ALÉM DE DAMASCO |
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«Declara-se, para os devidos efeitos, que o rabino Saulo, nascido em Tarso, terminou os seus estudos na escola do rabino Gamaliel em Jerusalém, com bom aproveitamento, louvor e distinção, estando, pois, apto a exercer a sua actividade. Por este documento, ele é autorizado também a verificar se, nas nossas sinagogas no exterior, há pessoas que confessam ser seguidores de Jesus de Nazaré. Nesse caso, ele está autorizado a prender e a trazer essa gente para Jerusalém para aqui ser julgada segundo a nossa lei»...
Era este o teor da carta que Saulo levava consigo quando viajava de Jerusalém para a cidade de Damasco. Saulo tinha terminado os estudos com distinção. Estava formado. E agora estava pronto para pôr a render os seus talentos. Saulo sabia de cor muitos trechos da Bíblia. Para cada ocasião, sabia a palavra ou frase da Bíblia adequada. Só era pena que tivesse aprendido umas coisas e não outras. O que ele tinha aprendido melhor era o seguinte: o que importa é que os bons judeus cumpram exactamente o que está escrito em todos os pormenores na Lei...
Paulo partiu então com uma bela carta de recomendação para o seu novo campo de acção, que era a cidade de Damasco. De Jerusalém a Damasco eram cerca de duzentos e cinquenta quilómetros. Era uma distância considerável, sobretudo para esses tempos em que as pessoas se deslocavam a pé ou a cavalo. Com o fervor de judeu que lhe ia na alma, a sua intenção era controlar como é que as leis eram cumpridas. Era os fervores da juventude. Eram os fervores do neófito...
Saulo estava sinceramente convencido que nenhum dos fiéis da nova religião lhe iria escapar. Esses «nazoreus» tinham que ser desmascarados. Em Jerusalém, muitos seguidores de Jesus já tinham sido condenados. Mas os sobreviventes tinham fugido em todas as direcções. Tinham-se espalhado por tudo quanto era sítio. E o mais interessante era que não escondiam a sua identidade. A todos procuravam contar a história de Jesus e convencer as pessoas a fazerem parte das comunidades que iam fundando. E o facto é que as comunidades dos seguidores de Jesus iam surgindo e aumentando por toda a parte.
Que os seguidores de Jesus fossem aumentando era algo que não deixava Saulo nada satisfeito. Ele, que tinha sido um dos melhores alunos de Gamaliel, queria ver todos os judeus a cumprir a lei antiga. Por isso tinham-no encarregado de visitar todos os lugares fora de Jerusalém onde vivessem judeus. E agora tinha que se preocupar sobretudo com esta gente da seita de Jesus, como eles lhe chamavam... Pois bem! Saulo sentia-se no dever de descobrir esses traidores (assim ele lhes chamava). Tinha que os deter e depois levá-los presos para Jerusalém. Já a caminho, Saulo ia pensando no que iria acontecer e sobretudo ia recordando as palavras e as frases que melhor contribuíssem para ajudar as pessoas a convencer-se de que estavam erradas.
Mas, no último dia, a caminhada parecia ter-se tornado mais difícil do que o costume. O tempo estava muito abafado. Saulo (como, de resto, os que o acompanhavam), sentiam o cansaço duma maneira especial. Saulo ia montado no seu cavalo e, apesar disso, sentia-se cansado à mesma. Procurava pensar em trechos da Bíblia que justificassem a operação que estava para realizar, mas não conseguia. Não compreendia muito bem o que sentia, mas era um facto que não se sentia bem...
E não tardou muito que o inesperado acontecesse. Foi como se um raio lhe passasse pelo corpo. Até lhe deu a impressão de ter ouvido um trovão. Mas... como é que podia ser? O céu estava completamente azul! Ao mesmo tempo, sentiu uma voz que lhe dizia: «Saulo, Saulo, porque é que me persegues?». A frase deixou-o estupefacto, porque era uma frase que ele tinha aprendido quando era garoto. O que lhe estava a acontecer era igual à história de Saul e de David...
E, para que não houvesse dúvidas, Saulo ouviu de novo a mesma voz: «Saulo, Saulo, porque é que me persegues?». Então respondeu: «Quem sois vós, Senhor?». «Não importa saberes quem estás a perseguir» – respondeu a mesma voz – «O que tu estás a fazer é perseguir a Jesus. Porquê, Saulo?». Saulo ficou completamente alucinado. Quis então certificar-se de que não estava a delirar. Quis então abrir os olhos para ver o céu, mas não conseguiu. Também os que o acompanhavam não perceberam nada do que se estava a passar. Só viram Saulo estendido no chão...
Saulo estava sem voz e olhava fixo para a frente, mas não via nada. Levaram-no então devagar para Damasco, onde ficou três dias. Não conseguia nem comer nem beber. Não conseguia falar nem ver nada. Ao terceiro dia, apareceu lá em casa alguém que, pondo-lhe a mão na cabeça, lhe disse: «Então tu é que és o famoso Saulo? Pois bem, não te preocupes. Vais melhorar. Eu sou Ananias. Pertenço à comunidade dos amigos de Jesus. O Espírito indicou-me para vir ter contigo e aqui estou eu. Já imaginaste como são as coisas! Até agora, eu sempre tive medo de ti. E, em abono da verdade, também tu tinhas medo dos discípulos de Jesus...
De repente, Saulo começou a soluçar. Abraçou-se a Ananias e começou a repetir feliz: «Mas o que eu que fiz, meu Deus!? Mas o que é que eu fiz? Só agora é que estou a entender!». E, depois de ter recobrado a vista graças à intervenção de Ananias e em nome desse Jesus que ele perseguia, Saulo começou a melhorar a olhos vistos e a comer. Um ou dois dias depois, Ananias disse-lhe: «Saulo, estás a ver como afinal somos amigos?! Afinal, nós não somos assim tão maus como nos pintam os chefes dos sacerdotes!...».
«Saulo!» – continuou Ananias – «Eu acho que agora vai tudo mudar entre nós. Eu até apostava que, de hoje em diante, tu vais dizer tais coisas que as pessoas que te conhecem até vão ficar espantadas e irão pensar que endoideceste. Não te preocupes. Tu andavas com a cabeça tão cheia de coisas que não cabia lá mais nada. Foi preciso um choque destes para caberem lá outras ideias novas. O Senhor Jesus certamente tem algo de especial a confiar-te, porque tu entendeste logo tudo assim de repente. Enquanto muitos de nós levam uma eternidade a compreender estas coisas, tu apanhaste logo tudo. Foi como que um raio de luz que te revelou tudo lá dentro...».
Ananias tinha razão. Mas a verdade é que as novas coisas que agora se revelavam a Saulo, na verdade já estavam lá dentro, embora escondidas. Ele tinha lido muito os profetas da Bíblia e agora entendia uma série de coisas. Pelo menos indirectamente, já sabia muito sobre Jesus. O que lhe faltava era esse tal choque, esse tal estalo, digamos assim, que faz ver as coisas de repente. E isso aconteceu durante a sua viagem para Damasco. No fundo, Saulo era um homem sincero e estava convencido de que estava a fazer o bem. E esse era o primeiro passo para a mudança.