CORPO E SANGUE DE CRISTO
(QUINTA-FEIRA DEPOIS DA SS. TRINDADE)
Temas de fundo |
Dt 8,2-3.14b-16a: Recorda-te como o Senhor, teu Deus, te conduziu pelo deserto, durante estes quarenta anos, para te pôr à prova com humilhações e dificuldades. Era sua intenção ver o que tu decidias fazer e se tinhas em mente obedecer aos seus mandamentos. Ele, primeiro, fez-te passar fome e, depois, deu-te a comer o maná, uma comida que nem tu nem os teus antepassados conhecíeis. A sua intenção era fazer-te compreender que nem só de pão vive o homem, mas vive de tudo quanto sai da boca do Senhor. O Senhor, teu Deus, tirou-te do Egipto, onde eras escravo. Foi Ele que te conduziu através deste deserto vasto e terrível, onde havia serpentes venenosas e escorpiões. Nessa terra árida e seca, Ele fez jorrar para ti água da rocha dura e alimentou-te com maná, um alimento que os teus pais desconheciam...
* Nem só de pão vive o homem. Segundo os entendidos, o livro do Deuteronómio (Segunda Lei), a par dos Salmos, era provavelmente um dos livros mais utilizados pelos judeus. E é talvez por isso que ele ocupa também um lugar central como motor de reflexão no contexto do AT. O trecho escolhido para a solenidade de hoje pretende despertar a atenção do povo de então - e a nossa também - para a necessidade e obrigação de nunca esquecer tudo o que o Senhor faz ao longo da nossa existência: quer como indivíduos, quer como fazendo parte duma determinada comunidade. Todavia, há um outro aspeto que não pode deixar de ser objeto de toda a atenção: a ação de Deus não está limitada aos acontecimentos próprios da história individual ou coletiva que se esgote e resuma na dimensão terrena. Ou seja, o maná que o Senhor deu ao seu povo era o símbolo duma outra comida. É que, como é dito no texto, «nem só de pão vive o homem, mas de tudo quanto sai da boca do Senhor». Como sempre acontece com a Bíblia, nota-se um claro convite a ultrapassar a pura dimensão terrena, porque ela por si só não responde por inteiro aos anseios e necessidades mais profundas do ser humano.
PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. 1Cor 10,16-17: O cálice de bênção, que abençoamos, não é porventura comunhão com o sangue de Cristo? E o pão que partimos não é porventura comunhão com o corpo de Cristo? Há um único pão, pelo qual nós todos, embora muitos, formamos um único corpo, pois todos partilhamos do mesmo pão.
* Formamos um só corpo. Nesta leitura, Paulo recorda aos cristãos de Corinto o alcance e significado da Eucaristia como sua «fusão» com Cristo e como comunhão com os irmãos (koinonia). Havia o perigo de que os cristãos se deixassem levar por usos e costumes pagãos. Com efeito, não se pode esquecer que Corinto era já então uma grande cidade cosmopolita, onde se cruzavam todas as correntes filosóficas e religiosas. Por esse facto, Paulo adverte os seus cristãos para que não confundam o banquete eucarístico com os banquetes que eram característicos dos sacrifícios pagãos. A Eucaristia não era apenas mais um «banquete», como o faziam outros, mas sim o sinal por excelência da congregação daqueles que acreditam no Senhor Jesus como Messias e Filho de Deus. Sendo o sinal por excelência da unidade do Corpo Místico de Cristo, então não é possível celebrar dignamente a Eucaristia sem que nela se construa sempre uma comunidade de solidariedade e de amor. PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. Jo 6,51-59: «Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem comer deste pão, viverá para sempre. O pão que eu darei é a minha carne que entrego para que o mundo tenha vida». Estas palavras originaram uma discussão acesa entre os judeus: «Como é que este homem pode dar-nos a comer a sua carne?». Jesus respondeu: «Em verdade, em verdade vos digo que, se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós. Mas quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna e Eu ressuscitá-lo-ei no último dia. É que a minha carne é verdadeira comida e o meu sangue é verdadeira bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue vive em mim e Eu vivo nele. Assim como o Pai, que me enviou, vive e eu vivo pelo Pai, assim também quem me come vive por mim. Isto é, pois, o pão que desceu do céu. Não é como o pão que os vossos antepassados comeram, pois morreram. Quem come deste pão vive para sempre». Jesus disse isto quando ensinava na sinagoga de Cafarnaum.
