Temas de fundo |
SOLENIDADE DE STA. MARIA - A 1ª leitura (Nm 6,22-27): O Senhor mandou a Moisés dizer a Aarão e aos seus filhos que usassem as seguintes palavras para abençoar o povo de Israel: «O Senhor te abençoe e te guarde! O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e te favoreça! O Senhor volte para ti a sua face e te dê a paz!». E o Senhor disse: «Se invocarem assim o meu nome sobre os filhos de Israel, Eu abençoá-los-ei!».
* O Senhor te abençoe e te guarde. Parece tratar-se de uma fórmula de bênção usada depois da oferta do sacrifício ao Senhor, que data do tempo de Moisés e que vigorava também mais tarde no Templo de Jerusalém. Seja como for, neste caso, não é isso o mais importante. Em minha opinião, estas são invocações que ficam sempre bem, sobretudo ao início dum novo ano. Invocar sobre nós a bênção do Senhor é pedir que venha a nós a salvação de Deus e isso, para quem acredita, é de importância capital. A salvação de Deus - já nesta terra - concretiza-se na sua proteção, nos seus favores e na sua paz. Para os crentes, é sobretudo isso que significa abundância de felicidade.
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2ª leitura (Gl 4,4-7): Quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou o seu Filho, que nasceu de mulher e viveu sob o domínio da Lei, para resgatar os que se encontravam sob o domínio da Lei, a fim de receberem a adoção de filhos. E a prova de que sois filhos é que Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: «Abba –Pai!». Por isso, já não és escravo, mas filho. E, se és filho, és também herdeiro, por vontade de Deus.
* Não somos escravos, mas filhos de Deus. Nem sempre nos damos bem conta, vivencialmente, que nós hoje estamos inseridos numa realidade a que, em termos teológicos, chamamos «plenitude dos tempos». Com o envio do Filho, que assume a natureza humana, chega o ponto mais alto da revelação de Deus à humanidade. A finalidade da vinda do Filho do Homem é, por um lado, resgatar-nos do domínio da Lei e do pecado e, por outro, dar-nos a possibilidade de ser adotados por Deus como filhos. Também neste aspeto, nem sempre descobrimos o alcance que é ser, pelos méritos de Jesus recém-nascido, filhos de Deus. Neste primeiro dia do ano, é muito reconfortante relembrar que realmente somos filhos de Deus e que, além disso, por vontade dele, somos também herdeiros da sua felicidade.
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Evangelho (Lc 2,16-21): (Os pastores) partiram sem perda de tempo e encontraram Maria e José e viram o Menino deitado na manjedoura. Depois de o terem visto, começaram a espalhar o que lhes tinha sido dito a respeito daquele Menino. Todos os que os ouviam se admiravam do que diziam os pastores. Quanto a Maria, conservava todas estas coisas, meditando-as no seu coração. E os pastores voltaram glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham visto e ouvido: era tudo conforme lhes tinha sido anunciado.
* Maria meditava tudo no seu coração. Esta leitura é praticamente a repetição do texto evangélico que foi lido na primeira missa do Dia de Natal (missa da aurora). Isso significa que há o desejo de apresentar a imagem do presépio como modelo para pautar o ritmo do ano inteiro. Não estará subjacente a esta escolha a intenção de tomar os protagonistas - Maria, José e o Menino - como ponto de referência para a construção dum novo ano vivido na harmonia e na paz? Parece-me que sim, embora isso (naturalmente) não esteja explicitamente contido no texto. Seja como for, a ideia com que se fica é a de que os pastores (que nos representam a todos), perante a cena que se lhes depara, ficam felizes e irrompem em cantos de glória e louvor a Deus.
PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.
