DOMINGO DE RAMOS (PAIXÃO)

Temas

de

fundo

1ª leitura (Is 50,4-7):  O Senhor Deus ensinou-me o que dizer, a fim de dar alento aos que estão desanimados. Cada manhã, Ele desperta os meus ouvidos para ouvir   o que Ele tem a dizer-me. O Senhor Deus deu-me entendimento e eu não me rebelei nem afastei dele. Aos que me batiam apresentei as espáduas e a face aos que me arrancavam a barba. Não desviei o meu rosto dos que me ultrajavam e cuspiam. Mas o Senhor Deus veio em meu auxílio e, por isso, os seus ultrajes não me abalaram. Endureci o meu rosto como uma pedra, pois sei que não ficarei envergonhado, porque o Senhor está comigo.

 

* Deus veio em meu auxílio.

 

   Embora os exegetas ainda não tenham conseguido pôr-se de acordo em relação à personagem ou ao povo (pessoa coletiva) a quem se referem os chamados «Cânticos do Servo de Javé» (contidos na 2ª parte do profeta Isaías, cc. 40-55), nada impede, porém, que, à luz do Novo Testamento, eles atribuam os traços dessa figura à pessoa e à realidade dos últimos dias terrenos da vida de Jesus, sujeito ao sofrimento e à morte de cruz. Esta passagem (que faz parte do 3º Cântico) parece mesmo descrever, por antecipação, os últimos dias de vida e a paixão de Jesus. Em particular, o que mais nos dá coragem é o sentimento de confiança que o Servo nos transmite em relação à fidelidade de Deus e ao seu amor. Sendo assim, então talvez não seja má ideia privilegiar, digamos assim, este aspeto da paixão de Cristo, ou seja, o facto de ela ser, antes de mais, a prova suprema do amor e da fidelidade de Deus para connosco. Isso é pôr em ato, de alguma forma, o facto de Ele amar de tal maneira os homens que não duvida em lhes entregar inclusivamente o seu próprio Filho unigénito (cf. Jo 3,16). Enfim, Jesus é como que a promessa de Deus cumprida.

 

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2ª leitura (Fl 2,6-11):  (Jesus Cristo), embora de condição divina, não julgou dever à força ser igual a Deus. Ao contrário, por sua livre vontade, renunciou a si mesmo (a tudo quanto tinha) e tomou a condição de servo. Tornou-se semelhante aos homens e apareceu identificado como homem. Humilhou-se, tornando-se obediente até à morte, e morte na cruz. Por isso mesmo é que Deus o elevou acima de tudo e lhe deu um nome maior que todos os nomes, de maneira que, ao nome de Jesus, se dobrem todos os joelhos, os dos seres que estão no céu, na terra e debaixo da terra, e todos proclamem: «Jesus Cristo é o Senhor!», para glória de Deus Pai.

 

* O Servo é o Senhor.

 

   Como segunda leitura do Domingo da Paixão foi escolhido um dos mais belos hinos cristológicos que se conhecem. Muito possivelmente, era um hino recitado ou até mesmo cantado já no tempo de S. Paulo. Seja como for, sem pretender oferecer uma interpretação dos termos utilizados, eu diria que a cruz e o sofrimento na vida de Jesus são a revelação máxima do amor, pois ninguém tem mais amor do que quem dá a vida pelos seus amigos (cf. Jo 15,13). Ora, como dá a entender Paulo, para que reine a harmonia e a unidade entre os fiéis, é preciso que eles tenham os mesmos sentimentos que Jesus. Mas é claro que, no presente contexto, o termo «sentimento» não se pode confundir com «sensasãosinha». Ou seja, a lição a tirar é que se deve estar disposto a oferecer a própria vida pelos outros. Quem vive até ao extremo esta experiência humana acabará por compreender - sem se escandalizar - a loucura do amor de Deus pelos homens.

 

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Evangelho (Mc 14,1-15,47)

 

   Por motivos que parecem óbvios, não incluo neste espaço a leitura da Paixão. No entanto, seja-me permitido citar a nota que a Nova Bíblia dos Capuchinhos apresenta para introduzir este trecho do evangelista Marcos e que reza assim: «Esta secção (cc. 14-16) é o ponto de chegada do Evangelho. Descreve a forma como se realiza a missão de Jesus de Nazaré, Messias, Rei de Israel, Filho de Deus, Salvador do Mundo; o drama da Paixão e Morte rematado em glória com a Ressurreição. É nesta parte que os quatro evangelistas mais se encontram entre si (Mt 26-28; Lc 22-24; Jo 18-20). Isso supõe a existência dum esquema comum e muito antigo que circulou pelas diversas comunidades, o qual, pela sua natureza e pela importância do seu conteúdo, poucas alterações sofreu antes da redacção definitiva dos Evangelhos».

