SOLENIDADE DE STA. MARIA
( PRIMEIRO DIA DO ANO )
Temas de fundo |
1ª leitura (Nm 6,22-27): O Senhor mandou Moisés comunicar a Aarão e aos seus filhos que usassem as seguintes palavras para abençoar o povo de Israel: «O Senhor te abençoe e te guarde! O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e te favoreça! O Senhor volte para ti a sua face e te dê a paz!». E o Senhor disse: «Se invocarem assim o meu nome sobre os filhos de Israel, Eu abençoá-los-ei!».
* O Senhor te abençoe e te guarde. Segundo os entendidos na matéria, parece tratar-se de uma fórmula ritual de bênção usada depois da oferta do sacrifício ao Senhor. Mais, ela pode datar-se dos tempos de Moisés e vigoraria também mais tarde no Templo de Jerusalém. Seja como for, no nosso caso, não me parece seja isso o mais importante. Em minha opinião, independentemente do tempo e do contexto em que apareceram, estas invocações ficam sempre bem, sobretudo ao início dum novo ano. Invocar sobre nós a bênção do Senhor é pedir que venha a nós a salvação de Deus. E isso, para quem acredita, é um facto de importância capital. A salvação de Deus - já nesta terra - concretiza-se na Sua proteção, nos Seus favores e na Sua paz, o que se traduz e concretiza na abundância da felicidade.
PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.
2ª leitura (Gl 4,4-7): Quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou o seu Filho, que nasceu de mulher e viveu sob o domínio da Lei, para resgatar aqueles que se encontravam sob o domínio da Lei, a fim de receberem a adopção de filhos. E a prova de que sois filhos é que Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: «Abba!–Pai!». Por isso, já não és escravo, mas filho. E, se és filho, és também herdeiro, por vontade de Deus.
* Não somos escravos, mas filhos de Deus. Confesso que nem sempre nos damos conta, de maneira vivencial, que nós hoje estamos inseridos numa realidade a que, em termos teológicos, se dá o nome de «plenitude dos tempos», que, numa outra expressão, são também os «últimos tempos». Com o envio do Filho, que assume a natureza humana, alcança-se o ponto mais alto da revelação de Deus à humanidade. Ele próprio, a partir desse momento, começa a fazer parte da nossa família, para que reaprendamos que fomos feitos à sua imagem e semelhança. Certo, a finalidade da vinda do Filho do Homem é, por um lado, resgatar-nos do domínio da Lei, mas, por outro, é sermos adoptados por Deus como filhos. Também neste aspeto, nem sempre descobrimos o alcance do que é ser, pelos méritos de Jesus Cristo, filho de Deus. No primeiro dia do ano, é reconfortante relembrar que realmente somos filhos de Deus e que, além disso, por vontade dele, somos também herdeiros da Sua vida e felicidade.
PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.
Evangelho (Lc 2,16-21): (Os pastores) partiram sem perda de tempo e encontraram Maria e José e viram o Menino deitado na manjedoura. Depois de o terem visto, começaram a espalhar o que lhes tinha sido dito a respeito daquele Menino. Todos os que os ouviam se admiravam do que diziam os pastores. Quanto a Maria, conservava todas estas coisas, meditando-as no seu coração. E os pastores voltaram glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham visto e ouvido: era tudo conforme lhes tinha sido anunciado.
* Maria meditava tudo no seu coração. Este é praticamente a repetição do texto evangélico escolhido para o Dia de Natal (missa da aurora). Uma proposta assim afigura-se-me como o desejo de apresentar a imagem do presépio como modelo para pautar o ritmo do ano inteiro. Neste sentido, estará subjacente a esta escolha a intenção de tomar os protagonistas - Maria, José e o Menino - como ponto de referência na construção dum novo ano vivido na harmonia e na paz. Parece-me que sim, embora isso, como é natural, não esteja contido no texto. Seja como for, a ideia com que se fica é a de que os pastores (que nos representam a todos), perante a cena do «presépio» que se lhes depara, são felizes e irrompem em cantos de glória e louvor a Deus.
PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. |
* * Eles invocarão o meu nome e Eu os bendirei.
* Deus mandou o seu Filho nascido de mulher.