No dia de hoje, não é fácil, pastoralmente falando, escolher um tema unitário para desenvolver. Celebram-se em simultâneo o primeiro dia do ano, o Dia Mundial da Paz (fixado pelo papa Paulo VI a partir de 1968) e sobretudo a solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus (a que foi também acrescentada a invocação de «Mãe dos homens»). Não obstante essa dificuldade, vale a pena, no entanto, tentar ligar entre si estes temas centrais, de modo a formar uma unidade de reflexão susceptível de aplicar com proveito à própria vida. |
* Eles invocarão o meu nome e Eu os abençoarei.
*Deus mandou o seu Filho nascido de mulher.
* Os pastores encontraram Maria, José e o Menino.
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O SENHOR TE ABENÇOE E TE DÊ A PAZ! |
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Maria dá Jesus ao mundo
A solenidade deste primeiro dia do ano leva-nos a tecer considerações que tenham em conta, para além da maternidade de Maria, o início dum novo ano, que é também o Dia Mundial da Paz. E falar de tantas coisas ao mesmo tempo não é nada fácil.
A propósito do tema da paz, o texto da 1ª leitura é extremamente elucidativo. Mas, em termos litúrgicos, no centro da celebração, está certamente a solenidade de «Maria, Mãe de Deus»; embora, para dizer a verdade, o acento da 2a leitura e do próprio Evangelho seja sobre o «Filho de Maria» e sobre o «nome do Senhor», mais que propriamente sobre Maria. Seja como for, o que me parece não se dever esquecer é que o mistério do Redentor pode ser contemplado hoje a partir da Mãe do Redentor.
Deve ser um dado de facto (que espero não escandalize ninguém) que Maria tem um papel subordinado e «secundário» em relação a Jesus. Mas também é um facto que foi através dela que Deus se fez homem, se fez um de nós, se fez membro da nossa raça humana. Por isso, a atenção que a própria liturgia da palavra dedica ao «Filho» não reduz o papel de Maria, antes pelo contrário; nem a importância que é dedicada à Mãe deve tirar nada ao Filho. Maria é totalmente Mãe porque esteve em relação total com Jesus, seu filho. Nesse sentido, a honra que seja atribuída à mãe redunda também em glorificação do Filho.
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A origem das polémicas
O título de «Mãe de Deus» foi sempre e continua - ainda hoje em certos ambientes - a ser objecto de polémica, porque alguns, que parecem ter descoberto a pólvora, protestam contra uma prerrogativa que é exagerada e constitui (sempre segundo essas pessoas) ao mesmo tempo um erro teológico. E, de facto, ao ouvi-las, quem não tenha ideias claras acerca do assunto pode ser levado a ter sérias dúvidas, podendo mesmo ser levado a comparar o cristianismo com qualquer outra religião primitiva eivada de realidades míticas e mitológicas. Quer isso dizer que poderá levar os mais incautos a supor que se defende a existência duma espécie de Olimpo onde, para além de Deus, há também pelo menos uma deusa; precisamente Maria, «Mãe de Deus».
Ora bem, o título de «Mãe de Deus», mais que uma afirmação de carácter ontológico (perdoe-se-me o adjectivo técnico, que aqui é necessário), é uma constatação de carácter «histórico». E é nessa base que o título se justifica. É quase tautológico, por ser evidente demais, afirmar que Deus, sendo quem é (sem princípio nem fim) não pode ser filho de ninguém. Nisso, estamos todos de acordo. Mas, no contexto da doutrina cristã, o título «Mãe de Deus» é talvez o que melhor exprime a missão de Maria na história concreta da salvação, atendendo ao facto da Incarnação, que não parece merecer contestação por parte de ninguém que se diga cristão. Ou seja, em termos simples, se Deus Se fez homem em Jesus Cristo - e é assim - e se, portanto, Jesus Cristo é Filho de Deus e Ele mesmo Deus, então, se Maria é Mãe de Jesus, é também «Mãe de Deus» (veja-se com alguma atenção o primeiro capítulo do Evangelho de S. Lucas).
