ela pôs luto e chorou a morte do seu marido. Mas, terminados os dias de luto estabelecidos por lei, David mandou-a buscar e passou a morar no palácio como sua esposa. Sabemos também que foi ela a mãe de Salomão. Assim era David. Mas o seu procedimento não agradou ao Senhor, Deus de Israel.