III DOMINGO DA QUARESMA
Temas de fundo |
1ª leitura (Ex 20,1-17): (Deus disse) Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fez sair do Egito, da casa da servidão. Não terás outros deuses além de Mim. Não farás para ti imagem esculpida nem representação alguma do que está nos céus, do que está na terra e do que está debaixo da terra, nas águas. Não te prostrarás diante dessas coisas e não as servirás, porque Eu, o Senhor, teu Deus, sou um Deus zeloso. Não pronunciarás o nome do Senhor, teu Deus, em vão. Recorda-te do sábado para o santificar. Honra teu pai e tua mãe, para se prolongarem os teus dias sobre a terra. Não matarás. Não cometerás adultério. Não roubarás. Não acusarás o próximo como testemunha mentirosa. Não desejarás a casa do teu próximo. Não desejarás a sua mulher, os seus servos, o seu boi, o seu burro, nem nada do que lhe pertence.
* Deus é único e a Ele é devida obediência. Este trecho faz parte do grande ciclo da Aliança feita no Sinai. Temos aqui o resumo e a revelação do que Deus faz pelo seu povo e daquilo que o povo deve pôr em prática para ser independente e feliz. Esse quadro está resumido nos chamados «Dez Mandamentos». Aqui Deus apresenta-se como primeiro contraente (nesta leitura). Mais tarde (Ex 24,1-11), temos a aceitação por parte do povo em um juramento solene: «Nós poremos em prática todas as palavras que o Senhor pronunciou» (24, 3). E é tudo estipulado, ratificado e selado, digamos assim, com o sangue do sacrifício (24, 5-8). Para ficarmos com uma ideia ainda mais completa sobre este assunto, só nos fará bem consultar também o que diz o chamado Deuteronómio, nomeadamente no seu capítulo 5. Gostaria também de realçar que estes dois livros nos dão a chave de leitura de todas as «leis» emanadas no Sinai: «Israel, escuta e tem cuidado em cumprir o que será bom para ti... Escuta, Israel! O Senhor é nosso Deus. O Senhor é único! Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda as tuas forças» (Dt 6,3-4).
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2ª leitura (1Cor 1,22-25): Enquanto os judeus pedem sinais e os gregos procuram a sabedoria, nós pregamos um Messias crucificado; uma mensagem que é escândalo para os judeus e loucura para os gentios. Mas, para aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é poder e sabedoria de Deus. É que o que é tido como loucura de Deus é mais sábio do que a sabedoria dos homens, e o que é tido como fraqueza de Deus, é mais forte do que a poder dos homens.
* O que é importante é a sabedoria de Deus. No AT, o sinal da aliança era o sangue dos animais (cf. Ex 24). No NT, o sinal da aliança já não é o sangue dos cordeiros, mas sim o sangue de Cristo. Antes, assinalvase e comemorava-se a libertação da escravidão do Egipto. Agora, celebra-se a salvação total que nos vem através do sacrifício da cruz. É esta a «proposta» feita: a de um Messias crucificado, que é escândalo para os judeus e absurdo ou loucura para os gentios. A salvação que chega ateravés da fragilidade e da fraqueza é das ideias mais difíceis de fazer passar, mas, pelos vistos, é a única capaz de levar a bom termo a reconciliação e a salvação da humanidade (e aqui eu acrescentaria até no plano político e social). Enquanto os homens não desistirem de se guerrear por pretenderem ser superiores aos outros, desrespeitando os direitos que o Decálogo lhes confere, não será possível a salvação nem sequer a harmonia e a pacificação entre as pessoas.
