I DOMINGO DA QUARESMA
Temas de fundo |
1ª leitura (Gn 9,8-15): Deus disse a Noé e aos seus filhos: «Vou fazer a minha aliança convosco, com a vossa descendência, com todos os seres vivos, todas as aves e animais, tudo o que saiu convosco da arca. Estabeleço convosco esta aliança com as seguintes palavras: nunca mais criatura alguma será exterminada pelas águas do dilúvio; não haverá jamais outro dilúvio para destruir a terra. Como sinal desta aliança que faço convosco, com todos os seres vivos que vos rodeiam e com as demais gerações futuras, coloco o meu arco nas nuvens. Este será o sinal da aliança entre mim e a terra. Sempre que cobrir a terra de nuvens e aparecer o arco nas nuvens, recordar-me-ei da aliança que firmei convosco e com todos os seres vivos da terra. E as águas do dilúvio não voltarão mais a destruir nenhuma criatura.
* A libertação do mal.
Purificada pelas águas do dilúvio, nasce uma humanidade nova, graças à força e poder de Deus. É apresentado como símbolo de confiança no poder e fidelidade de Deus o nome de Noé, envolto numa história que - se bem recordo das leituras que fiz - também se encontra em outras literaturas (mesmo exteriores ao Médio Oriente). E então isso dá-me ocasião para insistir que, mais importante que o episódio em si e com as suas explicações (para as quais não encontro talhado), é a lição que dele se pode tirar. Ora bem, uma das primeiras conclusões que se pode tirara é esta: assim como sucedeu no início da humanidade, Deus põe constantemente as bases para uma nova aliança, não obstante a infidelidade dos homens. Sabemos, pela «história da salvação», que o homem em geral e o povo de Deus em particular caracteriza a sua conduta pela rejeição constante. Mas não é menos certo que Deus, apesar disso tudo, nunca desiste do seu plano em relação à humanidade. De vez em quando, será preciso que a água purificadora dos dilúvios lave a humanidade do pecado e do mal, mas a verdade é que não é intenção de Deus destruir as criaturas. Esta leitura do Génesis pode - e deve, acho eu - ser, pois, também vista como uma espécie de «prova» de que Deus, mesmo após momentos em que a humanidade se perde por completo, como que arranja sempre maneira de fazer com que, da fé e da persistência dum «resto», ela seja restituída à vida. Por fim, penso que será bem ter em atenção que a «antropoformização» de Deus é uma figura sobejamente conhecida, para não levarmos tudo que a Ele diz respeito à letra, correndo o ricos de interpretar mal o que está contido na Bíblia.
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2ª leitura (1Pe 3,18-22): Cristo morreu pelos pecados de uma vez para sempre, o Justo pelos injustos, para nos conduzir para Deus. Ele morreu fisicamente, mas foi vivificado no espírito. Na sua existência espiritual, foi então pregar também aos espíritos cativos; aos incrédulos que não obedeceram outrora a Deus quando Ele esperou com paciência, no tempo de Noé, quando se construía a arca. As poucas pessoas na arca – oito apenas – salvaram-se graças à água, que era uma figura do batismo, que agora vos salva. Não se trata de limpar impurezas do corpo, mas do compromisso com Deus por parte de uma boa consciência. Ela (a água) salva-vos graças à ressurreição de Jesus Cristo, que subiu ao céu e está sentado à direita de Deus, reinando sobre os Anjos, as Dominações e as Potestades.
* Salvos pela água em Jesus.
