Temas de fundo |
1ª leitura (Nm 6,22-27): O Senhor ordenou a Moisés que dissesse a Aarão e aos seus filhos para usar as seguintes palavras ao abençoarem o povo de Israel: «Que o Senhor te abençoe e te proteja. Que o Senhor seja benevolente e te favoreça. Que o Senhor olhe para ti com amor e te dê paz». E o Senhor disse: «Se eles invocarem o meu nome como uma bênção para o povo de Israel, Eu abençoá-los-ei».
* O Senhor te abençoe e te guarde.
Há na Bíblia várias fórmulas de bênçãos, mas esta é talvez a mais conhecida e oficial de todas, até porque foi «ditada», digamos assim, por Deus por meio de Moisés, para o poovo ser abençoado. Parece tratar-se de uma bênção que era usada depois do sacrifício que era oferecido ao Senhor, a qual data dos tempos de Moisés e que vigorou também mais tarde no Templo de Jerusalém. Seja como for, para o caso, não é essa a informação mais importante. Em minha opinião, estas são invocações que ficam sempre bem, sobretudo ao início dum novo ano. , Numa ótica que é a cristã, invocar sobre nós a bênção do Senhor é pedir que venha a nós a salvação de Deus e isso, para quem acredita, é um facto de suma importância. E assim, a salvação de Deus - que começa já nesta terra - passa por se concretizar na sua protecção, nos seus favores e na sua paz, o que se traduz na abundância da felicidade. Tudo isso está contido na expressão «shalom».
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2ª leitura (Gl 4,4-7): Quando, finalmente, chegou o tempo predestinado, Deus mandou o seu Filho unigénito. Ele nasceu duma mãe humana e viveu sob o jugo da lei judaica, para remir os que estavam sujeitos à Lei, de maneira a tornar-nos filhos de Deus. E, para demonstrar que somos seus filhos, Deus mandou o Espírito do seu Filho aos nossos corações. É esse Espírito que clama dentro de nós: «Abba, Pai!». Sendo assim, já não sois escravos, mas filhos. E, uma vez que sois seus filhos, então Deus dar-vos-á tudo o que tem a dar aos seus filhos.
* Não somos escravos, mas filhos de Deus.
Numa ótica viviencial, nem sempre nos damos bem conta que nós hoje estamos inseridos numa realidade a que, em termos teológicos, se dá o nome técnico de «plenitude dos tempos». Isso quer dizer que não temos que esperar por outros tempos, pois os nossos já são os «ultimos», ou definitivos e já temos entre nós - Deus-connosco - Aquele que devia vir. Com o envio do Filho, o qual assume a natureza humana, somos como que o alvo ou ponto mais alto da revelação de Deus à humanidade. A finalidade da vinda do Filho do Homem é, por um lado, resgatar-nos do domínio da Lei e, por outro, dar-nos a possibilidade de ser adoptados por Deus como filhos, como nos diz João no Prólogo do seu Evangelho (cf. Jo 1,12). Ou então, como nos diz a segunda leitura, é essa a grande notícia: somos filhos e não escravos. Nesse sentido, devemos alimentar para com Deus sentimentos não de terror, mas de afecto e agradecimento; de amor. Por vezes, até parece que temos medo da palavra «afeto» e «amor» em relação a Deus. Neste aspecto, nem sempre descobrimos o alcance que é ser, pelos méritos de Jesus recém-nascido, filhos de Deus. Neste primeiro dia do ano, é então muito reconfortante relembrar que realmente somos filhos de Deus e que, além disso, por vontade dele, somos também herdeiros da sua felicidade.
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Evangelho (Lc 2,16-21): Os pastores partiram à pressa e encontraram, juntamente com Maria e José, o Menino deitado numa manjedoura. Depois de os verem, os pastores espalharam tudo o que o anjo lhes tinha dito acerca do Menino. E todos os que ouviam ficavam admirados com o que os pastores contavam. Maria, por seu lado, guardava todas estas coisas e meditava-as no seu coração. Os pastores saíram dali cantando e dando louvores a Deus por tudo o que tinham visto e ouvido. Tudo tinha acontecido como o anjo lhes tinha dito. Uma semana depois, quando chegou a altura de o Menino ser circuncidado, foi-lhe dado o nome de Jesus, o mesmo nome que o anjo tinha indicado antes de ser concebido.