A salvação, no seu sentido pleno, é uma prerrogativa exclusiva de Deus. Ou seja, só Deus pode salvar. Digo mais: a maneira de Ele realizar a salvação depende também só dele. Como se deduz da reflexão feita por ocasião do domingo de Natal, Deus decide fazer-se um de nós em Jesus. Mas, como é óbvio, fazendo-se um de nós em Jesus, não deixa por isso de ser quem é. Ora bem, Jesus, o Verbo de Deus humanado (e isso é manifesto logo nas primeiras páginas do Novo Testamento) é «aquele que salva». O seu próprio nome está a indicar isso mesmo. Ora, essa constatação está a demonstrar que Ele é «equiparado» a Deus pelos Evangelhos. Ora bem, por decisão do próprio Deus, Maria é precisamente a mãe deste Jesus, que é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. É esse o motivo por que, ao dizermos que Maria é mãe de Jesus, estamos a dizer, como é claro, que ela é «Mãe de Deus».
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Mãe de Deus: Mãe dos homens
O texto evangélico diz-nos que, quando se cumpriu o tempo determinado por Deus, como tinha sido anunciado pelo anjo, o Menino recebeu o nome de «Jesus», que etimologicamente significa «Deus salva». Somos assim introduzidos no mistério de Cristo. Desde a sua incarnação até à sua morte e ressurreição, Jesus é o dom perfeito do Pai, é a salvação para todos os homens. Que o nome de Jesus é portador de salvação, dizem-no também Pedro e Paulo (cf. Act 2,21; Rm 10,13). Ora, essa oferta de salvação, como sabemos, veio-nos através de Maria, que aceitou a proposta feita pelo anjo de ser a mãe do Filho de Deus. Foi precisamente com ela que teve início a aventura da vida humana de Jesus.
Mas Maria não recebeu o dom de Deus só para si, mas para o levar ao mundo; e não só uma vez, mas até ao fim. Nessa perspectiva, ela continua a fazer com que os homens participem da vida divina. Pelo que se pode dizer que também ela, embora duma forma diferente de Eva, é a Mãe de todos os viventes, ou seja, a mãe de todos os homens que querem viver segundo o projecto de Deus.
Em boa hora, foi, portanto, Maria proclamada também Mãe da Igreja. Ao comemorar esse facto no primeiro dia do ano, está-se a querer indicar que todo o ano é colocado sob a proteção daquela que, de alguma maneira, participa da omnipotência divina salvadora.
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A Rainha da Paz
É também sob a égide de «Maria, Mãe de Deus e Mãe da Igreja» que se celebra, em todo o mundo católico, o Dia Mundial da Paz. Trata-se daquela paz que, Maria, uma de nós, encontrou no infinito abraço do amor de Deus; daquela paz que Cristo veio trazer aos homens que acreditam no amor.
Mas a paz, de que a Igreja fala neste primeiro dia do ano, não é apenas a paz de que falam todos os que a proclamam indispensável para que a humanidade possa prosseguir o seu rumo, mesmo quando programam e fazem ou provocam a guerra. A paz de que a Igreja fala e proclama não é sinónimo de equilíbrio de forças antagónicas nem se reduz a uma coexistência não beligerante baseada no temor recíproco. Em sentido bíblico, a paz é o dom messiânico por excelência, é a própria salvação trazida por Jesus, é a nossa reconciliação com Deus e, consequentemente, com os irmãos.
A paz é, sem sombra de dúvidas, um valor humano a realizar no campo social e político, mas afunda as suas raízes no próprio Deus. Ele insere-se, em Jesus Cristo, de tal maneira no tecido da história humana que, segundo o Novo Testamento, Ele quis estar sujeito a tudo como nós, excepto no pecado (cf. Hb 4,15).
