Temas

de

fundo

 

   Com a festa do Batismo do Senhor encerra-se o Ciclo do Natal e tem início o chamado «tempo comum», interrompido com a Quaresma, que começa com a Quarta-Feira de Cinzas. Com o batismo, Jesus dá início à sua Vida Pública.
    Se é certo que a Epifania é a celebração da universalidade da salvação - pelo que também os não judeus ou gentios recebem a mesma herança que os judeus - a primeira teofania solene – a sua manifestação como Deus, Enviado do Pai tem lugar nas margens do rio Jordão, quando Ele sai das águas, depois de receber o Batismo das mãos de João Batista: «Este é o meu Filho muito amado. Ouvi-O!».

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1ª leitura (Is 42,1-4.6-7): Diz o Senhor: «Eis o meu servo, que eu amparo, o meu eleito, que Eu prefiro. Fiz repousar sobre ele o meu espírito, para que leve a verdadeira justiça a todas as nações. Ele não gritará nem levantará a voz e não clamará nas ruas. Não quebrará a cana rachada, não apagará a mecha que ainda fumega. Anunciará com toda a firmeza uma justiça duradoira. Não desanimará, nem desfalecerá, enquanto não estabelecer na terra a justiça, as leis que os povos das ilhas esperam dele». «Eu, o Senhor, chamei-te e dei-te o poder, para que a justiça seja feita sobre a terra. Através de ti, estabelecerei uma aliança com todos os povos e levarei a luz às nações. Escolhi-te para abrires os olhos aos cegos, para tirares do cárcere os prisioneiros e da reclusão os que vivem nas trevas».

 

*Estabelecerei uma aliança com todos os povos.

   A segunda parte do livro de Isaías, ou Dêutero-Isaías (cc. 40-55) contém quatro poemas sobre o «Servo de Javé». A primeira leitura escolhida para este domingo é constituída pelo primeiro desses poemas (os outros estão em: 49,1-6; 50,4-11; e 52,13-53,12). Os estudiosos em geral concordam em afirmar que é impossível  identificar esta figura com alguém em particular. Seja como for, lida à luz do NT, não parece difícil poder concluir-se que se refira a Jesus Cristo. É sobretudo Jesus que é chamado a realizar a salvação que vem de Deus. Agora, o que há que realçar, nesta figura, é o facto de que, ao contrário do que sempre esperamos, Deus não «recorre» nunca à força e ao poder «militar» para exercer a justiça. Mesmo que comecemos por não entender, a eficácia da missão do verdadeiro «Servo de Deus» assenta na sua humildade e mansidão. E não são senão essas as características que nos são propostas no início da vida pública de Jesus. Ele não vem nem levantar a voz, nem quebrar a cana rachada, nem apagar a mecha que ainda fumega. Neste aspecto particular, talvez os seus sequazes - que somos todos nós - tenhamos que fazer um sério exame de consciência.

 

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2ª leitura (Act 10,34-38): Pedro tomou a palavra e disse: «Na verdade, agora compreendo que Deus não faz aceção de pessoas; quem o teme e pratica a justiça, seja qual for o povo a que pertença, é-lhe agradável. Vós estais ao corrente de que Ele enviou a sua palavra aos filhos de Israel, anunciando-lhes a Boa Nova da paz por meio de Jesus Cristo, que é o Senhor de todos. Sabeis o que ocorreu em toda a Judeia, a começar pela Galileia, depois do batismo que João pregou: como Deus ungiu com o Espírito Santo e com poder a Jesus de Nazaré, que andou, de lugar em lugar, fazendo o bem e curando todos os que estavam sob o domínio do Maligno, porque Deus estava com Ele».

 

* Andou de lugar em lugar fazendo o bem.

   Este discurso de Pedro faz parte das palavras que ele dirige aos circunstantes na casa do centurião Cornélio. Durante uma visão na localidade de Jope, Pedro chega à conclusão que não se pode considerar impuro o que Deus purificou. Confrontado com o facto de o «pagão Cornélio» ter tido, também ele, uma visão em que os seus pedidos são atendidos por Deus, Pedro não tem outra opção senão constatar a aceitação de Cornélio por parte de Deus. Este discurso de Pedro é como que ratificado pelo batismo administrado a Cornélio e aos seus familiares, bem como a muitos outros «pagãos» ali presentes. Curiosamente, é a seguir a este facto que os Actos dos Apóstolos começam a falar com insistência na necessidade de que a pessoa e a doutrina de Cristo se estendam também aos pagãos e que também sejam batizados. Da escolha desta leitura para a Festa do Batismo do Senhor sinto-me no direito de poder concluir que o batismo, de facto, não é exclusivo de nenhum povo em especial, mas se destina a todos os povos.