* Maria meditava tudo no seu coração.
Esta leitura é praticamente a repetição do texto evangélico escolhido para o Dia de Natal (missa da aurora). Ou, melhor dizendo, é a continuação desse trecho, em que aparecem novamente os pastores ao pé do Menino. Uma proposta assim afigura-se como capaz de apresentar a imagem do presépio como modelo para pautar o ritmo do ano inteiro. Ou seja, não estará subjacente a esta escolha a intenção do autor Lucas de tomar os protagonistas - Maria, José e o Menino - como ponto de referência para a construção dum novo ano vivido na harmonia e na paz? Parece-me que sim, se bem que isso (naturalmente) não esteja contido nesses termos no texto propriamente dito. Seja como for, a ideia com que se fica é a de que os pastores (que nos representam a todos), perante a cena que se lhes depara, são felizes na pura contemplação e irrompem em cantos de glória e louvor a Deus. Contentam-se com saber que, afinal, Deus não se esqueceu do seu povo e não se esqueceu dos mais pequenos e por isso estão felizes.
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* Eles invocarão o meu nome e eu os bendirei.
* Deus mandou o seu Filho nascido de mulher.
* Os pastores encontraram Maria, Josée o Menino. |
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MARIA GUARDAVA TUDO NO SEU CO RA ÇÃO. |
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O mistério do tempo
É uma convenção humana praticamente universal que no dia 1 de Janeiro se celebre o início dum novo ano. Como é costume também generalizado, na passagem do «ano velho» par o «ano novo», fazerem-se propósitos e votos de uma nova etapa na vida, na história individual e colectiva. Se se der então o caso de se não tratar apenas de início dum novo ano, o «encanto» subjacente na mente das pessoas de se tratar dos primeiros anos dum novo milénio, então os propósitos porventura são ainda mais solenes e sérios. Infelizmente, seja-me permitido dizê-lo, também isso não passa, com frequência, de mais uma convenção, porque me dá a impressão que continua tudo na mesma, porque, na maior parte dos casos, as pessoas continuam a limitar-se às exterioriedades e ao superficial.
De qualquer forma, mais convenção ou menos convenção, parece-me que este dia pode ser acolhido como um convite para reflectir sobre o mistério do tempo. O que é o tempo? Será a simples «passagem» da realidade, marcada pelo movimento dos astros, a alternância de dias e noites? Certamente que também é isso, mas é algo mais. O tempo é uma história. Uma história iniciada com a criação do mundo e dividida em etapas, em acontecimentos fundamentais: a criação do homem, o seu pecado, a promessa da redenção, o início da história do povo eleito (com a chamada de Abraão). Enfim, uma história assinalada por várias intervenções de Deus através dos tempos dos homens.
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A «plenitude dos tempos»
Esta história, este tempo, tem uma sua plenitude (no sentido de cumprimento da preparação e das profecias). De resto, é Paulo que o diz claramente: «Ao chegar a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher, nascido segundo as leis da natureza... para recebermos a adopção de filhos» (cf. Gl 4,4-5). A intervenção de Deus que assinala esta plenitude dos tempos é, pois, a Encarnação do Verbo, o Natal.
Eis, portanto, na óptica cristã, uma primeira relação significativa: o primeiro dia do ano está ligado ao acontecimento central da história dos homens, que é o ingresso de Deus na história humana. A história humana toma um novo sentido e consistência com o Natal. Uma nova etapa da história que esteja desligada de Jesus é um «não sentido»... É Jesus que dá significado e valor à história. Nessa perspectiva, é o Natal de Jesus que faz com que o início de cada ano seja verdadeiramente um início cheio de esperança: porque Deus desceu até nós, caminha connosco, é Emanuel, ou seja, Deus-connosco.
