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fundo

1ª leitura (Hab 1,2-3; 2,2-4):  Ó Senhor, por quanto mais tempo terei que pedir socorro para me ouvires e para me salvares da violência? Porque é que me fazes passar por tantas tribulações? Como é que podes continuar a olhar indiferente para tanta maldade? O Senhor então deu-me a seguinte resposta: «Escreve bem em tábuas pequenas o que Eu te vou revelar, de maneira que se possa ler facilmente. Escreve tudo isso, porque ainda não chegou o tempo para se verificar. Mas o tempo está aí a chegar e o que te mostro vai-se realizar. Pode parecer que a sua chegada demore, mas, mesmo assim, espera, porque com certeza vai ter lugar e não demorará muito».

* O tempo há-de chegar e o que Eu te mostro vai-se realizar. A questão que preocupa o profeta Habacuc é um problema sempre actual: o porquê do sofrimento dos justos e inocentes. Não se sabe praticamente nada deste profeta, a não ser que parece ser uma pessoa consciente e atenta à história do seu tempo. Também é possível suspeitar que o background do seu escrito seja constituído por todas as vicissitudes que acompanharam a grande tragédia que foi o cativeiro da Babilónia. O certo é que ele se queixa amargamente a Deus dos castigos impostos ao seu povo, esperando uma resposta. Por outras palavras, a questão tem a ver com o modo de entender a justiça divina. Ao ler o livro do profeta Habacuc, fica-se com a impressão de que há vários pontos de contacto com o livro de Job. E a resposta para o porquê do sofrimento do inocente não pode ser senão uma: não sabemos. Parece a resposta mais sincera, embora nos custe admitir que somos incapazes de resolver o enigma. Mas o crente - e o cristão em particular - tem também uma certeza que lhe é dada pela fé: Deus, não obstante tudo, continua a ser o dono da história e a justiça chegará, não necessariamente quando e como nós pensamos ou exigimos, mas sim quando Ele achar que é o momento mais oportuno.

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2ª leitura (2Tm 1,6-8.13-14):  Recomendo-te que mantenhas vivo o dom que Deus te deu quando eu te impus as mãos. O Espírito que Deus nos deu não é um Espírito de timidez. Ao contrário, o seu Espírito enche-nos de fortaleza, amor e bom senso. Mantém-te firme às palavras que eu te ensinei, como exemplo a seguir, e permanece fiel na fé e amor que a união com Cristo Jesus nos transmite. Pelo poder do Espírito Santo, que vive em nós, continua as boas obras que te foram confiadas.

* Mantende-vos fiéis às palavras que vos ensinei. Diz quem sabe que a segunda Carta de Paulo a Timóteo foi escrita quando o apóstolo estava a chegar ao fim da sua vida e quando a perseguição por parte das autoridades romanas crescia de intensidade. É de calcular que, nestas circunstâncias, o bispo Timóteo, que Paulo colocara à frente da Igreja de Éfeso, sinta dificuldades e inclusivamente tenha problemas de governo em relação à Igreja que lhe está confiada. Pode-se até suspeitar que Timóteo se tenha deixado abater por algumas dúvidas e temores. Pois bem, é nestas circunstâncias que Paulo lhe escreve para lhe infundir a coragem necessária para levar por diante a sua missão. Paulo lança mão dum «argumento» que quase sempre dá resultado nestes casos, que é o da lembrança do passado; no caso, o dia da ordenação episcopal de Timóteo. Se a leitura nos é proposta hoje é porque ela é ainda actual. Nos momentos de maiores dificuldades e de incertezas, faz bem recordar momentos fortes da vida em que foram tomados solene e definitivamente certos compromissos. Trata-se dum «bálsamo» muito eficaz para poder prosseguir, com constância, a defesa do depósito da fé.

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Evangelho (Lc 17,5-10): Um dia, os apóstolos disseram ao Senhor: «Aumenta a nossa fé!». O Senhor respondeu: «Se tivésseis fé como um grão de mostarda, poderíeis dizer a esta amoreira: "Arranca-te daí e vai plantar-te no mar!" e ela obedecer-vos-ia. Suponhamos que um de vós tem um servo encarregado de lavrar ou apascentar gado. Quando volta dos campos, porventura lhe dizeis que se sente à mesa para comer? Claro que não! Pelo contrário, dizeis-lhe: "Prepara a ceia, põe o teu avental e espera que eu termine a minha refeição". O servo não merece agradecimentos por obedecer a ordens, pois não? Pois bem, é o mesmo convosco: quando tiverdes feito tudo o que deveis fazer, dizei: "Somos servos inúteis; não fizemos mais do que o nosso dever"».