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Evangelho (Jo 2,13-25): Quando estava próxima a Páscoa dos judeus, Jesus foi até Jerusalém. Encontrou no Templo vendedores de bois, ovelhas e pombas, bem como também cambistas nos seus postos. Então fez um chicote de cordas e expulsou-os a todos do templo, junto com as ovelhas e os bois; espalhou as moedas dos cambistas pelo chão e derrubou-lhes as mesas; e disse aos que vendiam pombas: «Tirai isso daqui. Não façais da casa de meu Pai uma feira». Os seus discípulos (mais tarde) lembraram-se do que diz a Escritura: «Devora-me o zelo da tua casa». Então as autoridades judaicas intervieram e perguntaram-lhe: «Que sinal nos dás de que podes fazer isto?». Jesus declarou-lhes: «Destruí este templo e, em três dias, Eu o reconstruirei!». Replicaram eles então: «Este templo levou quarenta e seis anos a construir e Tu vais levantá-lo em três dias?». Mas o templo de que Ele falava era o seu corpo. Por isso, quando Jesus ressuscitou dos mortos, os seus discípulos recordaram-se de que Ele o tinha dito e creram na Escritura e nas palavras que Ele tinha proferido. Enquanto Ele estava em Jerusalém, durante as festas da Páscoa, ao verem os sinais miraculosos que fazia, muitos acreditaram nele. Mas Jesus não se fiava deles, porque os conhecia a todos. Ele não precisava que ninguém o elucidasse acerca das pessoas, pois sabia o que há dentro delas.
* Não façais da casa de meu Pai um mercado. Este trecho do Evangelho de S. João é, com toda a probabilidade, um dos que mais nos proporciona tecer considerações sobre a forma um tanto «ríspida» que Jesus utilizou para despertar a atenção das pessoas e para dar um novo sentido ao «culto» a realizar no Templo de Jerusalém (e, por atacado, em qualquer outro templo). É verdade, por circunstâncias várias, há que reconhecer que, também hoje em dia, infelizmente, há «negócios» pouco limpos e também muita exploração à volta dos templos e santuários. Não é isso que estamos a comentar, mas diga-se, de passagem, que essa atividade certamente não merece a concordância de Jesus Cristo. Seja como for, parece-me que este texto nos leva mais além, na medida em que Jesus propõe claramente a sua própria pessoa como o templo por excelência para oferecer o sacrifício agradável ao Pai. Esta mensagem do evangelista S. João parece tão importante que ele insere este episódio logo na primeira parte do seu livro. E volta a referir a ideia, dois capítulos mais à frente - diálogo com a samaritana - quando diz: «Mulher, acredita em Mim: chegou a hora em que, nem neste monte, nem em Jerusalém, haveis de adorar o Pai... os verdadeiros adoradores hão-de adorar o Pai em espírito e verdade» (cf. Jo 4, 21.23).
PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. |
* A Lei foi dada por meio de Moisés.
* Nós pregamos Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus; mas, para os chamados, é sabedoria de Deus.
* Destruí este templo e eu construí-lo-ei em três dias. |
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AO VEREM OS SINAIS MIRACULOSOS QUE FAZIA, MUITOS ACREDITARAM NELE. |
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A Lei como sinal da aliança
Um momento importante da história da salvação é-nos apresentado pela liturgia da palavra de hoje: a celebração da Aliança do Sinai, mediante a promulgação do Decálogo. As três leituras falam-nos disso, mas o sentido profundo da aliança é-nos proposto sobretudo pela primeira e pela segunda leituras. Relativamente à primeira, talvez se possa adiantar que, de alguma forma, todo o livro do Êxodo converge para o evento do Sinai: a libertação do Egito, a vontade de Deus em formar um povo, a caminhada de purificação pelo deserto. O trecho de hoje é, por assim dizer, o coração da aliança. A promulgação do Decálogo como norma para a aliança divina com o povo israelita apresenta e representa a totalidade das relações com Deus e com os homens.
O mandamento que proíbe a idolatria, o que proíbe invocar em vão o nome de Deus e o que manda consagrar um dia ao Senhor, são a síntese dos deveres do homem para com Deus. Os outros mandamentos são a síntese dos deveres das pessoas entre si. Mais, no fundo, também os mandamentos que regulam as relações entre as pessoas, em última análise, não fazem senão pôr as mesmas pessoas perante Deus, que é o garante da dignidade e da igualdade fundamental da raça humana.