* Os pastores encontraram Maria, José e o Menino. |
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QUE O SENHOR TE ABENÇOE E TE DÊ A PAZ! |
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Maria dá Jesus ao mundo
A solenidade deste dia dá-nos a oportunidade para tecer considerações que tenham em conta, além da maternidade de Maria, o início do novo ano, que, por sinal, é também o Dia Mundial da Paz. Mas, falar de tantas coisas ao mesmo tempo não é nada fácil.
A propósito do tema da paz, o texto da 1ª leitura é extremamente elucidativo. Mas, em termos de celebração litúrgica, no centro do acontecimento, está certamente a solenidade de «Maria, Mãe de Deus»; embora, para dizer a verdade, o acento da 2a leitura e do Evangelho seja, em primeiro lugar, sobre o «Filho de Maria» e sobre o «nome do Senhor», mais que propriamente sobre Maria. Claro que quem enaltece o Filho, enaltece também a Mãe, mas é um facto que, neste caso, quem está em primeiro lugar é o Filho. Seja como for, o que me parece é que não se deve esquecer que o mistério do Redentor pode ser contemplado hoje graças ao sim e ao papel da Mãe do Redentor.
Sublinho, mais uma vez, que deve ser um dado de facto (e espero sinceramente que esta afirmação não escandalize ninguém) que Maria tem um papel subordinado e «secundário» em relação a Jesus. Mas também é um facto que foi através dela que Deus se fez homem, se fez um de nós, se fez membro da nossa raça e da família humana. Por isso, a atenção que a própria liturgia da palavra dedica ao «Filho» não reduz o papel de Maria, antes pelo contrário; por outro lado, nem a importância que é dedicada à Mãe deve tirar nada ao Filho. A Virgem Maria é totalmente Mãe porque esteve em relação total com Jesus, seu filho. Nesse sentido, a honra que seja atribuída à Mãe redunda também em glorificação do Filho.
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A origem das polémicas
O título «Mãe de Deus» foi sempre, e continua a ser, objeto de polémica, porque há sempre alguém que, talvez julgando-se mais inteligente e iluminado que todos os outros, parecendo ter descoberto a pólvora (após séculos de obscurantismo), protesta contra uma prerrogativa que reputa exagerada e ao mesmo tempo um erro teológico: como é que se compreende que Deus, que é incriado, pode ter mãe? E, de facto, quem não tenha ideias claras acerca do assunto pode ser levado a ter sérias dúvidas, podendo mesmo chegar a comparar o cristianismo com qualquer outra religião primitiva eivada de realidades míticas. Isso quer dizer que poderá levar os mais incautos a supor que se defende a existência duma espécie de Olimpo onde, para além de Deus, há também pelo menos uma deusa; precisamente Maria, «Mãe de Deus».
Ora bem, antes de mais, faça-se ao menos a justiça de não passar a certidão de estupidez e de ignorância a tanta gente ilustre que acreditou e defendeu a maternidade de Maria durante tantos séculos. O título «Mãe de Deus», mais que uma afirmação de carácter ontológico (seja-me perdoado o adjetivo técnico), é uma constatação de carácter «histórico». E é nessa base que o título se justifica. É quase tautológico, por ser evidente demais, afirmar que Deus, sendo quem é (não criado, sem princípio nem fim) não pode ser filho de ninguém. Mas, numa óptica de fé, é também incontestável que a Deus nada é impossível; e nem sequer Lhe é impossível fazer-se como um de nós, um homem (que é isso mesmo em que consiste a realidade do Natal).
Então, quanto ao facto de Deus como tal não poder ser filho de ninguém, estamos todos de acordo. Mas, no contexto da doutrina cristã, o título «Mãe de Deus» é talvez o que melhor exprime o papel e a missão de Maria na história concreta da salvação, atendendo ao acontecimento real da Incarnação, que não parece merecer contestação por parte de ninguém que verdadeiramente se queira dizer cristão. Além do mais, também estamos de acordo que a salvação, no seu sentido pleno, é uma prerrogativa exclusiva de Deus. Só Deus pode salvar. Mas a maneira de Ele realizar a salvação depende também só dele. Ora bem, como se pode deduzir das considerações tecidas por ocasião do domingo de Natal, Deus decide fazer-se um de nós em Jesus. Mas, fazendo-se um de nós em Jesus, nem por isso deixa de ser quem é.