* Ó, se tivésseis fé como um grão de mostarda! Parece-me quase redundante afirmar que o tema central do trecho evangélico é o da fé, embora a parábola que nos é dado ler não adiante muito. Uma coisa é certa: os discípulos pedem um aumento de fé e Jesus especifica que, mais do que quantidade, é preferível a qualidade. A imagem utilizada, porém, pode deixar-nos um pouco descoroçoados porque, quase instintivamente, sentimos que, afinal de contas, temos bem pouca fé, pois constatamos que não somos capazes de fazer arrancar uma amoreira para mandar plantar no mar. Mesmo explicando que se trata duma metáfora ou coisa do género, a ideia que está subjacente nas palavras de Jesus é que a fé dos apóstolos, afinal, deixa muito a desejar. Mas isso baseia-se em dificuldades bem concretas e que são especificadas no trecho evangélico que precede imediatamente o que temos entre mãos. Os apóstolos exprimem as dificuldades que sentem quando se trata de perdoar aos outros incondicionalmente, e Jesus confirma que, nesse capítulo, o que resolve não são as lucubrações, mas sim uma fé forte (capaz de transportar montanhas), sem ficar à espera de qualquer contrapartida ou recompensa e nem sequer de reconhecimento. A fé, neste caso, é aquele «quid» que dá um sentido diferente a tudo aquilo que se faz.

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 *   O tempo há-de chegar e o que Eu te mostro vai-se realizar.

 *   Mantende-vos fiéis às palavras que vos ensinei.

 *   Ó, se tivésseis fé como um grão de mostarda!

 

 

A melhor resposta aos porquês

     O profeta Habacuc, com bastante probabilidade, profetiza no tempo de Joaquim, rei de Judá (609-598 a.C.), numa época em que os babilónios começaram a dominar toda a região do Médio Oriente. E o profeta começa a sua obra com algumas interrogações que são, ao mesmo tempo, uma lamentação: «Até quando? Porquê?».

     Através da sua situação concreta, o profeta vê-se obrigado a contemplar desgraças, sofrimentos, violências, catástrofes e disputas entre os seus concidadãos, sem que Deus pareça mostrar que se dá conta de nada, como se Ele fosse impotente ou inclusivamente distraído. E, nesse sentido, essa situação é sempre actual, e mais ainda quando as tragédias e as hecatombes caem sobre algum povo ou sobre a humanidade em geral; como acontece de vez em quando.

     É a interrogação que nasce da experiência do mal humano como tal. Habacuc exprime desassombradamente as suas dúvidas e a «falta de lógica» na conduta de Deus: se Deus é o santo por excelência, melhor, se Ele é o único santo, como pode permitir que a maldade do povo seja castigada com as atitudes e atropelos de gente pior ainda que o seu povo? É o «mistério» da maldade e da perversão. O profeta Habacuc como que desafia Deus a dar-lhe uma resposta.

     E a resposta - aliás, a única possível - chega. O tempo como nós o entendemos não conta no eterno presente de Deus. O «plano» de Deus não está sujeito às contingências por que nós determinamos a nossa actuação. Mas Deus há-de intervir no «seu» tempo. Todavia, a certeza da intervenção de Deus não elimina a incerteza quanto ao momento dessa intervenção, porque «os caminhos de Deus não são os nossos caminhos e os pensamentos de Deus não são os nossos pensamentos» (cf. Is 55,8).

     Habacuc, como já descobrira também o protagonista do Livro de Job, só encontra uma resposta possível: «O justo viverá pela fé», ou seja, salvará a sua vida mediante a confiança plena e única em Javé. «Com fé» - escrevia alguém cujo nome não me ocorre - «resta por explicar o sofrimento, mas, sem ela, resta por explicar tudo o resto».
 

Fé como «background» do infinito

     Há muita gente convencida de que se pode compreender o cristianismo sem a fé, aduzindo para isso o facto de que, para compreender alguma coisa, não é precisa a fé. Nada mais errado, até porque, mesmo noutros campos, a compreensão de qualquer coisa não exige apenas o concurso da inteligência. Para compreender alguma coisa, é necessária, por assim dizer, toda a cooperação do ser humano total, segundo os estudos mais recentes de gnoseologia.

     A fé cristã é a capacidade de aceitar o mistério de Deus que se revela em Jesus Cristo, traduzindo-o num estilo de conduta. Sendo assim, a autêntica fé não é primariamente um amontoado de princípios, mas sim um processo de conhecimento e aceitação de alguém, processo que não se exaure na experiência da vida mortal, mas que se projecta para um futuro que sentimos e esperamos será um futuro de amor e de felicidade, sem as contingências do tempo e do espaço.

     A história da nossa fé de cristãos tem o seu início, podemos dizê-lo, com Abraão que, por isso mesmo, é chamado «pai dos crentes». A sua atitude perante Deus é uma atitude de fé: ou seja, com a sua inteligência, com o seu coração e com todo o seu ser, responde com um «sim» a Deus, consciente de que, a partir desse momento, ele vê as coisas e a vida do ponto de vista correcto.
 