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Maria, Mãe de Deus
Mas, para além da relação existente entre o primeiro dia do ano e o nascimento de Jesus, que dá sentido e valor ao tempo, há uma outra relação: junto de Jesus, aparece também a figura duma Mulher; uma mulher que já tinha sido profetizada ao início da história humana, quando Deus tinha dito à serpente: «Farei reinar a inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a descendência dela» (Gn 3,15). E por isso a esse texto do primeiro livro da Bíblia também se dá o nome de «Proto-evangelho», pois se trata da primeira boa notícia após a queda do homem. É dessa mulher que nasce o Messias, o Salvador. É Maria que nos dá Jesus. É Maria que como que permite que Deus intervenha na história, que permite que Deus nasça no tempo e num dado lugar que nós sabemos ser Belém.
Nós sabemos que Deus Pai, na eternidade, gera um Filho em tudo igual a Ele: «Nascido do Pai antes de todos os séculos, gerado, mas não criado, da mesma substância do Pai» (cf. «Credo» da Missa). Mas, fazendo-se homem, nasce também no tempo. Com as limitações próprias da nossa linguagem, poder-se-á dizer que Ele que tem dois nascimentos: um, como Deus, na eternidade; outro, como homem, no tempo... Um do Pai (embora se trata de terminologia imprópria); outro da Mãe, que é, portanto, verdadeiramente a Mãe de Deus, porque fez com que Deus nascesse no tempo como homem.
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Mãe de Deus e mãe dos homens
O texto evangélico deste dia diz-nos que, quando se cumpriu o tempo determinado, como tinha sido anunciado pelo anjo, o Menino recebeu o nome de Jesus, que, como se sabe, em temos de etimologia, significa «Deus salva». Somos, assim, introduzidos em pleno no mistério de Jesus Cristo, o Messias enviado como Salvador.
Desde a Encarnação até à Morte e Ressurreição, Jesus é o dom perfeito do Pai, é a salvação para todos os homens. Que o nome de Jesus é portador de salvação, dizem-no-lo tanto Pedro como Paulo (cf. Act 2,21; Rm 10,13). Ora, essa oferta de salvação, como sabemos, veio-nos por intermédio de Maria, que acolheu e preparou a vinda e a vida ao Filho de Deus. Nesse sentido, ela continua a fazer com que os homens participem da vida divina. Pelo que se pode dizer que também ela é a mãe de todos os viventes, ou seja, a mãe de todos os homens.
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Tempo para pensar a paz
Há ainda mais uma relação com o dia 1 de Janeiro. É em nome de Maria, Mãe de Deus e Mãe da Igreja, que se celebra em todo o mundo o Dia Mundial da Paz, por vontade do papa Paulo VI, a partir de 1968. Mas aquela paz que Maria, uma de nós, encontrou no infinito abraço do amor de Deus; aquela paz que Jesus veio trazer aos homens que acreditam no amor.
A paz, em sentido bíblico, é o dom messiânico por excelência. É a própria salvação trazida pelo Messias. É a nossa reconciliação com Deus e, consequentemente, com os irmãos, ou seja, com todos os filhos de Deus. A paz é, sem dúvida, um valor humano a realizar em campo social e político, mas assenta as suas raízes no próprio Deus.
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O que interessa é a paz total
Passaram já 20 séculos sobre o anúncio evangélico aos pastores: «Paz aos homens que Deus ama». Apesar de tudo, e infelizmente, a História não nos deixar esquecer ainda, com algum receio e trepidação, os horrores das últimas duas Grandes Guerras, sobretudo a última, com as consequências devastadoras da bomba atómica. Revive-se, com repúdio, o Holocausto dos judeus, perpetrado pelo nazismo (embora continue a haver tentativas políticas de o negar), projecta-se na imaginação a fornalha de Hiroshima, impunha-se a bandeira da Declaração dos Direitos Humanos de 1948 e continua-se a comentar a publicação da Pacem in Terris de João XXIII no ano de 1963.
Por outro lado, as lutas armadas praticamente em toda a face da terra e a triste realidade de dois povos irmãos – palestinos e judeus – em guerra contínua, a situação sempre periclitante no Médio Oriente, o terror espalhado continuamente pelo ódio e pelo terrorismo, são como a espada de Dâmocles a pender sobre a cabeça das pessoas e da humanidade. O equilíbrio do terror em que jogam as chamadas potências nucleares, acolitadas pelos respectivos «satélites», são um pesadelo que nunca deixa amanhecer o dia da paz e da harmonia...