 

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 *  Apresentei

      as costas aos flageladores

      e não afastei

      a cara dos insultos e dos escarros.

 *  Cristo humilhou-se

      a si mesmo. Foi por isso que Deus

      o exaltou.

    

 *  Paixão.

NA

VERDADE,

ESTE ERA

O FILHO 

DE DEUS.

 

  • Uma festa de contrastes

    Paixão e glória, morte na cruz e ressurreição, homem humilhado e Filho de Deus: eis alguns dos fortes contrastes da liturgia deste domingo, e que têm o seu ponto alto no chamado «Tríduo pascal». Bom, para já, uma coisa seja clara: se pretendermos entender tudo à luz da razão, acabamos por não entender mesmo nada. Mas, pensando bem, não se trata só de contrastes desta fase da vida de Jesus; são os contrastes de todo o arco da sua vida, que não apenas da última etapa.

 

     A leitura e a vivência da «Paixão» de Marcos preanuncia os mistérios da próxima Sexta-Feira Santa e também o esplendor do Domingo da Ressurreição. É um convite e uma oportunidade para aprendermos qual a natureza do Reino de Jesus e como deve ser, por conseguinte, a nossa adesão a ele. O triunfo de Jesus está ligado à aceitação da cruz. E o cristão ou discípulo de Cristo (que não é maior que o Mestre) não pode pretender que o seu triunfo seja doutra natureza.

 

  • Sobre o ingresso em Jerusalém

     «Antes de mais, há que dizer que se trata de um modesto triunfo para Jesus. Ele teve tantos contrastes com os seus opositores, não só com escribas e fariseus, mas também com gente do povo e com os seus conterrâneos de Nazaré! Agora é chegado o reconhecimento, tanto mais significativo, quanto mais se verifica num ambiente difícil, mais impenetrável, Jerusalém».  

 

   «Um pequeno triunfo em Cafarnaum ou na Galileia não teria causado tanta admiração. Em Jerusalém, era totalmente diferente. Certamente lá havia amigos e admiradores entre os próprios fariseus, como, por exemplo, Nicodemos, José de Arimateia e outros; como, de resto, os factos posteriores demonstrarão. Mas Jerusalém era também a praça forte da oposição e isso ver-se-á muito em breve. É por isso curioso e interessante que tenha sido em Jerusalém que Jesus recebeu esta manifestação espontânea de simpatia de carácter popular, que deixa os seus inimigos estupefactos. Não esperavam nada do género. Nunca teriam imaginado que Jesus pudesse ser alvo de tanto entusiasmo até nos átrios do Templo, sobretudo após o gesto impopular da expulsão dos comerciantes...». 

 

     «Só que este triunfo, certamente significativo, se revelaria bem depressa também muito efémero. Provavelmente, nunca ninguém teria imaginado que, em questão de cinco dias, no mesmo cenário, se pudessem ver coisas tão opostas»? (Emilio d'Angelo).

 

   Mas essa glória era, por assim dizer, uma glória toda humana. Devia vir ainda a glória definitiva, com o triunfo de Jesus sobre a própria morte, com a Ressurreição como porta triunfal do Reino eterno.

 

  • As vitórias nunca são fáceis

    A entrada triunfal de Jesus em Jerusalém termina com um sepulcro vazio, passando primeiro pela derrota duma morte ignominiosa. É esse o caminho traçado, de resto, pela primeira leitura de hoje, se se fizer uma análise atenta do texto.  

 

     O trecho é tirado do chamado «terceiro cântico do Servo de Javé» que, como os outros três, está inserido na obra do Dêutero-Isaías (Is cc. 40-55). Segundo os estudos dos exegetas, esse trecho, na sua vertente literária, é semelhante a um salmo de lamentação, ou melhor, parecido a uma proclamação de confiança individual: é o lamento do mediador, como aconteceu também com Moisés, Elias e Jeremias. Nos vv. 4-7, temos as palavras duma personagem anónima que não é conhecida nem por servo nem por profeta, mas cuja missão é própria de servo e de profeta.  

 

    De facto, três são as características desta personagem: a vocação em vista da palavra; o sofrimento durante a sua missão; e a sua confiança inquebrantável no auxílio do Senhor. Os evangelistas viram profeticamente estas características do Servo Sofredor realizadas na Paixão e Morte de Jesus na Cruz.