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Pacto estabelecido para bem dos homens
Os «detratores», por assim dizer, dos Dez Mandamentos adoptam fundamentalmente duas atitudes: a primeira é a de que se trata de uma série de normas atentatórias da liberdade humana; a segunda é a alegação de que, afinal, o Decálogo não é nada de original, pois, duma maneira ou doutra, é igualmente comprovável em outras religiões em qualquer sociedade.
Bem, quanto à primeira posição, não se pode esquecer que a liberdade humana, por mais que se queira e por mais que se barafuste, é sempre relativa e, por isso mesmo, carece de certas regras para não ultrapassar certos limites; os que vão colidir com a liberdade dos outros. Para além desse limites não respeitados já não se pode falar de liberdade. Por outro lado, há sempre alguém disposto a acusar (nomeadamente o cristianismo e, com mais gosto ainda, o catolicismo), de falta de originalidade, porque - diz-se - o Decálogo (ou código de comportamento) está inscrito no coração de próprio homem; está inscrito em todas as religiões de todas as sociedades. Portanto - concluem com gosto os críticos cheios de prosápia que contestam a posição cristã - isso não tem nada de original.
Para já, isso não é prova nenhuma de que essa religião (cristianismo) seja, por exemplo, falsa. O que pode demonstrar é, por exemplo, que o único legislador de toda as criaturas humanas é o Deus da história na sua globalidade. Assim, parece poder deduzir-se que a Lei, em vez de cercear a liberdade do homem, é um meio capaz de assegurar a fidelidade do homem para com esse Deus que é o dono da história dos homens e quer o bem deles.
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Deus perfeito e sempre «fiel»
Se Deus «impõe» uma série de regras ao homem, não é por «tirania» ou porque lhe queira cercear os movimentos, digamos assim. Não será antes porque lhe quer bem e não quer que ele siga pelos caminhos da ruína e da perda de sentido? Acresce a esta noção o facto de que, como o atesta abundantemente a Bíblia, Deus está sempre disposto a ir ao encontro do homem, mesmo quando este é infiel ao Decálogo, a partir do momento em que o homem esteja disposto a arrepiar caminho e a seguir o caminho justo.
A este propósito, parece-me útil propor a seguinte história, baseada na realidade. Um dia, apresentou-se a Plácido Riccardi, um monge beneditino, um jovem que, lançando-se-lhe aos pés quase a chorar, disse: «Padre, eu cometi todos os pecados do mundo!». «Todos, menos um!», respondeu-lhe o padre. «Mas eu digo-lhe "todos", porque foram todos». Ao que o P. Plácido retorquiu: «Mas eu insisto que falta um: o de não teres duvidado da providência divina, porque vieste aqui reconciliar-te. Então Deus perdoa-tos todos».
Este simples episódio é uma profissão de fé em que Deus é o «fiel por excelência». O pacto com Deus só pode ser quebrado pelo homem. De resto, a história da salvação, a partir do ato ou Aliança do Sinai, não é outra coisa senão a aventura de um Deus que, digamos assim, não descansa enquanto o homem, sempre volúvel, não regressa a Ele. Isso é evidente de maneira particular na literatura profética, mas é um denominador comum em todas as etapas da história do povo eleito.
E, como se não bastasse o que já tinha feito, para demonstrar, em termos práticos, a sua fidelidade, Deus não receou mesmo enviar o seu Filho ao mundo, para que, acreditando nele, o mundo não se perca, mas se salve (cf. Jo 3, 16-17). Mais, no dizer de S. Paulo, Deus não poupou o seu Filho nem sequer às ignomínias, para que não pudéssemos descrer de maneira nenhuma da seriedade do seu amor. É por isso que, no NT, o sinal da aliança já não é o sangue de cordeiros ou de outras vítimas do sacrifício, mas o sangue do próprio Jesus Cristo. É certo que isso é um escândalo e uma loucura para judeus e gregos, mas para nós isso é o sinal supremo do amor e da fidelidade de Deus para com o homem.