Segundo a sua etimologia, o nome de Jesus, o Verbo de Deus humanado (e isso é manifesto logo nas primeiras páginas do NT; cf., por exemplo, o 1º capítulo de S. Lucas) é «aquele que salva». É precisamente isso mesmo: o próprio nome «Jesus» está a indicar que Ele, como Deus, é salvador. Essa constatação está a demonstrar, sem margem para dúvidas, que Ele é «equiparado» a Deus pelos Evangelhos. Ora bem, por decisão do próprio Deus, Maria é precisamente a mãe deste Jesus, que é verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. É esse o motivo por que, ao afirmarmos que Maria é mãe de Jesus, estamos a dizer, implicitamente, que ela é «Mãe de Deus» (obviamente de «Deus humanado»).
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Mãe de Deus, Mãe dos homens
O texto evangélico diz-nos que, quando chegou o tempo determinado por Deus, como tinha sido anunciado pelo anjo, o Menino recebeu o nome de «Jesus», que, como disse no parágrafo anterior, etimologicamente, significa «Deus salva». Somos assim introduzidos no mistério de Cristo. Desde a incarnação até à morte e ressurreição, Jesus é o dom perfeito do Pai, é a salvação para todos os homens. Que o nome de Jesus é portador de salvação, dizem-no-lo também Pedro e Paulo (cf. Act 2,21; Rm 10,13). Ora, essa oferta de salvação, como sabemos, veio-nos através de Maria, que aceitou a proposta feita pelo anjo de ser a mãe do Filho de Deus. Foi precisamente por intermédio dela que teve início a aventura da vida humana de Jesus.
E Maria não recebeu o dom de Deus só para si, mas para o levar ao mundo; e mais: não o distribui só uma vez, mas até ao fim dos tempos. Nessa perspectiva, ela continua a fazer com que os homens participem da vida divina. Por conseguinte, pode-se dizer que também ela, embora duma forma diferente de Eva, é a Mãe de todos os viventes, ou seja, a mãe de todos os homens que querem viver segundo o projecto de Deus. Em boa hora, foi, portanto, Maria proclamada também Mãe da Igreja. Ao comemorar esse facto no primeiro dia do ano, está-se a indicar que todo o ano é colocado sob a protecção daquela que, de alguma maneira, participa da omnipotência divina salvadora.
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A Rainha da Paz
É igualmente sob a égide de «Maria, Mãe de Deus e Mãe da Igreja» que se celebra, em todo o mundo católico, o Dia Mundial da Paz. Trata-se daquela paz que, Maria, uma de nós, encontrou no infinito abraço do amor de Deus; da paz que Cristo veio trazer aos homens que acreditam no amor. A paz, de que a Igreja fala neste primeiro dia do ano, não é apenas a paz de que falam todos os que a proclamam indispensável para que a humanidade possa prosseguir o seu rumo, mesmo quando programam e fazem ou provocam a guerra. A paz de que a Igreja fala e proclama não é sinónimo de equilíbrio de forças bélicas antagónicas nem mesmo se pode reduzir a uma coexistência pacífica baseada no temor recíproco. Em sentido especificamente bíblico, a paz é o dom messiânico por excelência, ou seja, é a própria salvação trazida por Jesus, é a nossa reconciliação com Deus e, consequentemente, com os irmãos.
A paz é, sem sombra de dúvidas, um valor humano a realizar no campo social e político, mas afunda as suas raízes no próprio Deus. Jesus insere-se de tal maneira no tecido da história humana que, segundo o NT, Ele quis estar sujeito a tudo como nós, exceto no pecado (cf. Hb 4,15). Ele «irrompe» na história como um homem qualquer. A seu convite, doravante, todos podem chamar a Deus com o nome de «Pai». Ora, se todos somos filhos do mesmo Pai, então somos irmãos. E quem se considera «realmente irmão» não pode deixar de lutar contra todo o tipo de divisão e discriminação. A consequência natural dessa atitude de fundo é a paz que deve caracterizar o relacionamento entre irmãos. É também esta harmonia entre irmãos que está nas preocupações da nossa mãe celeste, a Virgem Maria, que nos quer realmente irmãos em Cristo Jesus.
