Temas de fundo |
XXVI DOMINGO COMUM 1ª leitura (Am 6,1a.4-7): Eis o que diz o Senhor omnipotente: Ai daqueles que levam uma vida regalada em Sião, e ai dos que se sentem seguros na Samaria! Ai de vós, que vos refastelais nos vossos sofás de marfim comendo os melhores novilhos do estábulo e os mais bonitos cordeiros do rebanho! Folgais ao som da harpa e inventais instrumentos de música, como fez David. Bebeis vinho por grandes taças e usais os perfumes mais delicados, sem vos importardes com a ruína de Israel. Por isso, sereis os primeiros a ser deportados para o exílio e, então, as vossas festas e banquetes de volúpia acabarão.
Esta leitura de Amós foi escolhida obviamente em função do trecho evangélico. Há um paralelismo perfeito entre a vida de luxo e esbanjamento e a sorte final do rico da parábola evangélica e a situação dos ricos e exploradores contra os quais se insurge o profeta Amós. O esbanjamento dos ricos e a miséria dos pobres e a situação de injustiça social são de tal ordem que Amós não resiste a lançar-lhes em rosto as consequências que esperam aqueles que não se importam nada com a ruína de Israel: a orgia dos dissolutos acaba e eles serão deportados para o exílio. É isso que acontece efectivamente uns 30 anos depois de Amós pronunciar estas palavras. E nós podemos ficar todos contentes porque, afinal, as suas palavras se cumprem. Mas a verdade é que não basta ficar contentes com isso. O que é necessário é descobrir que tanto o texto de Amós como a Parábola do Evangelho não dizem só respeito aos ricos e poderosos daqueles longínquos tempos. A atitude de apego aos bens e de desprezo pelos que nada têm não é, infelizmente, um conceito que esteja fora da nossa própria experiência. O que nos faz ricos é precisamente o apego enraizado que temos aos bens e a incapacidade que sentimos em partilha-los com quem os não tem. E... como é difícil a um rico entrar no reino dos céus! (cf. Mt 19,23; Mc 10,23; Lc 18,24).
2ª leitura (1Tm 6,11-16): Tu, homem de Deus, evita todas estas coisas (a ganância do dinheiro). Opta pela retidão, pela santidade, pela fé, pelo amor, pela persistência e pela bondade. Faz o teu melhor no combate da fé para ganhar a vida eterna. Foi para esta vida que Deus te chamou quando professaste com firmeza a tua fé perante muitas testemunhas. Perante Deus, que dá a vida a todo o ser, e perante Cristo Jesus, que professou a sua fé com firmeza diante de Pilatos, recomendo-te que guardes o mandato e te mantenhas fiel a ele até ao Dia em que Nosso Senhor Jesus Cristo se manifestar. O seu aparecimento dar-se-á no tempo estabelecido pelo bendito e único Soberano, o Rei dos reis e o Senhor dos senhores. Só Ele é imortal e vive numa luz que não é acessível a ninguém. Ninguém jamais O viu e ninguém jamais O pode ver. A Ele a honra e o poder eternos! Ao ler a recomendação de Paulo a Timóteo de que evite todas estas coisas, o mais natural é ir ver de que coisas se trata. Pois bem, pelo que antecede esta leitura e pelo que vem logo a seguir deduz-se claramente que o que há a evitar tem a ver com as riquezas. Diz, com efeito, Paulo um pouco antes: «Os que querem enriquecer caem na tentação, na armadilha e em múltiplos desejos insensatos e nocivos que precipitam os homens na ruína e na perdição» (cf. 6,9). E, para que não haja dúvida que o tema que preocupa Paulo é precisamente o do perigo que representa a preocupação pelos bens. Mais adiante, acrescenta: «Aos ricos deste mundo recomendo que não sejam orgulhosos nem ponham a sua esperança na riqueza incerta, mas em Deus que nos dá tudo com abundância... Deste modo, acumularão um bom tesouro para o futuro, a fim de conquistarem a verdadeira vida» (6,17.19). Como para Timóteo, assim também para o cristão, o bapismo representa uma viragem na conduta e, por isso, o que o deve enriquecer é a retidão, a santidade, a fé, o amor, a persistência e a bondade. É isso precisamente que leva à verdadeira vida.