Ele «irrompe» na história como um homem qualquer. E, a seu convite, doravante, todos podem chamar a Deus com o nome de «Pai». Ora, se todos somos filhos do mesmo Pai, então somos irmãos. E quem se considera «realmente irmão» não pode deixar de lutar contra todo o tipo de discriminação. A consequência dessa atitude de fundo é a paz que deve caracterizar o relacionamento entre irmãos. É também esta harmonia entre irmãos que está nas preocupações da nossa mãe celeste, a Virgem Maria, que nos quer realmente irmãos em Cristo Jesus.
No vórtice da I Grande Guerra, foi o papa Bento XIV que deu faculdade aos bispos de acrescentar à Ladainha Mariana a invocação «Rainha da Paz, rogai por nós». Este dom da paz, que todos invocam a torto e a direito, mas que poucos conseguem encontrar, Maria ensinou-o com uma palavra muito simples: fiat (faça-se em mim: a vontade de Deus). Mas essa disposição não se reduz a uma atitude passiva. A paz não é só um dom. É um dom que é necessário pôr a render, que é necessário pôr em prática, que é necessário merecer e conquistar. Como, aliás, qualquer outro dom.
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O Dia Mundial da Paz
Passaram já vinte séculos desde o anúncio angélico aos pastores: «Paz aos homens que Deus ama» (cf. Lc 2,14). No entanto, e por outro lado, recordam-se ainda com certo receio e angústia os horrores das últimas duas grandes guerras, sobretudo a última, e sobretudo o horror do holocausto, recorda-se a fornalha de Hiroshima, a «Declaração dos Direitos do Homem» em 1948 e também a publicação da Pacem in Terris em 1963.
Além disso, continua a ser uma triste realidade a de dois povos irmãos (judeus e palestinianos) em guerra permanente. É uma incógnita a ameaça de bombas e o terrorismo que campeia no mundo de hoje. E é também um pesadelo o equilíbrio do terror que, apesar do fim da guerra fria, as super-potências ou candidatas a super-potências, acolitadas pelos respectivos «satélites», continuam a jogar sobre as nossas cabeças.
O que é, pois, a paz? Hoje tem ainda sentido aquele augúrio dos anjos aos pastores? Não há dúvida de que a paz é a condição do desenvolvimento da sociedade na justiça e no crescimento económico, mas não se reduz a isso. Somos nós, homens e mulheres de hoje, que temos que viver esta realidade. Portanto, somos nós os chamados a viver e a realizar essa condição.
Na óptica cristã, a paz não pode ser o efeito do equilíbrio, sempre periclitante, dos mísseis e das ogivas nucleares. Com muita frequência, a convicção dos políticos e do homem comum, digamo-lo sem reservas, é que a paz depende do equilíbrio de forças entre as super-potências, mas isso não está de acordo com o Evangelho. A paz é integridade, plenitude, vida em todas as suas dimensões, que condensam a eternidade, e é um dom que Deus dá a quem está disposto a dá-la também aos outros. Talvez as novas gerações venham a ser capazes de redescobrir que, afinal, o Evangelho é que tem razão. É este o meu melhor augúrio.
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Nunca mais uns contra os outros
Gostaria de terminar as considerações para este dia com as palavras corajosas que o papa Paulo VI dirigiu, no já longínquo 4 de Outubro de 1965, aos representantes das Nações Unidas na visita que ele fez à sede da ONU: «Neste momento, a nossa mensagem atinge o seu auge: o auge negativo. Vós esperais de nós algumas palavras que, porém, não podem não revestir-se de seriedade e solenidade: nunca mais uns contra os outros, nunca, nunca mais! Foi com esta finalidade que nasceram as Nações Unidas: contra a guerra e a favor da paz. Ouvi as palavras clarividentes dum grande desaparecido, John Kennedy, o qual, há quatro ou cinco anos, proclamava: "a humanidade deve pôr fim à guerra ou então a guerra porá fim à humanidade"».