O justo vive pela fé

     Crer é «intuir» a omnipotência e a omnisciência de Deus e, por conseguinte, arriscar a vida nele e lançar-se-lhe nos braços, mesmo quando tudo parece indicar que a gente vai despenhar-se no abismo.

     Como demonstra a primeira leitura, Deus parece «ausente» em certos momentos da vida, mas a fé é a única via para compreender o mistério da história. Isso não quer dizer que o homem não possa «protestar» (como, de resto, o fazem os autores bíblicos, sobretudo os autores dos Salmos), mas sempre chegando a uma conclusão irrecusável: que os protestos e as revoltas também não explicam nem esclarecem o mistério da maldade e do sofrimento pessoal e social.

     Parece-me mais lógica a atitude daquele que, não compreendendo o sofrimento e as «ilogicidades» da vida, recorre ao mistério do que a daquele que nega pura e simplesmente tudo, na medida em que, na primeira hipótese, «talvez» haja algures uma explicação que agora não entendemos, ao passo que, na segunda, é certo e sabido que não se admite hipótese nenhuma.
 

Fé é também compromisso

     A resposta de Deus, apenas apreensível num contexto e num background de fé, não é todavia, uma consolação fácil. Não se dá uma solução «actual», como poderia ser uma reacção que poderia configurar uma vingança ou uma desforra. Ora, embora sejamos tentados a isso, não podemos ignorar que, a partir dos dados da Bíblia, Deus quer salvar não só alguns, mas todos os homens. O que, naturalmente, pode implicar uma espera a longo prazo; e não no sentido da vingança, mas da redenção.

     Mas o que conta é estar firme e exclusivamente ancorado em Deus, acreditar no seu amor, não obstante toda a aparência de falhanço. Por outro lado, a fé ou confiança em Deus não implica o «descompromisso» do homem com a realidade quotidiana. Ou seja, a fé ou confiança em Deus não elimina a responsabilidade de trabalhar para modificar as situações de injustiça e sofrimento, de tudo fazer «como se tudo dependesse de nós».
 

Fé como adesão a alguém

     Há ainda muita gente que identifica a fé com um sistema ideológico, mesmo que se trate duma ideologia teológica, à qual se exige uma explicação do mundo (e sobretudo daquilo que não está bem no mundo, porque, quando as coisas vão bem, ninguém faz perguntas).

     Mas a fé não é isso. Não é uma adesão intelectual a uma série de verdades abstractas, mas a adesão incondicional a uma pessoa (e, no caso da fé cristã, é seguramente uma adesão incondicional, porque se trata duma adesão ao próprio Deus)...

     Só após esta operação de adesão é possível obter respostas em relação aos vários problemas da vida, porque é só a partir desse momento que a vida é vista de maneira diferente. Não há dúvida que os problemas têm configuração diferente segundo a maneira diferente de olhar para eles. A certeza, pela fé, por exemplo, da existência duma outra dimensão, para além da dimensão terrestre, introduz uma perspectiva que de outro modo seria impossível. A fé, portanto, não é uma explicação teológica do mundo propriamente dita, mas - insisto neste ponto - um «instrumento» através do qual o mundo se «vê» e se concebe diferentemente.
 

Fé como libertação dos ídolos

     Nesse sentido, a fé é, digamos assim, um novo modo de conhecer, um modo diferente de ver e «ler» a realidade: no caso da fé cristã, precisamente a capacidade de «ver» através dos olhos de Cristo e, consequentemente, através dos olhos de Deus.

     Nós cometemos, com frequência, o erro de «pedir contas» a Deus, como se Ele tivesse alguma obrigação de no-las dar! Partir do princípio de que tudo tem que ter explicação pela nossa inteligência é propor-nos como metro de conhecimento, é implicitamente querer pôr limites à infinita variedade de matizes que adornam a natureza das coisas, numa proporção que vai muito para além do que nós possamos imaginar.

     Exigir explicações a Deus é pretender impor-lhe uma medida - que é, afinal, a nossa medida - para além da qual Ele não pode passar. Por outras palavras, é fazer «vagar» o trono da divindade para nos sentarmos nós nele... E esse foi sempre o maior pecado descrito pela Bíblia: a idolatria!
 

Fé como segredo de humanização

     Só através da fé podemos chegar a essa realidade inaudita que é o facto de o próprio Deus se interessar pelo homem, aceitar essa realidade, mesmo não a compreendendo. Ao mesmo tempo, é «compreender» que o homem será tanto mais homem quanto mais se assemelhar a Deus e que ele se assemelhará tanto mais a Deus quanto mais O aceitar como «dono» da sua vida e do seu destino.

     Isso implica dar toda a primazia a Deus e, consequentemente, significa relativizar tudo o resto, «desideologizando» e «desidolatrando» tudo, incluindo o próprio homem.