 

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Evangelho (Lc 3,15-16.21-22):  As expectativas das multidões eram cada vez maiores; e muitos começaram a pensar se João não seria o Messias. Então João disse-lhes: «Eu batizo-vos com água, mas está para chegar alguém que é muito maior do que eu; alguém a quem eu nem sequer sou digno de desatar as correias das sandálias. Esse batizar-vos-á com o Espírito Santo e no fogo. Depois de todos terem sido batizados, apresentou-se também Jesus para ser batizado. Enquanto estava em oração, os céus abriram-se e o Espírito Santo desceu sobre Ele em forma de pomba. E então ouviu-se uma voz do céu: «Tu és o meu amado Filho, em quem pus todo o meu enlevo».

* O Espírito Santo desceu sobre Ele.

   A única leitura que varia nos três ciclos litúrgicos, no que ao «Batismo do Senhor» diz respeito, é precisamente a leitura do Evangelho. Ora bem, no trecho de Lucas (deste ano, Ciclo C), podemos distinguir duas partes: a apresentação que o Batista faz de Jesus; e a narração propriamente dita do batismo. O episódio é descrito com palavras sérias e sem rodeios, eu diria mesmo secas (em particular na versão de S. Marcos). Esta «essencialidade» está como que a dizer que o batismo (o de Jesus e o nosso) não deve resumir-se a um mero acontecimento social (e muito menos acima de tudo), não pode ser só uma festa «pagã» ou um rito exterior, mas sim o início dum novo rumo, duma nova vida. Ora, infelizmente há que admiti-lo, nos nossos batismos, não é bem isso o que acontece; ou seja, ainda hoje, se calhar, dá-se mais importância à água (passe a expressão; e, já agora, também ao «copo-de-água») do que ao Espírito Santo. Seria um tema muito curioso - se não fosse quase trágico - saber por que motivo se pede o batismo quando quase não se liga nada a Cristo e não se sabe o que é o Espírito Santo.

 

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  *   Eis o meu Servo

     no qual pus a minha complacência.

  

 *  Deus consagrou no Espírito Santo  a Jesus de Nazaré.

 

*       Tu és o meu Filho muito amado.

ESTE É

O MEU FILHO MUITO AMADO.

 

 

  • Jesus investido da sua missão

    Enquanto João Batista, nas margens do Jordão, prega a conversão dos pecados e, como sinal externo dessa conversão, convidando as pessoas a sujeitarem-se a um rito de purificação, cheio de sentido e significado, desce à água, entre a multidão anónima, Jesus para se batizar. 

 

    O batismo era para os judeus sobretudo um rito penitencial, mas implicava o início duma nova fase de vida, na medida em que punha as bases para uma real conversão e mudança. Como sabemos, Jesus não precisava desse rito, porque não tinha de que se purificar. No entanto, tendo vindo ao mundo para fazer a vontade do Pai (a salvação dos homens), Ele assumiu plenamente tudo o que é humano. Por isso mesmo quis assumir todos os gestos dos humanos. E, assim, sujeitou-se a um rito que, além da mudança de vida individual, significava também uma mudança de vida comunitária, pois os batismos eram feitos em grandes grupos. É certo que, na vida de Jesus, também algo de novo acontece a partir do batismo - porque com batismo de Jesus tem início a sua vida pública e a pregação do Reino de Deus, Mas não me parece que esse seja o aspeto mais importante.

 

    Em todo o caso, há algo de novo que acontece. A partir do momento que Jesus se sujeita a este rito de carácter penitencial, há um elemento novo. A manifestação explícita do Pai e do Espírito Santo dão um significado novo e preciso a esse rito praticado por João Batista: Jesus é proclamado publicamente «Filho de Deus» e é investido oficialmente da missão de levar a salvação a todos. Missão que implica, desde já, a aceitação de todos os trabalhos e sobretudo do sacrifício e da morte que O esperavam. 

 

   Talvez até o próprio autor do trecho evangélico tenha querido dizer isso, pois, em grego, e tendo em consideração a opinião dos especialistas (e não tenho qualquer razão para duvidar disso), a expressão para dizer «Filho de Deus» é a mesma que é usada para dizer «Servo de Javé». Então implicitamente o evangelista, de alguma forma, está como que a fazer um convite aos seus leitores para «confrontar» todas as passagens do profeta Isaías que falam do «Servo de Javé» para saber as condições a que será sujeito o Filho de Deus.

 

  • Batismo na água e baptismo no Espírito

   Parece-me poder deduzir-se que, da forma como não só o evangelista deste ano, precisamente Lucas, mas também os outros descrevem este episódio, há a vontade expressa de ultrapassar o próprio episódio e a descrição em si mesmos, dizendo claramente que aquele rito nas águas do Jordão, de aí em diante, seria substituído, para sempre, pelo novo batismo do povo de Deus pela água do Espírito Santo. Mais que um cenário em que se supõem reais todos os pormenores, trata-se de uma página de catequese sobre o batismo administrado no Espírito Santo. 