Evangelho (Lc 16,19-31): (Jesus disse:) Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho fino e que se banqueteava todos os dias. Havia também um pobre homem chamado Lázaro, coberto de chagas, que costumava estar à porta do homem rico, na esperança de poder alimentar-se com as sobras que caíam da sua mesa. Mas só os cães vinham lamber-lhe as feridas. Ora, o pobre morreu e foi levado para o seio de Abraão. Também o homem rico morreu e foi sepultado. Na morada dos mortos, vivia num grande tormento e, olhando para cima, viu ao longe Abraão com Lázaro ao seu lado. Então chamou por ele: «Pai Abraão, tem piedade de mim e manda Lázaro molhar o seu dedo em água para me refrescar a língua, porque eu estou a sofrer muito neste fogo». Mas Abraão respondeu-lhe: «Lembra-te, meu filho, que tu, na vida, tiveste tudo de bom, enquanto Lázaro só teve coisas más. Agora ele está a gozar aqui, enquanto tu estás a viver no sofrimento. Além disso, há entre nós e vós um grande abismo de maneira que, se alguém quisesse passar daqui para junto de vós ou daí para junto de nós, não poderia fazê-lo». Mas o rico insistiu: «Então, peço-te, ó pai, que mandes Lázaro à minha casa paterna - pois tenho cinco irmãos - para que os previna, a fim de que não venham também para este lugar de tormentos». Disse-lhe Abraão: «Eles têm Moisés e os profetas. Que os oiçam!». Mas ele insistiu: «Não, pai Abraão. Se algum dos mortos for ter com eles, arrepender-se-ão». Abraão respondeu-lhe: «Se não deram ouvidos a Moisés e aos profetas, também não se deixarão convencer, mesmo que alguém de entre os mortos ressuscite».
Esta parábola do rico epulão e do pobre Lázaro é, obviamente, uma história e não um facto real. Sendo assim, a sua principal finalidade é transmitir uma mensagem. Mal de nós se a nossa preocupação, em vez disso, fosse ver o que aconteceu de facto. Também não me parece que seja legítimo tirar conclusões sobre a situação do rico ou do pobre Lázaro. Ou seja, o rico não é condenado pelo simples facto de ser rico nem pobre é premiado pelo simples facto de ser pobre. Se assim fosse, então bastava ser pobre - ser miserável, ainda melhor - para ter garantido o reino dos céus. O rico epulão não é condenado sequer por se banquetear todos os dias (o que me parece um exagero natural e próprio duma parábola), mas sim por não temer a Deus e por não partilhar os seus bens com quem jazia à sua porta a morrer de fome. Como insisto com frequência, a parábola tem algum sentido quando nós conseguimos concluir que a sua finalidade é nós pôr-mo-la em prática. Quando nos limitamos a ficar encantados com a história e dela não tiramos nada de concreto para a vida, então é sinal de que a sua mensagem ainda não passou. E então, para que a mensagem tenha a hipótese de passar, temos que fazer pelo menos uma pergunta: Não será que aquele rico que não se interessa pelo pobre Lázaro não sou eu também? Será que eu sou incapaz de rever as minhas posições neste ponto, mesmo que alguém dos mortos ressuscite e mo venha dizer? Não será que eu só quero deixar de ser rico epulão pura e simplesmente para não ter a sorte que ele teve? |
* Vós que agora gozais a vida sereis os primeiros a ser deportados para o exílio.
* Sede fiéis aos mandamentos até à manifestação de Nosso Senhor Jesus Cristo.
* Durante a vida, tu recebeste bens e Lázaro só males. Agora é ele consolado e tu vives no meio de tormentos. |
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O alcance duma parábola
O tema da parábola do rico epulão e do pobre Lázaro, que hoje é posta à nossa consideração, é muito simples na sua mensagem central. No fundo, aquele que se gaba de ser rico, diante de Deus é, na realidade, um pobre. O pobre, ao contrário, que está aberto à grandeza de Deus, esse acaba por «possuir» o que importa.