* Quem come deste pão vive para sempre. Este trecho evangélico faz parte do chamado «Discurso do Pão da Vida», exclusivo de João. Se é certo que alguns podem estranhar que o evangelista João não nos tenha deixado uma descrição «formal», digamos assim, da instituição da Eucaristia, por outro lado, não é menos verdade que é ele quem dá mais destaque ao tema da verdadeira comida e da verdadeira bebida (todo o capítulo sexto anda à volta do assunto). O realismo das palavras de Jesus é muito claro, pois o evangelista acrescenta que as palavras de Jesus originaram uma discussão acesa entre os judeus, que naturalmente não entendiam como é que Ele podia dar a sua carne a comer. Isso quer dizer que eles não entenderam as palavras de Jesus apenas como uma maneira de dizer, apenas como uma imagem, mas tomaram-nas à letra. E Jesus, por seu lado, não faz nenhuma tentativa para «tranquilizar» os ouvintes, já que insiste, mais que uma vez, que aquilo que está a dizer corresponde à verdade. Ou seja, Jesus desfaz claramente qualquer sentido metafórico que as suas expressões poderiam sugerir. Nesse sentido, o seu realismo é também para nós. Só quem come realmente deste pão é que vive para sempre. Mas, como é evidente, há comer e comer!
PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.
Alimentou-te com uma comida que não conhecias. |
U Um só pão e um só corpo, embora muitos.
q O meu corpo é verdadeira comida e o meu sangue verdadeira bebida. |
* O sentido duma festa
Pelo menos à primeira vista, pode dar a impressão que não há diferença nenhuma entre a Festa do Corpo de Cristo (em Portugal também conhecida por Festa do «Corpo de Deus») e a Instituição da Eucaristia por ocasião da Última Ceia (Quinta-Feira Santa). E, com efeito, para sermos rigorosos, há que afirmar que a realidade que se celebra é a mesma: a presença real de Jesus na Eucaristia. De qualquer forma, pode haver nuances que têm por objetivo ajudar-nos a «privilegiar», digamos assim, mais um que outro aspeto.
Assim, pode-se dizer que, na Quinta-Feira Santa, o acento vai claramente para a íntima conexão entre a Eucaristia e a Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus. Privilegia-se, pois, o aspeto da entrega e do sacrifício. Daí a expressão tão conhecida de «Sacrifício da Missa». Por isso, não é por nada que nesse dia se celebra também a «instituição do sacerdócio». Por seu lado, na Festa do Corpo de Deus, como que se acentua mais a ideia do Pão que nos dá vida, privilegiando, portanto, mais a presença eucarística de Jesus. Daí que se convidem os fiéis, sobretudo neste dia, a adorar a Jesus e, para o efeito, se façam as tradicionais procissões do Corpo de Deus.
A festa como «memória» do sacrifício de Cristo poderia levar a pensar tratar-se apenas de uma recordação e de uma presença desencarnada. Ora, a verdade é que se trata de uma memória que, através dos sinais do pão e do vinho, tomados e partilhados em comunidade, torna presente Cristo na sua realidade de Filho de Deus, que não cessa de se entregar sempre aos homens, para que estes tenham a vida e a tenham em abundância.