«Não são precisas muitas palavras para descrever a finalidade desta Instituição (de que vós sois os representantes). Basta recordar que o sangue de milhões de homens, os inumeráveis e inauditos sofrimentos, as inúteis matanças e as incalculáveis destruições de que somos testemunhas, sancionam o pacto que vos une com um juramento que deve mudar a história futura do mundo. Nunca mais a guerra! Nunca mais a guerra! A paz deve guiar as sortes dos povos e da humanidade inteira! Se quereis ser irmãos, deixai cair das vossas mãos as armas. Não se pode amar com armas na mão».
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MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO PARA O 53º DIA MUNDIAL DA PAZ (1º DE JANEIRO DE 2020)
( Quinta-feira, 12 de dezembro de 2019 )
Boletim da Santa Sé
A PAZ COMO CAMINHO DE ESPERANÇA: DIÁLOGO, RECONCILIAÇÃO E CONVERSÃO ECOLÓGICA
1. A paz, caminho de esperança face aos obstáculos e provações
A paz é um bem precioso, objeto da nossa esperança; por ela aspira toda a humanidade. Depor esperança na paz é um comportamento humano que alberga uma tal tensão existencial, que o momento presente, às vezes até custoso, «pode ser vivido e aceite, se levar a uma meta e se pudermos estar seguros dessa meta, se esta meta for tão grande que justifique a canseira do caminho».[1] Assim, a esperança é a virtude que nos coloca a caminho, dá asas para continuar, mesmo quando os obstáculos parecem intransponíveis.
A nossa comunidade humana traz, na memória e na carne, os sinais das guerras e conflitos que têm vindo a suceder-se, com crescente capacidade destruidora, afetando especialmente os mais pobres e frágeis. Há nações inteiras que não conseguem libertar-se das cadeias de exploração e corrupção que alimentam ódios e violências. A muitos homens e mulheres, crianças e idosos, ainda hoje se nega a dignidade, a integridade física, a liberdade – incluindo a liberdade religiosa –, a solidariedade comunitária, a esperança no futuro. Inúmeras vítimas inocentes carregam sobre si o tormento da humilhação e da exclusão, do luto e da injustiça, se não mesmo os traumas resultantes da opressão sistemática contra o seu povo e os seus entes queridos.
As terríveis provações dos conflitos civis e dos conflitos internacionais, agravadas muitas vezes por violências desalmadas, marcam prolongadamente o corpo e a alma da humanidade. Na realidade, toda a guerra se revela um fratricídio que destrói o próprio projeto de fraternidade, inscrito na vocação da família humana.
Sabemos que, muitas vezes, a guerra começa pelo facto de não se suportar a diversidade do outro, que fomenta o desejo de posse e a vontade de domínio. Nasce, no coração do homem, a partir do egoísmo e do orgulho, do ódio que induz a destruir, a dar uma imagem negativa do outro, a excluí-lo e cancelá-lo. A guerra nutre-se com a perversão das relações, com as ambições hegemónicas, os abusos de poder, com o medo do outro e a diferença vista como obstáculo; e simultaneamente alimenta tudo isso.
Como fiz notar durante a recente viagem ao Japão, é paradoxal que «o nosso mundo viva a dicotomia perversa de querer defender e garantir a estabilidade e a paz com base numa falsa segurança sustentada por uma mentalidade de medo e desconfiança, que acaba por envenenar as relações entre os povos e impedir a possibilidade de qualquer diálogo. A paz e a estabilidade internacional são incompatíveis com qualquer tentativa de as construir sobre o medo de mútua destruição ou sobre uma ameaça de aniquilação total. São possíveis só a partir duma ética global de solidariedade e cooperação ao serviço dum futuro modelado pela interdependência e a corresponsabilidade na família humana inteira de hoje e de amanhã».[2]
Toda a situação de ameaça alimenta a desconfiança e a retirada para dentro da própria condição. Desconfiança e medo aumentam a fragilidade das relações e o risco de violência, num círculo vicioso que nunca poderá levar a uma relação de paz. Neste sentido, a própria dissuasão nuclear só pode criar uma segurança ilusória.