No vórtice da I Grande Guerra, foi Bento XIV que deu faculdade aos bispos de acrescentar à Ladainha Mariana a invocação «Rainha da Paz, rogai por nós». Este dom da paz, que todos invocam a torto e a direito, mas que poucos conseguem encontrar, Maria ensinou-o com uma palavra muito simples: fiat (faça-se em mim: a vontade de Deus). Mas essa disposição não se reduz a uma atitude passiva. A paz não é só um dom. É um dom que é necessário pôr a render, que é necessário pôr em prática, que é necessário merecer e conquistar. Como, aliás, qualquer outro dom.
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O Dia Mundial da Paz
Passaram já vinte séculos desde o anúncio angélico aos pastores: «Paz aos homens que Deus ama» (cf. Lc 2,14). Mas, por outro lado, infelizmente, recordam-se ainda com certo receio e angústia os horrores das últimas duas grandes guerras, sobretudo a última, e em particular o holocausto, recorda-se a fornalha de Hiroshima, a «Declaração dos Direitos do Homem» em 1948 e também a publicação da Pacem in Terris em 1963. Além disso, é uma triste realidade a de dois povos irmãos (hebreus e palestinianos) que vivem em guerra contínua, com resultados nefastos. É uma incógnita e um autêntico pesadelo a ameaça de bombas e o terrorismo global que campeia no mundo de hoje. É um pesadelo o aparente equilíbrio do terror provocado pelo desconhecido que, apesar do fim da guerra fria, as super-potências ou candidatas a super-potências, acolitadas pelos respectivos «satélites», continuam a jogar sobre as nossas cabeças.
O que é, pois, a paz? Hoje faz ainda sentido aquele augúrio dos anjos aos pastores de Belém? Não há dúvida de que a paz é a condição do verdadeiro desenvolvimento da sociedade na justiça e no crescimento económico, mas não se reduz a isso, pois é algo que nasce e se desenvolve no mais íntimo da pessoa. Somos nós, homens e mulheres de hoje, que temos que viver esta realidade; somos nós os chamados a viver e a realizar essa condição.
Na óptica cristã, a paz não pode nem deve ser o efeito do equilíbrio (suposto), de resto sempre periclitante, do número dos mísseis e das ogivas nucleares distribuídos «equitativamente». Com frequência, a convicção dos políticos (e também do homem comum - digamo-lo sem reservas) é de que a paz depende do equilíbrio de forças entre as super-potências. Mesmo que fosse verdade, isso não estaria totalmente de acordo com o Evangelho. A paz é integridade, plenitude, vida em todas as suas dimensões, que condensa a eternidade, e é dom que Deus dá a quem está disposto a dá-la também aos outros. Talvez, num futuro mais ou menos distante, as novas gerações venham a ser capazes de redescobrir que, afinal, o Evangelho é que tem razão.
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Nunca mais uns contra os outros
Gostaria de terminar as considerações para este dia com as palavras corajosas que o cada vez mais apreciado papa Paulo VI dirigiu, no já longínquo 4 de Outubro de 1965, aos representantes das Nações Unidas na visita que fez à sede da ONU: «Neste momento, a nossa mensagem atinge o seu auge: o auge negativo. Vós esperais de nós (de mim) algumas palavras que, porém, não podem não revestir-se de seriedade e solenidade: nunca mais uns contra os outros, nunca, nunca mais! Foi com esta finalidade que nasceram as Nações Unidas: contra a guerra e a favor da paz. Ouvi as palavras clarividentes dum grande desaparecido, John Kennedy, o qual, há quatro ou cinco anos, proclamava: "a humanidade deve pôr fim à guerra ou então a guerra porá fim à humanidade"».
E Paulo VI continuava: «Não são precisas muitas palavras para descrever a finalidade desta Instituição (de que vós sois os representantes). Basta recordar o sangue de milhões e milhões de homens, os inumeráveis e inauditos sofrimentos, as inúteis matanças e a incalculável destruição, de que somos testemunhas, que sancionam o pacto que vos une com um juramento que deve mudar a história futura do mundo. Nunca mais a guerra! Nunca mais a guerra! A paz deve guiar as sortes dos povos e da humanidade inteira! Se quereis ser irmãos, deixai cair das vossas mãos as armas. Não se pode amar com armas na mão».