Uma das intenções - se não a principal - desta primeira Carta de S. Pedro é exortar os fiéis a manterem-se fiéis a Jesus, não obstante as dificuldades e as perseguições de que são alvo na altura em que ele se lhes dirige. No contexto desta liturgia da palavra, este texto terá sido colocado aqui por fazer referência ao dilúvio e a Noé, de que fala a primeira leitura. Mas o autor vai muito mais além desse dado. É-me difícil saber o que ele quer dizer quando afirma que Jesus, na sua existência espiritual, foi pregar aos «espíritos cativos». Agora, o que se me oferece sugerir é que ele faz uma referência implícita ao facto de a salvação não ser apenas um «fenómeno» localizado, «judaico», mas sim um evento universal, desde os tempos de Noé. E isso realiza-se graças ao poder salvífico da água do batismo cuja força advém da ressurreição de Jesus. É o viver os compromissos do batismo que dá direito à salvação. Daí a importância de, neste tempo especial da Quaresma, se insistir tanto no tema do batismo e dos seus compromissos.
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Evangelho (Mc 1,12-15): O Espírito impeliu-o para o deserto, onde ficou quarenta dias e onde foi tentado por Satanás. Havia também aí feras, mas os anjos serviam-no. Depois de João ter sido preso, Jesus foi para a Galileia proclamar o Evangelho de Deus: «Completou-se o tempo e o Reino de Deus está perto. Arrependei-vos e acreditai no Evangelho».
* Arrependei-vos e acreditai.
A figura e a pessoa de Jesus durante 40 dias no deserto (tempo razoavelmente longo de preparação para um evento importante, como o é o início da sua vida pública), bem como as tentações a que é sujeito, além da sua mensagem inicial - «Arrependei-vos e acreditai no Evangelho» - marcam o sentido deste de grande «retiro» em que entra o povo cristão no período da Quaresma. O segundo evangelista (S. Marcos) não descreve de forma pormenorizada o conteúdo e a forma das várias tentações (como faz, por exemplo, o evangelista S. Mateus), talvez porque não seja isso o que mais lhe interessa transmitir aos seus cristãos. Ele pretende dar ênfase é à necessidade de mudar de vida e de acreditar na Boa Nova. Mudar de vida e acreditar na Boa Nova não pode nem deve ser certamente uma coisa impossível. Dá a impressão é que, quando Jesus faz este anúncio de conversão e de convite às pessoas que O escutam, não está, como é evidente, a pretender que todos tomem a decisão de se fazer monges e eremitas. De resto, tenho a certeza de que a primeira e a grande conversão que Ele pede a todos é a de pôr a Deus em primeiro lugar na nossa vida, procurando agir em conformidade com isso. Por outras palavras - já muito tempo que o escrevo - a nossa grande conversão é tomar realmente consciência de que somos filhos de Deus, levà-lo, por conseguinte, a sério, e sintonizar a vida com os seus planos/vontade. O facto de sermos filhos de Deus é com certeza a maior «boa nova» que alguma vez podemos receber e o grande motivo para mudar completamente de vida.
PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. |
* Aliança com Noé libertado das águas do dilúvio.
* A arca é figura do baptismo que salva.
* Jesus, tentado por Satanás, é servido pelos anjos de Deus. |
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ACREDITAI NO EVANGELHO. |
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As consequências do risco
Entrou de moda, há alguns anos, o termo «reflexão», até nos círculos assim chamados laicos (que, por coincidência, abundam sobretudo nos países tradicionalmente cristãos). Por tudo e por nada, lá se vai desencantar essa palavra. Mas, pensando bem, não é nada de estranhar que, em ambientes moldados por uma cultura que, quer queiram quer não, afunda as raízes no húmus cristão, se usem expressões ricas de humanidade e interioridade.
Ser-me-á certamente permitido também utilizar o mesmo termo. Pois bem, a vigília dum grande acontecimento costuma ser assinalada por um tempo mais ou menos prolongado de reflexão e de preparação, conforme o acontecimento é mais ou menos importante. É como que um recolher-se em si mesmo (afinal, é esse o sentido à letra do termo reflexão). Há que criar um ambiente de reflexão para se lançar, por assim dizer, com mais ardor, numa vida nova. Só procedendo a essa operação de «atestação» das próprias virtualidades é que é possível enfrentar as incógnitas, as hesitações e as incertezas do futuro.