A partir duma leitura superficial, poderá parecer chocante o sentido que na parábola é dado à riqueza e à pobreza. Isto porque alguns, mesmo entre os estudiosos, partem do suposto que a condenação do rico se deve unicamente ao facto de ele possuir bens. Ou seja, até os estudiosos se deidam levar pela impressão de que, segundo este texto, o rico vai para o inferno e o pobre para o seio de Abraão não porque o primeiro seja um pecador e o segundo um justo, mas só pelo facto de um ser rico e o outro pobre.
Mas, bem vistas as coisas, sobre esse assunto específico, a parábola não diz uma única palavra. Essa é apenas uma ilação que nós temos a tendência a tirar e que não está contida nas premissas. Sim, dá-nos a impressão de que o rico é condenado pela simples razão de ser rico. Mas isso não é senão a tradução do desejo de «vingança» por parte do oprimido, que se alegra com a reviravolta da situação no futuro (cf. K. Kautsky, A origem do cristianismo).
Segundo a interpretação de outros, essa descrição do ressentimento do pobre contra o rico seria o reflexo da situação dos cristãos «proletários» perseguidos na altura em que a página evangélica foi redigida e também dos oprimidos da primitiva Igreja e dos oprimidos de todos os tempos que se identificam com o pobre Lázaro. Ou seja, no fundo, nesta situação paradigmática, esconder-se-ia uma espécie de fundamento da luta de classes.
Ora, seja dito com clareza que chegar a uma conclusão destas é extrapolar da finalidade e do objetivo da parábola; é fazer dizer ao texto em questão aquilo que não está lá nem pode estar, até porque o contexto o não justifica. Como é óbvio, o tema da luta de classes neste contexto é totalmente despropositado.
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Parábola religiosa e não política
Segundo a minha maneira de ver, esta hipótese de trabalho não é, pois, correta. Com efeito, a leitura fundamental da Bíblia, como tenho repetido (e não me canso de repetir), tem que ser, em primeiro lugar, de índole religiosa, pois a Bíblia, embora isso pese a alguns leitores demasiado politizados, é primordialmente um livro religioso.
De resto, como já deu para perceber, o rico não é condenado simplesmente pela sua riqueza, mas porque não soube tomar a vida como um dom nem ofereceu dos seus bens ao pobre que estava a morrer de fome à porta da sua casa. O que é condenável não é, pois, a riqueza em si mesma, mas sim a falta de solidariedade, a falta de interesse e amor para com o próximo; no caso concreto, a falta de amor para quem estava em necessidade absoluta.
A riqueza (ou, por outra, os bens) não é em si um pecado, até porque também ela provém de Deus. Se assim fosse, nem sequer se poderiam chamar «bens». O que é pecado é a riqueza que deixa que os pobres morram, o que é pecado é a falta de solidariedade. O rico é merecedor de castigo não por ser rico, mas por se ter afastado de Deus ao recusar ao seu irmão a solidariedade exigida pela mensagem de Jesus. Segundo a mensagem da parábola, Deus, sendo o dom do amor eterno, achou aquele rico (só nos ficou o nome do pobre) inútil e vazio.
Na linha dessa parábola, salvam-se aqueles que reproduzem em si, mais ou menos perfeitamente, a imagem de Deus, que se manifesta nas suas criaturas. E perdem a sua identidade para sempre os que, afastando-se da «essência» de Deus (que é amor), acabam por perder a semelhança com Ele.
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A riqueza que afasta de Deus
O problema da riqueza e da pobreza é um dos problemas que sempre afligiram a humanidade e sempre a dividiram, criando mal-entendidos e confrontos. As interpretações do material bíblico sobre o assunto foram sempre também motivo de contendas. E não há dúvida que para isso contribui uma leitura pouco aprofundada da Bíblia. Em sentido diametralmente oposto, dessa leitura superficial da Bíblia resultam também várias passagens que parecem indiciar que a pobreza é sinal de incapacidade e de pecado, enquanto a riqueza, ao contrário, é sinal e prémio de virtude e de justiça. Outros, da Bíblia tiram razões para afirmar que o homem honesto não pode enriquecer. Riqueza, para eles, é sinónimo de mentira e exploração. Ou seja, o rico a tudo está disposto para defender os privilégios que a riqueza lhe outorga...