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MENSAGEM
DO SANTO PADRE
FRANCISCO
PARA O LVIII
DIA MUNDIAL DA PAZ
1 DE JANEIRO DE 2025
Perdoa-nos as nossas ofensas, concede-nos a tua paz
I. Na escuta do grito da humanidade ameaçada
1. Na aurora deste novo ano que nos é dado pelo nosso Pai celeste, um tempo jubilar dedicado à esperança, dirijo os meus mais sinceros votos de paz a cada mulher e a cada homem, especialmente àqueles que se sentem prostrados pela sua condição existencial, condenados pelos seus próprios erros, esmagados pelo julgamento dos outros e já não veem qualquer perspectiva para a sua própria vida. A todos vós, esperança e paz, porque este é um Ano de Graça, que vem do Coração do Redentor!
2. Em 2025, a Igreja Católica celebra o Jubileu, um acontecimento que enche os corações de esperança. O “jubileu” remonta a uma antiga tradição judaica, quando a cada quarenta e nove anos o toque da trombeta (em hebraico: yobel) anunciava um tempo de clemência e de libertação para todo o povo (cf. Lv 25, 10). Este apelo solene deveria ecoar por todo o mundo (cf. Lv 25, 9), a fim de restabelecer a justiça de Deus nos diferentes âmbitos da vida: no uso da terra, na posse dos bens, na relação com o próximo, sobretudo os mais pobres e os que tinham caído em desgraça. O toque da trombeta recordava a todo o povo, aos ricos e a quem tinha empobrecido, que ninguém vem ao mundo para ser oprimido: somos irmãos e irmãs, filhos do mesmo Pai, nascidos para ser livres segundo a vontade do Senhor (cf. Lv 25, 17.25.43.46.55).
3. Também nos dias de hoje, o Jubileu é um acontecimento que nos impele a procurar a justiça libertadora de Deus em toda a terra. Em vez da trombeta, no início deste Ano de Graça, nós gostaríamos de estar atentos ao «desesperado grito de ajuda» [1] que, como a voz do sangue de Abel, o justo, se eleva de muitas partes da terra (cf. Gn 4, 10) e que Deus nunca deixa de escutar. Nós, por nossa vez, sentimo-nos chamados a unir-nos à voz que denuncia tantas situações de exploração da terra e de opressão do próximo [2]. Estas injustiças assumem, por vezes, o aspecto daquilo a que São João Paulo II definiu como «estruturas de pecado» [3], porque não se devem apenas à iniquidade de alguns, mas estão, por assim dizer, enraizadas e contam com uma cumplicidade generalizada.
4. Cada um de nós deve sentir-se, de alguma forma, responsável pela devastação a que a nossa casa comum está sujeita, a começar pelas ações que, mesmo indiretamente, alimentam os conflitos que assolam a humanidade. Assim, fomentam-se e entrelaçam-se os desafios sistémicos, distintos mas interligados, que afligem o nosso planeta [4]. Refiro-me, em particular, às desigualdades de todos os tipos, ao tratamento desumano dispensado aos migrantes, à degradação ambiental, à confusão gerada intencionalmente pela desinformação, à rejeição a qualquer tipo de diálogo e ao financiamento ostensivo da indústria militar. Todos estes são fatores de uma ameaça real à existência de toda a humanidade. No início deste ano, portanto, queremos escutar este grito da humanidade para nos sentirmos chamados, todos nós, juntos e de modo pessoal, a quebrar as correntes da injustiça para proclamar a justiça de Deus. Alguns atos esporádicos de filantropia não serão suficientes. Em vez disso, são necessárias transformações culturais e estruturais, para que possa haver também uma mudança duradoura [5].
II. Uma mudança cultural: somos todos devedores
5. O evento jubilar convida-nos a empreender várias mudanças para enfrentar a atual condição de injustiça e desigualdade, recordando-nos que os bens da terra não se destinam apenas a alguns privilegiados, mas a todos [6]. Pode ser útil recordar o que escreveu São Basílio de Cesareia: «Mas que coisas, diz-me, são tuas? De onde as tiraste para as incluir na tua vida? […] Não saíste totalmente nu do ventre da tua mãe? Não voltarás, de novo, nu para a terra? De onde vem o que tens agora? Se dissesses que te veio por acaso, estarias a negar Deus, a não reconhecer o Criador, e não estarias grato ao Doador» [7]. Quando não há gratidão, o homem deixa de reconhecer os dons de Deus. Mas o Senhor, na sua infinita misericórdia, não abandona os homens que pecam contra Ele: antes, confirma o dom da vida com o perdão da salvação, oferecido a todos mediante Jesus Cristo. Por isso, ensinando-nos o “Pai Nosso”, Jesus convida-nos a pedir: «Perdoa-nos as nossas ofensas» ( Mt 6, 12).