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A lei perfeita e sem limites é o amor
Dissemos que a lei de Moisés, mais do que imposição e limitação no sentido pior do termo, é um dom e uma garantia em vista da salvaguarda da liberdade. Jesus confirma a validade dessa Lei, mas quer superar definitiva e radicalmente a forma como ela era observada. Dá-lhe interioridade, liberta-a do formalismo, dá-lhe a dimensão do que de mais específico existe no homem, de modo que, liberto da letra dos preceitos, ele se torne o servo do amor, que é o dom supremo de si em plena liberdade.
Com alguma frequência, à semelhança dos antigos hebreus, nós reduzimos o Decálogo ou Dez Mandamentos (e o que dele deriva) a mero formalismo. Com efeito, à semelhança do que eles faziam, a nossa aliança com Deus, por vezes, incrivelmente, reduz-se, talvez na maior parte dos casos, a uma apressada e desinteressada «assistência» à missa dominical, quando isso não se torna muito incómodo e, pontualmente, a qualquer visita «turística» a algum santuário ou lugar santo. Pois bem, correndo embora o perigo de escandalizar alguém, é meu dever afirmar que o cristianismo não é um mosaico de práticas ou ritos a encaixar e a cumprir em datas fixas. Isso é, se quisermos, apenas uma consequência. O cristianismo deve ser, isso sim, antes de mais, a aceitação no amor e na fidelidade, do projeto de Deus, através de Jesus Cristo, com a força e a direção do Espírito.
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A cruz é uma mudança de direção
O Decálogo quere-se algo de vivo. Nenhum código frio conseguirá alguma vez destronar o egoísmo e o espírito de concorrência ou os anseios de hegemonia que moram no coração dos indivíduos. Nesse aspeto, nem sequer os ministros do templo se salvam. O egoísmo e a procura do dinheiro e do poder acabam sempre e em toda a parte por transformar as casas de oração em antros de ladrões, conforme a expressão evangélica. Há uma solução? Tem que haver. A única é a do mandamento do amor ou, pelo menos, a regra áurea de não fazer aos outros aquilo que não queremos que nos façam a nós. Há uma escola onde se aprendem estas coisas? O Evangelho e Paulo dizem que é a escola da Cruz.
Ao apresentarmos a Cruz como caminho a seguir, não podemos negar que não temos vantagem humana em relação aos seguidores da filosofia, da literatura, da economia, da ideologia e do edonismo a todo o custo e em relação àqueles que procuram a glória e o poder. Jornais, revistas, rádio e televisão e demais plataformas comunicacionais que a tecnologia nos faculta, propõem-nos com insistência modelos de vida reclamizados como ideais: cantores e atores famosos, «heróis» dos estádios, homens de poder e prestígio social, pessoas que têm dinheiro. É o mito do sucesso fácil. Será este o caminho para uma melhor humanização dos homens?
Como regra, crê-se que aproveitar os prazeres e realizações de ordem material torna a vida menos insuportável. Ao contrário, crê-se que a cruz é apenas uma amarra. Mas a zona e o consequente perigo da escravidão não é assim tão facilmente delimitável. Se por escravidão se entende a dependência duma realidade qualquer, então, na prossecução desses objetivos e metas (que, por suposição, conduziriam à felicidade) existe uma liberdade ilusória e uma escravidão real, embora camuflada. O facto é que somos escravos da moda, do culto do fim- -de-semana, das férias, do culto da revolução informática, do divertimento, do luxo, dos top pops, das drogas, do carro, enfim, da «dolce vita».
Nós, que rejeitamos alto e bom som a escravidão, nós que ficamos horrorizados só de ouvir dizer que as pessoas têm que ter regras de comportamento, afinal, dependemos de tudo isso, como se isso nos desse a serenidade e a paz!