O que é, pois, a paz? Tem ainda sentido o augúrio dos anjos aos pastores? Tem, porque a paz não pode ser o efeito do equilíbrio dos mísseis. A convicção dos políticos e do homem comum (digamo-lo sem reservas) é que a paz depende do equilíbrio de forças entre as potências. Não o deveria ser a convicção dos cristãos, porque isso não está de acordo com o Evangelho. Para o cristão, a pergunta fundamental, neste caso, é apenas uma: quem tem razão: os políticos ou o Evangelho? A paz que não nascer do coração da pessoa humana e do coração dos povos nunca será verdadeiramente paz.
MENSAGEM DO SANTO PADRE
FRANCISCO
PARA A CELEBRAÇÃO DO
DIA MUNDIAL DA PAZ
1º DE JANEIRO DE 2019
«A BOA POLÍTICA
ESTÁ AO SERVIÇO DA PAZ»
1. «A paz esteja nesta casa!»
Jesus, ao enviar em missão os seus discípulos, disse-lhes: «Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: “A paz esteja nesta casa!” E, se lá houver um homem de paz, sobre ele repousará a vossa paz; se não, voltará para vós» (Lc 10, 5-6).
Oferecer a paz está no coração da missão dos discípulos de Cristo. E esta oferta é feita a todos os homens e mulheres que, no meio dos dramas e violências da história humana, esperam na paz.[1] A «casa», de que fala Jesus, é cada família, cada comunidade, cada país, cada continente, na sua singularidade e história; antes de mais nada, é cada pessoa, sem distinção nem discriminação alguma. E é também a nossa «casa comum»: o planeta onde Deus nos colocou a morar e do qual somos chamados a cuidar com solicitude.
Eis, pois, os meus votos no início do novo ano: «A paz esteja nesta casa!»
2. O desafio da boa política
A paz parece-se com a esperança de que fala o poeta Carlos Péguy;[2] é como uma flor frágil, que procura desabrochar por entre as pedras da violência. Como sabemos, a busca do poder a todo o custo leva a abusos e injustiças. A política é um meio fundamental para construir a cidadania e as obras do homem, mas, quando aqueles que a exercem não a vivem como serviço à coletividade humana, pode tornar-se instrumento de opressão, marginalização e até destruição.
«Se alguém quiser ser o primeiro – diz Jesus – há de ser o último de todos e o servo de todos» (Mc 9, 35). Como assinalava o Papa São Paulo VI, «tomar a sério a política, nos seus diversos níveis – local, regional, nacional e mundial – é afirmar o dever do homem, de todos os homens, de reconhecerem a realidade concreta e o valor da liberdade de escolha que lhes é proporcionada, para procurarem realizar juntos o bem da cidade, da nação e da humanidade».[3]
Com efeito, a função e a responsabilidade política constituem um desafio permanente para todos aqueles que recebem o mandato de servir o seu país, proteger as pessoas que habitam nele e trabalhar para criar as condições dum futuro digno e justo. Se for implementada no respeito fundamental pela vida, a liberdade e a dignidade das pessoas, a política pode tornar-se verdadeiramente uma forma eminente de caridade.
3. Caridade e virtudes humanas para uma política ao serviço dos direitos humanos e da paz
O Papa Bento XVI recordava que «todo o cristão é chamado a esta caridade, conforme a sua vocação e segundo as possibilidades que tem de incidência na pólis. (…) Quando o empenho pelo bem comum é animado pela caridade, tem uma valência superior à do empenho simplesmente secular e político. (…) A ação do homem sobre a terra, quando é inspirada e sustentada pela caridade, contribui para a edificação daquela cidade universal de Deus que é a meta para onde caminha a história da família humana».[4] Trata-se de um programa no qual se podem reconhecer todos os políticos, de qualquer afiliação cultural ou religiosa, que desejam trabalhar juntos para o bem da família humana, praticando as virtudes humanas que subjazem a uma boa ação política: a justiça, a equidade, o respeito mútuo, a sinceridade, a honestidade, a fidelidade.