6. Quando uma pessoa ignora a própria ligação com o Pai, começa a nutrir um pensamento de que as relações com os outros podem ser regidas por uma lógica de exploração, em que o mais forte pretende ter o direito de prevalecer sobre o mais fraco [8]. Tal como as elites do tempo de Jesus, que se aproveitavam do sofrimento dos mais pobres, também hoje, na aldeia global interligada [9], o sistema internacional, se não for alimentado por uma lógica de solidariedade e interdependência, gera injustiças que, exacerbadas pela corrupção, aprisionam os países pobres. A lógica da exploração do devedor também descreve sucintamente a atual “crise da dívida”, que aflige vários países, especialmente no Sul do planeta.
7. Não me canso de repetir que a dívida externa se tornou um instrumento de controle, através do qual alguns governos e instituições financeiras privadas dos países mais ricos não hesitam em explorar indiscriminadamente os recursos humanos e naturais dos países mais pobres para satisfazer as necessidades dos seus próprios mercados [10]. A isto se acrescenta que várias populações, já sobrecarregadas pela dívida internacional, vejam-se obrigadas a suportar também o peso da dívida ecológica dos países mais desenvolvidos [11]. A dívida ecológica e a dívida externa são dois lados da mesma moeda, desta lógica de exploração que culmina na crise da dívida [12]. Inspirando-me neste ano jubilar, convido a comunidade internacional para que atue no sentido de perdoar a dívida externa, reconhecendo a existência de uma dívida ecológica entre o Norte e o Sul do mundo. É um apelo à solidariedade, mas sobretudo à justiça [13].
8. A mudança cultural e estrutural para superar esta crise ocorrerá quando finalmente reconhecermos que somos todos filhos do mesmo Pai e, perante Ele, confessarmos que somos todos devedores, mas também todos necessários uns aos outros, segundo uma lógica de responsabilidade partilhada e diversificada. Poderemos descobrir, enfim, «que precisamos e somos devedores uns dos outros» [14].
III. Um caminho de esperança: três ações possíveis
9. Se deixarmos que o nosso coração seja tocado por estas necessárias mudanças, o Ano de Graça do Jubileu pode reabrir o caminho da esperança para cada um de nós. A esperança nasce da experiência da misericórdia de Deus, que é sempre ilimitada [15].
Deus, que não deve nada a ninguém, continua a conceder incessantemente graça e misericórdia a todos os homens. Isaque de Nínive, um Padre da Igreja Oriental do século VII, escreveu: «O teu amor é maior do que as minhas dívidas. Pouca coisa são as ondas do mar comparadas com a quantidade dos meus pecados, mas se eu pesar os meus pecados, comparados com o teu amor, eles desaparecem como se nada fossem» [16]. Deus não calcula o mal cometido pelo homem, mas é imensamente «rico em misericórdia, por causa do grande amor com que nos amou» ( Ef 2, 4). Ao mesmo tempo, ouve o grito dos pobres e da terra. Bastar-nos-ia parar por um momento, no início deste ano, e pensar na graça com que Ele sempre perdoa os nossos pecados e anistia todas as nossas dívidas, para que o nosso coração se encha de esperança e de paz.
10. Por isso, Jesus, na oração do “Pai Nosso”, depois de termos pedido ao Pai a remissão das nossas ofensas (cf. Mt 6, 12), exigentemente afirma «assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido». Para perdoar uma dívida aos outros e dar-lhes esperança, é preciso que a própria vida esteja cheia dessa mesma esperança que vem da misericórdia de Deus. A esperança é superabundante em generosidade, não é calculista, não olha para a contabilidade dos devedores, não se preocupa com o seu próprio lucro, mas tem um único objetivo: levantar os caídos, curar os quebrantados de coração, libertar de todas as formas de escravidão.