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Conversão: reflexão para enfrentar o risco
Há certos momentos marcantes da vida que implicam (ou que, pelo menos, deveriam implicar) mudança de mentalidade e de vida, ou conversão. O baptismo dum adulto, por exemplo, comporta esta radicalidade: uma mudança de mentalidade, de hábitos, de atitudes; e sobretudo a mudança de centro de interesses. Começa, com efeito, uma vida que bem se pode considerar nova. É por isso que a opção do baptizando adulto tem que ser muito bem pensada e, se calhar, é também por isso que esses baptizados geralmente levam mais a sério os compromissos assumidos solene e de modo mais consciente.
Análoga deveria ser a experiência do matrimónio. Não tenho, porém a certeza de que assim aconteça. De qualquer forma, não se pode ir para o casamento, como se vai com frequência: de ânimo leve. Infelizmente, é o que se vê por aí com demasiada frequência. Não é de admirar que, por isso mesmo, as consequências sejam aquilo que a gente sabe. O mesmo tipo de seriedade e compromisso se deve assinalar em relação ao tema da consagração na vida sacerdotal ou religiosa.
Estas são opções de vida que comportam necessariamente uma mudança, um novo rumo. Nem sequer estou a dizer que essa mudança significa renunciar a algo de negativo. Não, trata-se só de calcular as consequências e os riscos que uma nova situação comporta e agir em conformidade. Mais nada! Mas isso exige uma aturada reflexão, de tal modo que o desconhecido e as incertezas do futuro se não transformem em obstáculos intransponíveis. Fazer uma certa opção é sempre proceder a uma conversão; ou seja, a uma mudança de rumo e a uma escolha.
Em termos absolutos, Jesus não precisava deste tempo de reflexão, mas, como homem, em tudo igual aos outros excepto no pecado, também foi inspirado a retirar-se para o deserto a fim de se preparar proximamente para a sua missão. Nesse sentido, também Ele deixou atrás de si hábitos quotidianos, ditados por um ritmo de vida calmo em Nazaré, os laços familiares e as amizades da infância e da juventude, para seguir uma estrada que o levará até à Páscoa, num crescendo que não conhece paragens.
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Radicalidade: ou tudo ou não
Também a liturgia de hoje nos interpela duma forma que nos faz pensar: «O Reino de Deus está próximo». Esta frase teve um tal impacto que impressionou vivamente todos os que ouviram Jesus pronunciá-la. Por isso, é necessário estar preparado para mudar de rumo de vida. E certamente Jesus não diz isto só por dizê-lo. Ele propõe realmente uma mudança completa de rumo.
Mas para Jesus, mudança não é só e sobretudo a prática - mais ou menos rigorosa - de algumas normas legais, de exterioridades ou ritos. A mudança é, em vez disso, uma atitude que diz respeito a «todo» o homem; ou, melhor dizendo, ao homem «todo»: não apenas como renúncia ao pecado (o que, de facto, em teoria, até aceitamos com bastante facilidade), mas sobretudo como opção, na teoria e na prática, por uma nova orientação para o futuro. Isto já é mais radical e comprometedor. Fazer uns sacrifícios ou uma renúncias pode ser até fácil de pôr em prática. Ora, não é nada raro que a conversão autêntica implique também uma crise de fé, da qual se sai ou derrotado ou então mais fortalecido com uma profunda e sentida experiência de Deus.
A proposta de Jesus pode ser tão radical que eventualmente se pode ficar com a impressão de que Ele nos quer sós contra todos. Mas, mesmo a custo de desafiar o ridículo de construir uma arca, «quando nem sequer um floco de nuvem se desenha no horizonte», não há outra alternativa que não seja a de deixar tudo para trás para seguir os planos de Deus e construir uma humanidade nova. Ora bem, o que acabo de dizer continuará a ser apenas um amontoado de palavras, mais ou menos bonitas, enquanto não se traduzir numa mudança de mentalidade, de maneira de ver. Noé (1ª leitura) fez o que fez contra a opinião e a ridicularização de todos, porque a visão que ele tinha das coisas era totalmente diferente da dos outros. Ele via a realidade sob outra perspectiva. É esse o princípio básico e indispensável da conversão.