A propósito, vale a pena recordar as «bem-aventuranças do político», propostas por uma testemunha fiel do Evangelho, o Cardeal vietnamita Francisco Xavier Nguyen Van Thuan, falecido em 2002:
Bem-aventurado o político que tem uma alta noção e uma profunda consciência do seu papel.
Bem-aventurado o político de cuja pessoa irradia a credibilidade.
Bem-aventurado o político que trabalha para o bem comum e não para os próprios interesses.
Bem-aventurado o político que permanece fielmente coerente.
Bem-aventurado o político que realiza a unidade.
Bem-aventurado o político que está comprometido na realização duma mudança radical.
Bem-aventurado o político que sabe escutar.
Bem-aventurado o político que não tem medo.[5]
Cada renovação nos cargos eletivos, cada período eleitoral, cada etapa da vida pública constitui uma oportunidade para voltar à fonte e às referências que inspiram a justiça e o direito. Duma coisa temos a certeza: a boa política está ao serviço da paz; respeita e promove os direitos humanos fundamentais, que são igualmente deveres recíprocos, para que se teça um vínculo de confiança e gratidão entre as gerações do presente e as futuras.
4. Os vícios da política
A par das virtudes, não faltam infelizmente os vícios, mesmo na política, devidos quer à inépcia pessoal quer às distorções no meio ambiente e nas instituições. Para todos, está claro que os vícios da vida política tiram credibilidade aos sistemas dentro dos quais ela se realiza, bem como à autoridade, às decisões e à ação das pessoas que se lhe dedicam. Estes vícios, que enfraquecem o ideal duma vida democrática autêntica, são a vergonha da vida pública e colocam em perigo a paz social: a corrupção – nas suas múltiplas formas de apropriação indevida dos bens públicos ou de instrumentalização das pessoas –, a negação do direito, a falta de respeito pelas regras comunitárias, o enriquecimento ilegal, a justificação do poder pela força ou com o pretexto arbitrário da «razão de Estado», a tendência a perpetuar-se no poder, a xenofobia e o racismo, a recusa a cuidar da Terra, a exploração ilimitada dos recursos naturais em razão do lucro imediato, o desprezo daqueles que foram forçados ao exílio.
5. A boa política promove a participação dos jovens e a confiança no outro
Quando o exercício do poder político visa apenas salvaguardar os interesses de certos indivíduos privilegiados, o futuro fica comprometido e os jovens podem ser tentados pela desconfiança, por se verem condenados a permanecer à margem da sociedade, sem possibilidades de participar num projeto para o futuro. Pelo contrário, quando a política se traduz, concretamente, no encorajamento dos talentos juvenis e das vocações que requerem a sua realização, a paz propaga-se nas consciências e nos rostos. Torna-se uma confiança dinâmica, que significa «fio-me de ti e creio contigo» na possibilidade de trabalharmos juntos pelo bem comum. Por isso, a política é a favor da paz, se se expressa no reconhecimento dos carismas e capacidades de cada pessoa. «Que há de mais belo que uma mão estendida? Esta foi querida por Deus para dar e receber. Deus não a quis para matar (cf. Gn 4, 1-16) ou fazer sofrer, mas para cuidar e ajudar a viver. Juntamente com o coração e a inteligência, pode, também a mão, tornar-se um instrumento de diálogo».[6]
Cada um pode contribuir com a própria pedra para a construção da casa comum. A vida política autêntica, que se funda no direito e num diálogo leal entre os sujeitos, renova-se com a convicção de que cada mulher, cada homem e cada geração encerram em si uma promessa que pode irradiar novas energias relacionais, intelectuais, culturais e espirituais. Uma tal confiança nunca é fácil de viver, porque as relações humanas são complexas. Nestes tempos, em particular, vivemos num clima de desconfiança que está enraizada no medo do outro ou do forasteiro, na ansiedade pela perda das próprias vantagens, e manifesta-se também, infelizmente, a nível político mediante atitudes de fechamento ou nacionalismos que colocam em questão aquela fraternidade de que o nosso mundo globalizado tanto precisa. Hoje, mais do que nunca, as nossas sociedades necessitam de «artesãos da paz» que possam ser autênticos mensageiros e testemunhas de Deus Pai, que quer o bem e a felicidade da família humana.