11. Gostaria, portanto, de sugerir, no início deste Ano de Graça, três ações que podem devolver a dignidade à vida de populações inteiras e colocá-las de novo no caminho da esperança, para que a crise da dívida possa ser ultrapassada e todos possam voltar a reconhecer-se como devedores perdoados.
Antes de mais, retomo o apelo lançado por São João Paulo II, por ocasião do Jubileu do ano 2000, para que se pense numa «consistente redução, se não mesmo no perdão total da dívida internacional, que pesa sobre o destino de muitas nações» [17]. Reconhecendo a dívida ecológica, os países mais ricos sentir-se-ão chamados a fazer tudo o que estiver ao seu alcance para perdoar as dívidas dos países que não estão em condições de pagar o que devem. Certamente, para que não se trate de um ato isolado de beneficência, que corre o risco de desencadear de novo um ciclo vicioso de financiamento-dívida, é necessário, ao mesmo tempo, desenvolver uma nova arquitetura financeira que conduza à criação de um acordo financeiro global, baseado na solidariedade e na harmonia entre os povos.
Além disso, faço apelo a um firme compromisso de promover o respeito pela dignidade da vida humana, desde a concepção até à morte natural, para que cada pessoa possa amar a sua vida e olhar para o futuro com esperança, desejando o desenvolvimento e a felicidade para si e para os seus filhos. Com efeito, sem esperança na vida, é difícil que surja no coração dos jovens o desejo de gerar outras vidas. Particularmente neste sentido, gostaria de convidar, uma vez mais, para um gesto concreto que possa favorecer a cultura da vida. Refiro-me à eliminação da pena de morte em todas as nações. Em realidade, esta punição, além de comprometer a inviolabilidade da vida, aniquila toda a esperança humana de perdão e de renovação [18].
Atrevo-me também a lançar um outro apelo às jovens gerações, recordando São Paulo VI e Bento XVI [19], neste tempo marcado pelas guerras: utilizemos pelo menos uma percentagem fixa do dinheiro gasto em armamento para a criação de um fundo mundial que elimine definitivamente a fome e facilite a realização de atividades educativas nos países mais pobres que promovam o desenvolvimento sustentável, lutando contra as alterações climáticas [20]. Devemos tentar eliminar qualquer pretexto que possa levar os jovens a imaginar o seu futuro sem esperança, ou como uma expectativa de vingar o sangue derramado por seus entes queridos. O futuro é um dom que permite ultrapassar os erros do passado e construir novos caminhos de paz.
IV. A meta da paz
12. Aqueles que empreenderem, através dos gestos propostos, o caminho da esperança, poderão ver cada vez mais próximo a tão desejada meta da paz. O Salmista confirma-nos nesta promessa: quando «a verdade e o amor se encontrarão, a justiça e a paz se abraçarão» ( Sal 85, 11). Quando me despojo da arma do crédito e devolvo o caminho da esperança a uma irmã ou a um irmão, contribuo para a restauração da justiça de Deus nesta terra e caminhamos juntos para a meta da paz. Como dizia São João XXIII, a verdadeira paz só pode vir de um coração desarmado da ansiedade e do medo da guerra [21].
13. Que 2025 seja um ano em que a paz cresça! Aquela paz verdadeira e duradoura, que não se detém nas querelas dos contratos ou nas mesas dos compromissos humanos [22]. Procuremos a verdadeira paz, que é dada por Deus a um coração desarmado: um coração que não se esforça por calcular o que é meu e o que é teu; um coração que dissolve o egoísmo para se dispor a ir ao encontro dos outros; um coração que não hesita em reconhecer-se devedor de Deus e que, por isso, está pronto para perdoar as dívidas que oprimem o próximo; um coração que supera o desânimo em relação ao futuro com a esperança de que cada pessoa é um bem para este mundo.
14. Desarmar o coração é um gesto que compromete a todos, do primeiro ao último, do pequeno ao grande, do rico ao pobre. Por vezes, é suficiente algo simples como «um sorriso, um gesto de amizade, um olhar fraterno, uma escuta sincera, um serviço gratuito» [23]. Com estes pequenos-grandes gestos, aproximamo-nos da meta da paz, e lá chegaremos mais depressa quanto mais, ao longo do caminho, ao lado dos nossos irmãos e irmãs reencontrados, descobrirmos que já mudámos em relação ao nosso ponto de partida. Com efeito, a paz não vem apenas com o fim da guerra, mas com o início de um mundo novo, um mundo no qual nos descobrimos diferentes, mais unidos e mais irmãos do que poderíamos imaginar.