 

    O gesto, anterior a Jesus, de se banhar nas águas do Rio Jordão, representava a travessia do Mar Vermelho, em direção à Terra Prometida, e a consequente libertação do estatuto de escravidão.  Mas convenhamos que agora a travessia é outra. Jesus, como Moisés antigamente, é o primeiro a «sair» da água. Assim também , na pessoa do primogénito chefe, o novo povo é libertado da escravidão do pecado, em direção ao país da libertação definitiva.

 

  • Após a conversão, o deserto

   Todavia, como é fácil compreender, após a travessia do Mar Vermelho, a liberdade, não estava ainda totalmente conquistada. De resto, para a solidificar, foram precisos ainda quarenta anos de sofrimento e perseguição no deserto. Ora bem, também a libertação que Jesus vem trazer, simbolizada pela imagem do Servo Sofredor (1ª leitura), tem que passar através do deserto do sofrimento. Jesus, que se submete a um ato público de penitência, fazendo-se passar por pecador, é, por assim dizer, a expressão do amor e da solidariedade do Pai, do Filho e do Espírito para com os homens na sua história concreta. 

 

   Através da aceitação por Jesus da nossa humanidade, somos feitos participantes da própria santidade de Deus; participação que é a possessão por excelência da Terra Prometida, ou seja, a possessão do seu Reino. Através do batismo, como que se desencadeia para quem o aceita esse processo de libertação que, por entre sofrimentos e penas, conduz à pátria definitiva, onde se completará a realização final do homem como ser especial com ânsias de infinito...

 

  • Batismo com água e sem Espírito? O Espírito é que dá vida

    Algo deve estar errado se os cristãos não sentem o ingresso na Igreja através do batismo como um momento decisivo nas suas vidas. Nascidos e vivendo na fé da Igreja, os cristãos têm que redescobrir a grandeza e as exigências da vocação batismal. E, já agora, o que é válido para o Batismo, é-o também, naturalmente, para os outros sacramentos. 

 

   Como consequência dessa situação de facto, por iniciativa particular ou mesmo por iniciativa a nível de Igreja, tem-se feito um esforço por dar nova vida aos sacramentos com uma renovação adequada dos seus ritos e pelo aprofundamento do seu conteúdo. O que sucede às vezes é que se chega até a acusar a Igreja de querer mudar a religião por, afinal, pretender tratar os sacramentos como deve ser, ou seja, com seriedade. No caso concreto do batismo, por exemplo, através da transformação que se opera realmente, o batizado torna-se oficial e efetivamente filho de Deus, irmão de Cristo e templo do Espírito Santo. Ora, isso, significa que se assume um compromisso sério e indeclinável de ser fiel às exigências e responsabilidades que um novo «status» impõe.

 

  • Batismo dos filhos: o eterno problema

   Foi, é e será sempre um problema fértil em debates, o batismo dos filhos, ou, em termos mais gerais, dos menores. Os argumentos aduzidos para combater a prática do batismo das crianças são aceites sem qualquer discussão por todos os que vêem nesse gesto um atentado contra a liberdade da pessoa.

 

   Todavia, na verdade, não posso não acrescentar - sem discussões, entenda-se - que se exige para o batismo o que não se exige nem se aceita em outros campos da vida humana, quase sempre aduzindo a razão de que o batismo deve ser deixado para uma idade em que se possa fazer uma opção «adulta», consciente e responsável. Não restam dúvidas de que, por um lado, isso representa uma redescoberta da seriedade do sacramento, mas, por outro, seria absurdo seguir esse critério em relação a outros factos da vida, como a alimentação e a escolaridade, por exemplo. 

 

   E o mais curioso é que, com frequência, sejam precisamente os que menos se interessam pelo aspeto  religioso da vida (dos seus filhos) os que mais protestam e armam escândalo se facto de algum pároco ou sacerdote recusa o batismo aos seus filhos, quando eles não estão em condições de lhes assegurar, por si ou por intermédio de outros, uma educação adequada. 

 

   As estatísticas e a experiência demonstram que um grande número de crianças batizadas vivem como se fossem pagãs. Os pais ou supostos educadores não se interessam - ou melhor, até se desinteressam, quando não se opõem - pela sua educação religiosa. Mas isso ainda não é o cúmulo. Que certos pais sejam levados a pedir e exigir o batismo para os seus filhos por motivos de conveniência social e «promocional», tradição familiar e inclusivamente por causas de natureza supersticiosa (e não por autênticos motivos de fé) isso, sim, raia os limites do paradoxal e da mercificação do sacramento.