Por isso, não podemos pretender manter a estabilidade no mundo através do medo da aniquilação, num equilíbrio muito instável, pendente sobre o abismo nuclear e fechado dentro dos muros da indiferença, onde se tomam decisões socioeconómicas que abrem a estrada para os dramas do descarte do homem e da criação, em vez de nos guardarmos uns aos outros.[3] Então como construir um caminho de paz e mútuo reconhecimento? Como romper a lógica morbosa da ameaça e do medo? Como quebrar a dinâmica de desconfiança atualmente prevalecente?
Devemos procurar uma fraternidade real, baseada na origem comum de Deus e vivida no diálogo e na confiança mútua. O desejo de paz está profundamente inscrito no coração do homem e não devemos resignar-nos com nada de menos.
2. A paz, caminho de escuta baseado na memória, solidariedade e fraternidade
Os sobreviventes aos bombardeamentos atómicos de Hiroxima e Nagasáqui – denominados os hibakusha – contam-se entre aqueles que, hoje, mantêm viva a chama da consciência coletiva, testemunhando às sucessivas gerações o horror daquilo que aconteceu em agosto de 1945 e os sofrimentos indescritíveis que se seguiram até aos dias de hoje. Assim, o seu testemunho aviva e preserva a memória das vítimas, para que a consciência humana se torne cada vez mais forte contra toda a vontade de domínio e destruição. «Não podemos permitir que as atuais e as novas gerações percam a memória do que aconteceu, aquela memória que é garantia e estímulo para construir um futuro mais justo e fraterno».[4]
Como eles, há muitos, em todas as partes do mundo, que oferecem às gerações futuras o serviço imprescindível da memória, que deve ser preservada não apenas para evitar que se voltem a cometer os mesmos erros ou se reproponham os esquemas ilusórios do passado, mas também para que a memória, fruto da experiência, constitua a raiz e sugira a vereda para as opções de paz presentes e futuras.
Mais ainda, a memória é o horizonte da esperança: muitas vezes, na escuridão das guerras e dos conflitos, a lembrança mesmo dum pequeno gesto de solidariedade recebida pode inspirar opções corajosas e até heroicas, pode colocar em movimento novas energias e reacender nova esperança nos indivíduos e nas comunidades.
Abrir e traçar um caminho de paz é um desafio muito complexo, pois os interesses em jogo, nas relações entre pessoas, comunidades e nações, são múltiplos e contraditórios. É preciso, antes de mais nada, fazer apelo à consciência moral e à vontade pessoal e política. Com efeito, a paz alcança-se no mais fundo do coração humano, e a vontade política deve ser incessantemente revigorada para abrir novos processos que reconciliem e unam pessoas e comunidades.
O mundo não precisa de palavras vazias, mas de testemunhas convictas, artesãos da paz abertos ao diálogo sem exclusões nem manipulações. De facto, só se pode chegar verdadeiramente à paz quando houver um convicto diálogo de homens e mulheres que buscam a verdade mais além das ideologias e das diferentes opiniões. A paz é uma construção que «deve estar constantemente a ser edificada»,[5] um caminho que percorremos juntos procurando sempre o bem comum e comprometendo-nos a manter a palavra dada e a respeitar o direito. Na escuta mútua, podem crescer também o conhecimento e a estima do outro, até ao ponto de reconhecer no inimigo o rosto dum irmão.
Por conseguinte, o processo de paz é um empenho que se prolonga no tempo. É um trabalho paciente de busca da verdade e da justiça, que honra a memória das vítimas e abre, passo a passo, para uma esperança comum, mais forte que a vingança. Num Estado de direito, a democracia pode ser um paradigma significativo deste processo, se estiver baseada na justiça e no compromisso de tutelar os direitos de cada um, especialmente se vulnerável ou marginalizado, na busca contínua da verdade.[6] Trata-se duma construção social em contínua elaboração, para a qual cada um presta responsavelmente a própria contribuição, a todos os níveis da comunidade local, nacional e mundial.