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Não basta o reformismo cauteloso
Custa-me estar a dizê-lo e a repeti-lo - e faço-o, em primeiro lugar, contra mim próprio - mas, diante do mal, mesmo daquilo a que podemos chamar mal social, as soluções parciais não bastam. Os retoques superficiais podem dar a impressão de que tudo está em ordem, mas isso não é senão aparência. É o que se costuma dizer: «mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma». E isto vale também no campo espiritual; ou, se calhar, mais ainda no campo espiritual. Não é aceitável, bem vistas as coisas, uma espécie de reformismo e «barrela» que nos dá a ilusão da mudança, mas que acaba por deixar intacta a raiz do mal.
O convite de João Baptista à conversão (melhor, em última análise, o convite de Cristo) é um convite à conversão total. Não se trata apenas de retocar qualquer coisa na nossa vida, mas, sim, de operar uma viragem de mentalidade, uma mudança de quadro de referências e valores, de opções fundamentais. E isso não só em teoria, mas através da prática da vida.
Há quem acredite nos mitos da violência e do ódio, há quem acredite nos mitos da publicidade e do factor económico para a solução dos problemas da humanidade. É isso o que nos querem vender os chamados meios de comunicação social. Nós temos é que acreditar na certeza de que é Cristo a solução e que Ele é o único que pode salvar, porque só Ele é Filho de Deus.
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Quando nos falta o fôlego
A Quaresma convida-nos a acreditar no Evangelho (de Cristo); ou seja, a libertar-nos de todos os ídolos e mitologias. Numa palavra, convida-nos a dar uma confiança incondicional e a fazer uma aposta absoluta em Jesus Cristo. Como escrevi acima, as pequenas mudanças ou pequenos sacrifícios e mortificações não têm muito sentido sem essa aposta em Jesus Cristo. É por isso que ao convite à conversão («convertei-vos») se segue logo um outro convite que lhe está associado: «acreditai no Evangelho».
Essa «consignação» da própria maneira de ser e de ver a vida não é uma coisa fácil. Com muita frequência, falta-nos o fôlego e a coragem, porque, parafraseando o texto de Isaías, «os caminhos dele não são os nossos caminhos» (cf. Is 55,8). Falta-nos o fôlego porque o caminho que temos a seguir leva-nos necessariamente ao calvário e à cruz, pois sem isso não há Páscoa. Nós queremos Páscoa e Tabor sem Calvário, mas isso é impossível, pois quem não toma a sua cruz não é digno do Mestre. Estas expressões, como é evidente, não são só para figurar nos Evangelhos. Quando pensamos um pouco mais a sério, falta-nos o fôlego, mas é precisamente nessas circunstâncias que aparece o Cireneu por excelência, que nos ajuda na caminhada. É só a caminhada lenta e dolorosa para o Calvário que produz a conversão.
Pensar em conversões rápidas, de improviso e espectaculares e pensar sobretudo que, com elas, tudo fica resolvido automaticamente, é uma ilusão. Por outro lado, a santidade não é apenas uma questão de pequenos ritos e pequenos (ou grandes) sacrifícios numa determinada altura do ano (seja ela qual for). Pensar que seja assim, é não querer mudar absolutamente nada. A caminhada para o Calvário é uma constante da vida, é qualquer coisa que tem que se realizar todos os dias. Mais: as opções fundamentais da vida que se fazem são pura e simplesmente o ponto de partida, não o ponto de chegada. São, por outras palavras, a descoberta duma direcção, duma meta que é preciso atingir. Mas, para chegar a essa meta, necessário se torna seguir determinadas estradas, diferentes das anteriores, porque outro género de estradas não conduz lá. É isso a conversão.