 

  • Ele é Senhor porque dá vida

     A ciência pode prolongar a vida humana, tornar um pouco menos atroz a morte, mas o problema do sofrimento e da morte fica por resolver.

 

    Na ótica cristã, Jesus é a única resposta a esse problema. Mas é-o enquanto Filho de Deus. Porque, enquanto simples homem, a sua morte, no fundo, substancialmente, não se distanciaria muito de qualquer outra morte. Por outras palavras, e pensando bem, se Jesus tivesse sido apenas um homem, a sua morte não teria tido mais valor do que a morte de qualquer outro homem. Mas, sendo também Deus, Ele apropria-se das chaves da morte e abre a todos a possibilidade de sair do beco sem saída das trevas e do desespero. Assim, a par do sofrimento e da vida, podemos já experimentar - ou pelo menos intuir - algo de inaudito: que, atrás da porta da morte, está o próprio autor da vida; e que Ele ali está como que à espera de poder conferir-nos as características da vida que nunca acaba.

 

  • Originalidade incompreensível de Deus

    Há certas coisas na vida que não se explicam. Há coisas que só é possível contemplar. Que alguém dê a vida por outra pessoa, isso não se explica, porque a explicação seria uma diminuição e, de algum modo, um apoucamento do gesto. Contempla-se, admira-se e agradece-se e mais nada. Da mesma maneira, que Deus tenha criado o mundo e tenha posto nela o homem como rei da criação, não é algo que se explica. É algo que tem que se contemplar.

 

    Que Deus, por amor do homem, se tenha feito Ele próprio homem, é qualquer coisa que não se explica, porque não se pode explicar que um Deus se deixe «vencer» pelo amor ao homem. Agora, que Deus não só faça isso, mas que se deixe morrer numa cruz, para que esse homem não morra para sempre, é para os judeus um escândalo e para os gregos uma loucura; e para nós, cristãos, um mistério que jamais estaremos em condições de entender ou desvendar; pelo menos nesta dimensão. Talvez um dia nos seja levantado um pouco o véu do mistério e comecemos a compreender alguma coisa.

 

    Disso devemos estar convencidos como cristãos, como homens de fé, porque é Paulo que nos garante que Deus tem reservado para os que O amam coisas que jamais olhos humanos viram e jamais ouvidos humanos ouviram (cf. 1Cor 2,9).

 

  • Por amor, Ele põe-se no nosso lugar

    Por amor, costuma dizer-se, fazem-se loucuras. E quanto maior for o amor, maiores serão as loucuras. Se é assim, então, realmente ninguém podia fazer maior loucura que Deus, porque ninguém, para além dele, sabe amar como se deve amar. Se alguma explicação há para as «loucuras» de Deus é o seu amor.

 

    E, como todos sabemos, o amor não se explica, vive-se. Naquela cruz do Calvário, era mais correto que estivesse suspenso cada um de nós. Jesus, Deus feito Homem por amor do homem, tomou sobre si, por amor, a nossa fragilidade, aceitando ser condenado como malfeitor. E nós, graças a Ele, que ocupa o nosso lugar, como sucedeu até com Barrabás, somos libertados, somos perdoados, somos sanados. É inaudito: aquele que faz isto tudo é o Filho de Deus, ou seja, aquele ao qual devemos contas das nossas traições, desilusões, incompreensões, maldades...

 

    Onde é que se viu o juiz fazer-se condenar a si mesmo por amor do imputado ou réu? É algo realmente inaudito e sobre-humano. Só Deus podia inventar uma coisa semelhante!

 

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A LOUCURA DE AMOR DE UM CRUCIFICADO

 

Saí um dia da minha casa

E, ansiando ao meu redor,

Encontrei um homem

No terror da Crucifixão.

«Deixa que te baixe da cruz», disse-lhe.

E tentei arrancar-lhe os cravos dos pés.

Mas ele respondeu-me:

«Deixa-me estar onde estou,

Porque não descerei da cruz,

Enquanto todos os homens,

Todas as mulheres e todas as crianças

Não se unirem para me tirar daqui».

Então eu disse-lhe:

«Mas, como posso suportar o teu lamento?

O que posso fazer por ti?»

Então ele respondeu-me:

«Vai por todo o mundo e diz a todos os que encontrares no teu caminho

Que há um Homem cravado numa Cruz».              

                                                                                                       ( Fulton J. Sheen )