Do ponto de vista bíblico, o problema, porém, não se pode equacionar, em primeiro lugar, em termos sociais e políticos. Uma interpretação deste género é sempre redutora das intenções dos autores bíblicos, embora se não possam excluir aplicações práticas nesse campo. Penso, aliás, que os princípios bíblicos só alcançarão efectiva importância quando forem passados à prática do dia a dia.
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Felizes ou ai dos ricos?
Na Bíblia, encontramos uma «leitura dupla» da pobreza e da riqueza. Por um lado, é claro que a pobreza é um mal a vencer; não só em si mesmo mas também porque é como que a cristalização do pecado; e a riqueza, como prémio duma vida laboriosa, supostamente apresenta-se, por vezes, como sinal da bênção de Deus. Mas, por outro lado, na riqueza que pensa só em si, o profetismo e o próprio Jesus vêem o caminho e a tendência mais curtos para a auto-suficiência e o consequente afastamento de Deus e insensibilidade para com o próximo.
À expressão «Ai de vós, ricos!» contrapõe-se à bem-aventurança evangélica «Felizes os pobres!», que é considerada como uma zona privilegiada da experiência religiosa. Atendendo ao facto de que as expressões que «exaltam» a riqueza em prejuízo da pobreza são anteriores ao profetismo e, com maioria de razão, à nova ordem da era messiânica que, por seu lado, «exalta» a pobreza, o fiel da balança tem que pender para o lado da pobreza, não como simples ausência de bens mas sobretudo como disponibilidade e abertura de espírito a Deus e às necessidades dos outros.
Só que reduzir o conteúdo bíblico nesta matéria a esta solução interpretativa corresponderia a super-simplificar e a reduzir o problema a uma espécie de operação matemática, segundo a qual a «compra» do Reino seria indirectamente proporcional à soma de riquezas que se tivessem. Ou seja, quanto mais pobre se fosse, mais «direito» se teria ao Reino de Deus. Ora, isto, em termos bíblicos, constitui uma forma de raciocinar e interpretar pelo menos ridícula.
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Mal é toda a forma de desamor
Quer o profetismo quer Jesus condenam, sem ambiguidade, não tanto a riqueza em si, quanto a confiança ilimitada que se possa depositar em bens (riquezas, cidades, templos, montes ou ritos) para encobrir as injustiças e as desordens da vida de todos os dias. A ânsia pelos bens (e, nesse ponto, também o deserdado pode acalentar ânsias de possessão) pode conduzir a pessoa a fazer desses mesmos bens a meta da sua vida.
A parábola do rico avarento não se pode considerar como aceitação fatalista da desordem constituída (em que o rico acaba por eliminar o pobre), com a promessa, porém, de que a situação será diametralmente modificada na outra vida. Dessa forma, a religião seria, de facto, o ópio que adormece e morfiniza os pobres. Isso não seria Evangelho, mas caricatura do Evangelho.
A parábola (não vale a pena esquecer que é uma parábola) tem como finalidade despertar não só a reacção mas também a acção operativa dos ouvintes; e não apenas descrever objectivamente uma determinada situação presente injusta que se modificará no futuro. O Evangelho é, nesse sentido, denúncia da injustiça presente e convite a modificar na prática essa situação, sem ficar à espera que o futuro se encarregue de o fazer automaticamente. Isto, evidentemente, sem prejuízo para o facto de que, mais tarde ou mais cedo, as contas terão que ser feitas. Mas, quanto a este assunto específico, o mais que podemos concluir do Evangelho é que isso é da conta do Pai do céu.
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Transformar o mundo pelo amor
Jesus, como sempre, ultrapassa os simples termos materiais de riqueza e de pobreza, procurando fazer chegar os que O ouvem à prática da solidariedade do amor. E isso é muito mais que um simples manifesto revolucionário ou um calendário programático de reforma social. É algo de mais profundo e essencial. O Evangelho não nos ensina a revolução, mas sim a transformação dos homens e, por conseguinte, das estruturas sociais, mas por dentro. É uma mensagem e um programa que, se calhar, por vezes, não atraem muito. Mas são a única via de solução razoável para as relações humanas. O mundo será transformado de verdade apenas pela mudança do coração e pelo amor. O egoísmo, a insensibilidade e falta de solidariedade não auguram nada de bom.