* Alguns dados úteis
A Festa do «Corpus Christi» foi instituída por Bula papal de Urbano IV em 1264, de modo a agradecer, de modo visível, a Deus o Sacramento da Eucaristia. Esta festa propagou-se em pouco tempo a todo o mundo católico. E também não foi preciso esperar muito para que fosse proposta como dia santo de guarda, ficando logo marcada para a quinta-feira depois da solenidade da SS. Trindade. A esta celebração está associada a Procissão Eucarística pelas vias públicas.
Pelo que se sabe, terá chegado a Portugal provavelmente já nos finais do século XIII e ficou com a denominação de Festa de Corpo de Deus (naturalmente o corpo de Jesus, o Deus feito homem, ou seja, com uma natureza humana como nós). Esta devoção popular à Eucaristia tem, pois, lugar 60 dias depois da Páscoa, numa quinta-feira, ficando assim intimamente ligada à Última Ceia, cuja instituição é tradicionalmente colocada na Quinta-Feira Santa.
* Mais que entender, é preciso contemplar
O santo papa Paulo VI (canonizado a 14 outubro de 2018 pelo papa Francisco), na homilia da Solenidade do Corpo e Sangue de Cristo de 12 de Junho de 1977, fazia referência ao facto de que, muitas vezes, as pessoas se habituam de tal maneira às coisas que acabam por não as apreciar. E acrescentava que é, por vezes, o que acontece com os cristãos no caso da Eucaristia. Falta-lhes a capacidade de se maravilharem perante o mistério; enfim, quase que poderíamos afirmar que lhes falta a capacidade de «se escandalizarem». Isso no sentido positivo do termo e não como sucedeu aos judeus ao ouvirem as palavras de Jesus: «Esta linguagem é dura. Quem é que a pode entender?» (cf. Jo 6,60).
Quer dizer, estamos de tal maneira habituados às «grandes coisas» (e, no que a nós diz respeito, o mistério da Eucaristia é uma delas) que parece que já não nos dizem nada, ou, por outras palavras, como que se tornaram coisas ordinárias; quase corriqueiras. Nesse sentido, esta solenidade é então uma ótima oportunidade para refletir sobre o assunto e para constatar até que ponto muitos cristãos de hoje não se admirariam nada se, por hipótese, a Eucaristia nem sequer existisse. Seria ótimo que achassem estranho.
O cristão que não tenha descoberto a novidade da presença de Jesus na Eucaristia não merece verdadeiramente esse nome. Jesus assumiu no meio de nós a imagem visível do Deus invisível, mas isso não podem ser apenas palavras. É sintomático que Jesus Cristo tenha instituído a Eucaristia antes do seu regresso ao Pai. De alguma forma, Ele quis também dar a entender que esta imagem não devia ser apagada do nosso horizonte. Sim, Ele continua a ser a imagem de Deus, através dos sinais do pão e do vinho; através destes sinais, não nos abandona, mas continua a estar connosco até ao fim dos tempos.
* A Eucaristia é o novo maná
O maná, como sabemos, serviu para manter em vida o povo peregrino no deserto rumo à Terra Prometida. Mas, como é óbvio, tratava-se de um alimento cuja utilidade era só manter a vida que designamos como física e perecível. Mas, na ótica cristã, é preciso muito mais do que isso, porque a vida não se reduz à dimensão terrena. Já a primeira leitura nos diz que «nem só de pão vive o homem, mas também de toda a palavra que sai da boca de Deus» (Lc 4,4).
Com muito maior razão, o novo povo de Deus tem necessidade de algo mais do que o pão material para ter a vida. Sendo assim, o pão que é partilhado na mesa eucarística é o único que pode garantir um tipo de vida que dura para sempre. No fundo, através da partilha do pão e do vinho, feitos corpo e sangue do Senhor, é a própria vida de Deus que «encarna» na vida daqueles que se alimentam do próprio Filho de Deus. É o próprio Jesus que, através deste sinal eficaz, continua a realizar o mistério da encarnação, digamos assim, na comunidade que se reúne em seu nome.