UM GRANDE MESTRE |
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Bem lá à frente, na primeira fila da sala de aulas, estava sentado um miúdo muito aplicado. O nome dele era Saul, mas os seus pais preferiam chamar-lhe Saulo. A eles soava-lhes melhor e até lhes parecia mais fácil de pronunciar. Além disso, Saulo parecia-lhes um nome mais nobre para aqueles tempos. Enfim, parecia um nome mais romano e eles, embora fossem judeus, tinham a cidadania romana...
Que Saulo frequentasse uma escola do género não era nenhuma novidade. Em quase todos os lugares mais importantes de Israel havia escolas onde os alunos frequentavam a escola para estudar a Bíblia. E havia também dessas escolas mesmo fora de Israel, onde quer que houvesse comunidades de judeus. Os judeus, onde quer que estivessem, procuravam educar rigorosamente os seus filhos conforme mandava a tradição. Todos deviam conhecer bem as leis judaicas, tinham que conhecer os costumes judaicos. Enfim, deviam saber o que estava escrito na Bíblia.
Ora bem, a escola onde Saulo aprendia estas coisas com um rabino especializado era em Tarso, onde Saulo tinha nascido. Tarso era um pequeno porto na Ásia Menor, mais precisamente na actual Turquia. Esse dia era sexta-feira, último dia de aulas. Todos se tinham portado bem. Tinham estudado bastante. Por isso, como prémio, o professor não lhes fez perguntas, mas contou-lhes uma história...
Saulo estava à frente de braços cruzados. Se calhar, não era o mais bem comportado. Mas era o que mais depressa fixava o que o professor dizia. Por isso, foi a Saulo que o professor pediu para escolher a história que iria contar. Saulo escolheu a história do rei Saul. Era o seu próprio nome. O professor começou logo por dizer: «Havia algo de errado nesse rei de antigamente. Não foi, nem de longe, tão bom rei como David. Em todo o caso, nem por isso deixava de ser rei. A sua história era fascinante. O professor ia lembrando aos alunos que Saul tinha inveja de David e que David teve que fugir, porque Saul o queria matar...
E o professor continuou a contar assim: «Um dia, David escondeu-se ao fundo duma caverna de montanha. Acontece que nesse mesmo dia o rei Saul foi descansar também na mesma caverna. David viu tudo o que estava a acontecer. O seu coração até pulava. Deus dava-lhe a oportunidade de se desfazer do rei. Mas ele disse: “Não, mesmo um sujeito malvado como Saul é rei e, portanto, eu não posso tocar-lhe sequer!”».
Saulo olhava para o professor com uns olhos que nem sequer pestanejava. E o professor disse: «David tinha a espada na mão, mas não matou Saul. Mas limitou-se a rastejar até ao lugar onde Saul dormia e cortou-lhe uma parte do manto real. Saul nem sequer notou...». O professor contava a história com tanta animação que ninguém se mexia. Até o pequeno Cornélio, que por acaso até nem era judeu, estava sossegado. Os pais dele eram amigos dos pais de Saulo e tinham-no mandado à escola porque queriam que ele aprendesse...
Logo a seguir, o professor terminou assim a história: «Quando o rei Saul saiu da caverna, ouviu dizer a David. “Saul, Saul! Porque é que me persegues?”. Saul ainda chamou por David mas ele não lhe respondeu. Então o rei sentiu que a voz lhe falhava um pouco. Por pouco não chorava, quando disse ainda para David. «Tu podias-me ter matado, mas não quiseste. Foste melhor do que eu. Eu sempre fui mau para contigo. Mas agora sei o que tu és: és o rei escolhido pelo nosso Deus!»...
E a história terminou assim. Os miúdos voltaram para casa. Saulo e Cornélio faziam o mesmo caminho. Ao chegar a casa, Saulo encontrou o seu pai a conversar com o pai de Cornélio. E dali a pouco chegou também o professor. O pai de Saulo era proprietário duma loja de tendas e cobertores. E era uma pessoa respeitada na cidade; como, de resto, também o pai de Cornélio. Tinha-se tornado cidadão romano, adoptando um signo e um anel. O mesmo que todos os cidadãos romanos usavam...
Ao chegar, o pai chamou Saulo e falou-lhe assim: «Meu filho, tu agora já és um homenzinho! Dentro em breve, vais fazer doze anos. E, nessa altura, vais ser recebido na comunidade dos grandes. E, como os adultos, também tu vais que Ter que obedecer às leis da nossa religião. Pois bem, aqui o rabino acha que tu deves continuar os estudos». O rabino mexeu os ombros e fez que sim com a cabeça. A mãe de Saulo juntou-se também ao grupo. Estava orgulhosa do seu filho...
Então o pai continuou: «Meu filho, tu vais ir continuar os estudos em Jerusalém. Ali podes morar com o teu tio Benjamim e ir para a escola de (adivinha quem!)... Para a escola do famoso Gamaliel». Saulo corou: primeiro de vergonha; depois de orgulho. Era uma honra estudar com esse professor. Era famoso em toda a parte. Até ali em Tarso, que ficava tão longe de Jerusalém... E assim ficou decidido.
Ao chegar a Jerusalém, Saulo ficou boquiaberto. Tudo o que ele sabia de Jerusalém era só de ouvir falar. Mas agora estava ele a vê-la com os seus próprios olhos: os muros, os portões, os morros, o templo, o palácio, o grande castelo... Tudo o que ele conhecia sobre a cidade por ler os Salmos está ali mesmo de verdade. E então o professor era um espanto. Gamaliel era um dos professores mais respeitados. Saulo começou a frequentar as suas aulas e bem depressa começou a achar que eram simplesmente maravilhosas.
Um dia, um dos seus colegas de escola, para brincar com ele, disse para outro: «Até aposto que este aqui, que vem lá do fim do mundo, não sabe o um nazoreu!». «Nazoreu?! Não, não sei. O que é um nazoreu?». Vendo que ele não tinha ficado aborrecido, o outro respondeu-lhe: «Um nazoreu é alguém que segue um tal Jesus de Nazaré...». «Então, e que tem isso?» – perguntou Paulo. «O que tem? É que ele dizia assim: “Deus ama toda a gente, mesmo os que não seguem as leis judaicas!”. Sabes o que isso significa? Significa que, por exemplo, os malditos gregos e romanos, gentalha sem princípios, aos olhos de Deus, vale tanto como nós, que somos judeus devotos. Foi o que ele disse, esse tal Jesus. Ora, isso é um absurdo! E mais: chegou ao cúmulo de dizer que ir ao templo não era o mais importante; que o importante era a gente preocupar-se com os mais pobres e necessitados»...
E esse colega de Paulo disse ainda: «Como se pode calcular, disse tantas coisas contra a nossa Lei que acabou por ser condenado à morte. Mas imagina tu que os seus discípulos agora continuam para aí a dizer que ele ressuscitou, que ele ainda está vivo. É uma súcia de gente mentecapta que não merece respeito. Eu acho até que gente desta devia é ser banida da nossa sociedade»... Pois bem, foi mais ou menos este o ambiente em que Saulo foi formado. E, por isso, é natural que, pouco a pouco, também ele fosse alimentando um certo ódio pelos seguidores desse Jesus.