Como assinalava o Papa São Paulo VI, «a dupla aspiração – à igualdade e à participação – procura promover um tipo de sociedade democrática. (…). Isto, de per si, já diz bem qual a importância de uma educação para a vida em sociedade, em que, para além da informação sobre os direitos de cada um, seja recordado também o seu necessário correlativo: o reconhecimento dos deveres de cada um em relação aos outros. O sentido e a prática do dever são, por sua vez, condicionados pelo domínio de si mesmo, pela aceitação das responsabilidades e das limitações impostas ao exercício da liberdade do indivíduo ou do grupo».[7]
Pelo contrário, a fratura entre os membros duma sociedade, o aumento das desigualdades sociais e a recusa de empregar os meios para um desenvolvimento humano integral colocam em perigo a prossecução do bem comum. Inversamente, o trabalho paciente, baseado na força da palavra e da verdade, pode despertar nas pessoas a capacidade de compaixão e solidariedade criativa.
Na nossa experiência cristã, fazemos constantemente memória de Cristo, que deu a sua vida pela nossa reconciliação (cf. Rm 5, 6-11). A Igreja participa plenamente na busca duma ordem justa, continuando a servir o bem comum e a alimentar a esperança da paz, através da transmissão dos valores cristãos, do ensinamento moral e das obras sociais e educacionais.
3. A paz, caminho de reconciliação na comunhão fraterna
A Bíblia, particularmente através da palavra dos profetas, chama as consciências e os povos à aliança de Deus com a humanidade. Trata-se de abandonar o desejo de dominar os outros e aprender a olhar-se mutuamente como pessoas, como filhos de Deus, como irmãos. O outro nunca há de ser circunscrito àquilo que pôde ter dito ou feito, mas deve ser considerado pela promessa que traz em si mesmo. Somente escolhendo a senda do respeito é que será possível romper a espiral da vingança e empreender o caminho da esperança.
Guia-nos a passagem do Evangelho que reproduz o seguinte diálogo entre Pedro e Jesus: «“Senhor, se o meu irmão me ofender, quantas vezes lhe deverei perdoar? Até sete vezes?” Jesus respondeu: “Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete”» (Mt 18, 21-22). Este caminho de reconciliação convida-nos a encontrar no mais fundo do nosso coração a força do perdão e a capacidade de nos reconhecermos como irmãos e irmãs. Aprender a viver no perdão aumenta a nossa capacidade de nos tornarmos mulheres e homens de paz.
O que é verdade em relação à paz na esfera social, é verdadeiro também no campo político e económico, pois a questão da paz permeia todas as dimensões da vida comunitária: nunca haverá paz verdadeira, se não formos capazes de construir um sistema económico mais justo. Como escreveu Bento XVI, «a vitória sobre o subdesenvolvimento exige que se atue não só sobre a melhoria das transações fundadas sobre o intercâmbio, nem apenas sobre as transferências das estruturas assistenciais de natureza pública, mas sobretudo sobre a progressiva abertura, em contexto mundial, para formas de atividade económica caraterizadas por quotas de gratuidade e de comunhão».[8]
4. A paz, caminho de conversão ecológica
«Se às vezes uma má compreensão dos nossos princípios nos levou a justificar o abuso da natureza, ou o domínio despótico do ser humano sobre a criação, ou as guerras, a injustiça e a violência, nós, crentes, podemos reconhecer que então fomos infiéis ao tesouro de sabedoria que devíamos guardar».[9]
Vendo as consequências da nossa hostilidade contra os outros, da falta de respeito pela casa comum e da exploração abusiva dos recursos naturais – considerados como instrumentos úteis apenas para o lucro de hoje, sem respeito pelas comunidades locais, pelo bem comum e pela natureza –, precisamos duma conversão ecológica.
O Sínodo recente sobre a Amazónia impele-nos a dirigir, de forma renovada, o apelo em prol duma relação pacífica entre as comunidades e a terra, entre o presente e a memória, entre as experiências e as esperanças.