15. Concede-nos, Senhor, a tua paz! Esta é a oração que elevo a Deus ao dirigir as minhas saudações de Ano Novo aos Chefes de Estado e de Governo, aos Chefes das Organizações Internacionais, aos líderes das diferentes religiões e a todas as pessoas de boa vontade.
Perdoa-nos as nossas ofensas, Senhor,
assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido,
e, neste círculo de perdão, concede-nos a tua paz,
aquela paz que só Tu podes dar
para aqueles que deixam o seu coração desarmado,
para aqueles que, com esperança, querem perdoar as dívidas aos seus irmãos,
para aqueles que confessam sem medo que são vossos devedores,
para aqueles que não ficam surdos ao grito dos mais pobres.
Vaticano, 8 de dezembro de 2024
FRANCISCO
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[1] Spes non confundit. Bula de proclamação do Jubileu Ordinário do ano 2025 (9 de maio de 2024), 8.
[2] Cf. São João Paulo II, Carta Ap. Tertio millennio adveniente (10 de novembro de 1994), 51.
[3] Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de dezembro de 1987), 36.
[4] Cf. Discurso aos participantes no encontro promovido pelas Pontifícias Academias das Ciências e das Ciências Sociais (16 de maio de 2024).
[5] Cf. Exort. ap. Laudate Deum (4 de outubro de 2023), 70.
[6] Cf. Spes non confundit. Bula de proclamação do Jubileu Ordinário do ano 2025 (9 de maio de 2024), 16.
[7] Homilia de avaritia, 7: PG 31, 275.
[8] Cf. Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), 123.
[9] Cf. Catequese (2 de setembro de 2020): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 8 de setembro de 2020), 3.
[10] Cf. Discurso aos participantes do Encontro “Debt crisis in the Global South” (5 de junho de 2024).
[11] Cf. Discurso na Conferência dos Estados-Parte na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as alterações climáticas - COP 28 (2 de dezembro de 2023).
[12] Cf. Discurso aos participantes do Encontro “Debt crisis in the Global South” (5 de junho de 2024).
[13] Cf. Spes non confundit. Bula de proclamação do Jubileu Ordinário do ano 2025 (9 de maio de 2024), 16.
[14] Carta. enc. Fratelli Tutti (3 de outubro de 2020), 35.
[15] Cf. Spes non confundit. Bula de proclamação do Jubileu Ordinário do ano 2025 (9 de maio de 2024), 23.
[16] Sermão X (Terceira Coleção), Oração com a qual se entretêm os solitários, 100-101: CSCO 638, 115. Santo Agostinho chega mesmo a afirmar que Deus não cessa de se fazer devedor ao homem: «Como “eterna é a vossa misericórdia”, dignais-vos, pelas vossas promessas, tornar-vos devedor daqueles a quem perdoais todas as dívidas" (cf. Confessiones, 5,9,17: PL 32, 714).
[17] Carta Ap. Tertio millennio adveniente (10 de novembro de 1994), 51.
[18] Cf. Spes non confundit. Bula de proclamação do Jubileu Ordinário do ano 2025 (9 de maio de 2024), 10.
[19] Cf. São Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio (26 de março de 1967), 51; Bento XVI, Discurso ao Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé (9 de janeiro de 2006); Id., Exort. Ap. pós-sinod. Sacramentum caritatis (22 de fevereiro de 2007), 90.
[20] Cf. Carta enc. Fratelli Tutti (3 de outubro de 2020), 262; Discurso ao Corpo Diplomático Acreditado junto da Santa Sé (8 de janeiro de 2024); Discurso na Conferência dos Estados-Parte na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as alterações climáticas - COP 28 (2 de dezembro de 2023).
[21] Carta enc. Pacem in Terris (11 de abril de 1963), 113.
[22] Cf. Momento de oração no décimo aniversário da "Invocação pela paz na Terra Santa" (7 de junho de 2024).
[23] Spes non confundit. Bula de proclamação do Jubileu Ordinário do ano 2025 (9 de maio de 2024), 18.
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