6. Não à guerra nem à estratégia do medo
Cem anos depois do fim da I Guerra Mundial, ao recordarmos os jovens mortos durante aqueles combates e as populações civis dilaceradas, experimentamos – hoje, ainda mais que ontem – a terrível lição das guerras fratricidas, isto é, que a paz não pode jamais reduzir-se ao mero equilíbrio das forças e do medo. Manter o outro sob ameaça significa reduzi-lo ao estado de objeto e negar a sua dignidade. Por esta razão, reiteramos que a escalada em termos de intimidação, bem como a proliferação descontrolada das armas são contrárias à moral e à busca duma verdadeira concórdia. O terror exercido sobre as pessoas mais vulneráveis contribui para o exílio de populações inteiras à procura duma terra de paz. Não são sustentáveis os discursos políticos que tendem a acusar os migrantes de todos os males e a privar os pobres da esperança. Ao contrário, deve-se reafirmar que a paz se baseia no respeito por toda a pessoa, independentemente da sua história, no respeito pelo direito e o bem comum, pela criação que nos foi confiada e pela riqueza moral transmitida pelas gerações passadas.
O nosso pensamento detém-se, ainda e de modo particular, nas crianças que vivem nas zonas atuais de conflito e em todos aqueles que se esforçam por que a sua vida e os seus direitos sejam protegidos. No mundo, uma em cada seis crianças sofre com a violência da guerra ou pelas suas consequências, quando não é requisitada para se tornar, ela própria, soldado ou refém dos grupos armados. O testemunho daqueles que trabalham para defender a dignidade e o respeito das crianças é extremamente precioso para o futuro da humanidade.
7. Um grande projeto de paz
Celebra-se, nestes dias, o septuagésimo aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada após a II Guerra Mundial. A este respeito, recordemos a observação do Papa São João XXIII: «Quando numa pessoa surge a consciência dos próprios direitos, nela nascerá forçosamente a consciência do dever: no titular de direitos, o dever de reclamar esses direitos, como expressão da sua dignidade; nos demais, o dever de reconhecer e respeitar tais direitos».[7]
Com efeito, a paz é fruto dum grande projeto político, que se baseia na responsabilidade mútua e na interdependência dos seres humanos. Mas é também um desafio que requer ser abraçado dia após dia. A paz é uma conversão do coração e da alma, sendo fácil reconhecer três dimensões indissociáveis desta paz interior e comunitária:
- a paz consigo mesmo, rejeitando a intransigência, a ira e a impaciência e – como aconselhava São Francisco de Sales – cultivando «um pouco de doçura para consigo mesmo», a fim de oferecer «um pouco de doçura aos outros»;
- a paz com o outro: o familiar, o amigo, o estrangeiro, o pobre, o atribulado..., tendo a ousadia do encontro, para ouvir a mensagem que traz consigo;
- a paz com a criação, descobrindo a grandeza do dom de Deus e a parte de responsabilidade que compete a cada um de nós, como habitante deste mundo, cidadão e ator do futuro.
A política da paz, que conhece bem as fragilidades humanas e delas se ocupa, pode sempre inspirar-se ao espírito do Magnificat que Maria, Mãe de Cristo Salvador e Rainha da Paz, canta em nome de todos os homens: A «misericórdia [do Todo-Poderoso] estende-se de geração em geração sobre aqueles que O temem. Manifestou o poder do seu braço e dispersou os soberbos. Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes (...), lembrado da sua misericórdia, como tinha prometido a nossos pais, a Abraão e à sua descendência, para sempre» (Lc 1, 50-55).
Vaticano, 8 de dezembro de 2018.
Franciscus
[1] Cf. Lc 2, 14: «Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens do seu agrado».
[2] Cf. Le Porche du mystère de la deuxième vertu (Paris 1986).
[3] Carta ap. Octogesima adveniens (14/V/1971), 46.
[4] Carta enc. Caritas in veritate (29/V/2009), 7.
[5] Cf. «Discurso na Exposição-Encontro “Civitas” de Pádua»: Revista 30giorni (2002-nº 5).
[6] Bento XVI, Discurso às Autoridades do Benim (Cotonou, 19/XI/2011).
[7] Carta enc. Pacem in terris (11/IV/1963), 24 (44).