Este caminho de reconciliação inclui também escuta e contemplação do mundo que nos foi dado por Deus, para fazermos dele a nossa casa comum. De facto, os recursos naturais, as numerosas formas de vida e a própria Terra foram-nos confiados para ser «cultivados e guardados» (cf. Gn 2, 15) também para as gerações futuras, com a participação responsável e diligente de cada um. Além disso, temos necessidade duma mudança nas convicções e na perspetiva, que nos abra mais ao encontro com o outro e à receção do dom da criação, que reflete a beleza e a sabedoria do seu Artífice.
De modo particular brotam daqui motivações profundas e um novo modo de habitar na casa comum, de convivermos uns e outros com as próprias diversidades, de celebrar e respeitar a vida recebida e partilhada, de nos preocuparmos com condições e modelos de sociedade que favoreçam o desabrochar e a permanência da vida no futuro, de desenvolver o bem comum de toda a família humana.
Por conseguinte a conversão ecológica, a que apelamos, leva-nos a uma nova perspetiva sobre a vida, considerando a generosidade do Criador que nos deu a Terra e nos chama à jubilosa sobriedade da partilha. Esta conversão deve ser entendida de maneira integral, como uma transformação das relações que mantemos com as nossas irmãs e irmãos, com os outros seres vivos, com a criação na sua riquíssima variedade, com o Criador que é origem de toda a vida. Para o cristão, uma tal conversão exige «deixar emergir, nas relações com o mundo que o rodeia, todas as consequências do encontro com Jesus».[10]
5. Obtém-se tanto quanto se espera[11]
O caminho da reconciliação requer paciência e confiança. Não se obtém a paz, se não a esperamos.
Trata-se, antes de mais nada, de acreditar na possibilidade da paz, de crer que o outro tem a mesma necessidade de paz que nós. Nisto, pode-nos inspirar o amor de Deus por cada um de nós, amor libertador, ilimitado, gratuito, incansável.
O medo é, frequentemente, fonte de conflito. Por isso, é importante ir além dos nossos temores humanos, reconhecendo-nos filhos necessitados diante d’Aquele que nos ama e espera por nós, como o Pai do filho pródigo (cf. Lc 15, 11-24). A cultura do encontro entre irmãos e irmãs rompe com a cultura da ameaça. Torna cada encontro uma possibilidade e um dom do amor generoso de Deus. Faz-nos de guia para ultrapassarmos os limites dos nossos horizontes estreitos, procurando sempre viver a fraternidade universal, como filhos do único Pai celeste.
Para os discípulos de Cristo, este caminho é apoiado também pelo sacramento da Reconciliação, concedido pelo Senhor para a remissão dos pecados dos batizados. Este sacramento da Igreja, que renova as pessoas e as comunidades, convida a manter o olhar fixo em Jesus, que reconciliou «todas as coisas, pacificando pelo sangue da sua cruz, tanto as que estão na terra como as que estão no céu» (Col 1, 20); e pede para depor toda a violência nos pensamentos, nas palavras e nas obras quer para com o próximo quer para com a criação.
A graça de Deus Pai oferece-se como amor sem condições. Recebido o seu perdão, em Cristo, podemos colocar-nos a caminho para ir oferecê-lo aos homens e mulheres do nosso tempo. Dia após dia, o Espírito Santo sugere-nos atitudes e palavras para nos tornarmos artesãos de justiça e de paz.
Que o Deus da paz nos abençoe e venha em nossa ajuda.
Que Maria, Mãe do Príncipe da paz e Mãe de todos os povos da terra, nos acompanhe e apoie, passo a passo, no caminho da reconciliação.
E que toda a pessoa que vem a este mundo possa conhecer uma existência de paz e desenvolver plenamente a promessa de amor e vida que traz em si.
Vaticano, 8 de dezembro de 2019.
FRANCISCO