Temas de fundo |
1ª leitura (Is 6,1-2a.3-8): No ano em que faleceu o rei Uzias, tive uma visão do Senhor. Ele estava sentado no seu trono, alto e elevado, e o seu manto cobria todo o Templo. À sua volta, estavam de pé criaturas fulgurantes, cada uma das quais tinha seis asas. Cada uma delas cobria a face com duas asas, o corpo com duas e usava as outras duas para voar. Clamavam uns para os outros: «Santo, santo, santo! A sua glória cobre o universo inteiro». O som das suas vozes fazia ranger os gonzos do Templo, que estava cheio de fumo. Então eu disse: «Ai de mim! Estou perdido, porque cada palavra que sai da minha boca está coberta de pecado e vivo no meio dum povo de boca impura. E, todavia, eu vi o Rei, o Senhor Todo Poderoso, com os meus próprios olhos». Então, uma das criaturas voou na minha direcção, trazendo uma brasa acesa, que tinha tirado do altar com uma tenaz. Tocou-me nos lábios com a brasa acesa e disse: «Isto tocou nos teus lábios e, por isso, a tua culpa foi apagada e os teus pecados foram perdoados». Foi então que eu ouvi dizer ao Senhor: «Quem hei-de mandar? Quem será o meu mensageiro?». E eu respondi: «Irei eu, Senhor. Manda-me a mim!».
* Eis-me aqui. Manda-me a mim! Esta primeira leitura de hoje, que fala explicitamente da vocação de Isaías (e, em particular, da forma toda especial como o profeta sentiu o seu chamamento), pode ser usada para falar também da vocação de cada um de nós. A propósito, infelizmente, ainda continua enraizada na mentalidade geral das pessoas a ideia de que, quando se utiliza o termo «chamada», «chamamento» ou «vocação», é assunto que diz respeito só a padres e freiras ou «coisa do género». Bem, apesar disso, nos dias que correm, há que acrescentar que, de alguma forma, tem quase havido como que uma tentativa de esvaziar a palavra «vocação» do seu sentido religioso, ficando com a impressão que vocação é um termo para designar a simples escolha dum futuro emprego. Quando se fala do assunto na escola, está-se a falar, de preferência em opção de tipo profissional Mas o certo é que, ao falar de «vocação», em termos rigorosos, seria aconselhável redescobrir o que em geral se quer dizer especificamente com esse termo, quando se faz referência ao chamamento de Deus. Se for claro que a vocação propriamente dita tem a ver com a resposta que a humanidade (e cada um) dá a Deus, então a coisa já faz sentido. Ou seja, espera-se que cada um saiba adequar a sua vida a fim de pôr em prática esse plano. Na perspetiva religiosa - e cristã em especial -, logo que se tiver descoberto a relação com Deus, necessariamente tem que se chegar à conclusão que temos que ser seus mensageiros no mundo em que vivemos. Sendo criaturas limitadas, temos necessidade de constante purificação e de sermos convertidos (ao Evangelho), mas a essa purificação segue-se uma missão que não podemos rejeitar... se é que levamos a Deus a sério. Nesse sentido, temos, pois, todos que ser seus profetas, ou seja, seus «porta-vozes».
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2ª leitura (1Cor 15,1-11): Quero recordar-vos, agora, meus irmãos, a Boa Nova que vos preguei e que vós acolhestes e sobre a qual está firmemente fundada a vossa fé. Este é o Evangelho ou Boa Nova que vos transmiti. Sereis salvos pelo Evangelho se vos conformardes firmemente com ele. Senão terá sido em vão que acreditastes nele. Comuniquei-vos o que, por minha vez, eu também recebi e que é da maior importância; ou seja: que Cristo morreu pelos nossos pecados, como está nas Escrituras; que foi sepultado e ressuscitou para a vida três dias depois, como está escrito nas Escrituras; que Ele apareceu a Pedro e depois a todos os outros doze apóstolos; e que apareceu, de uma só vez, a mais de quinhentos dos seus seguidores, muitos dos quais ainda estão vivos, se bem que alguns já tenham morrido; e que apareceu também a Tiago e a seguir a todos os apóstolos. E, em último lugar, Ele apareceu-me também a mim – mesmo que me pareça com alguém cujo nascimento não foi normal. Eu sou o menor dos apóstolos – se calhar, nem sequer sou digno de me chamar apóstolo, porque persegui a Igreja de Cristo. Mas, pela graça de Deus, sou o que sou. E a verdade é que a graça que Ele me deu não ficou sem efeito; pelo contrário, tive que fazer maior esforço do que qualquer um dos outros apóstolos. Mas isso não foi mérito meu, mas sim foi a graça de Deus a trabalhar em mim. Por isso, quer tenha vindo por meu intermédio quer tenha vindo por intermédio deles, isto é o que eu prego e isto é aquilo em que vós acreditais.
* É pela graça de Deus que sou o que sou. Este trecho específico da 1ª Carta aos Coríntios é motivado por duas objeções que corriam no ambiente em que a Carta apareceu: a primeira é a de que a ressurreição não existiria; e, se existisse, como é que se daria e com que corpo a gente ficaria. A resposta de Paulo, como me parece óbvio, não pode ser uma resposta científica, pois este é um conceito que ultrapassa o tempo e a vida de Paulo. De resto, nestas coisas, fico com a impressão que, até nos dias de hoje, se fala muito de ciência, mas não se chega bem a dizer o que é. Então, a proposta que Paulo faz situa-se na perspetiva da fé e é nesse sentido que tem que ser aceite. E, nessa perspetiva, então, há coisas que para S. Paulo são claras e indispensáveis. Diz ele: Cristo morreu pelos nossos pecados; foi sepultado, mas não ficou prisioneiro no sepulcro, pois voltou à vida ao terceiro dia; apareceu vivo aos seus; por outro lado, Paulo converteu-se radicalmente graças ao facto de ter visto e experimentado Jesus vivo; sentindo também que lhe dava a sua força - («já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim», confessa Paulo). Mas isso já é outra «ciência». Este é, portanto, um texto que, mais do que ser escalpelizado (o que se pode também fazer), deve ser meditado e rezado.
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Evangelho (Lc 5,1-11): Um dia, Jesus estava à beira do Lago de Genesaré. A gente empurrava-se para ouvir a palavra de Deus. Ele viu então dois barcos amarrados à beira mar. Tinham-nos ali deixado os pescadores, que estavam a lavar as redes. Então Jesus subiu para um dos barcos – que pertencia a Simão – e pediu-lhe que se fizesse um pouco ao largo. Jesus, sentado no barco, daí ensinava a multidão. Quando acabou de falar, disse a Simão: «Leva o barco para águas profundas e tu e os teus companheiros lançai as redes para a pesca». «Mestre!» – respondeu-lhe Simão – «trabalhámos no duro toda a noite e não apanhámos nada. Mas, se tu o dizes, eu lanço as redes». Eles lançaram as redes e apanharam uma tal quantidade de peixe que as redes quase se rompiam. Por isso, pediram aos companheiros que estavam no outro barco para os virem a ajudar. Eles vieram e encheram ambos os barcos com tanto peixe que os barcos quase se afundavam. Ao ver o que tinha acontecido, Simão Pedro lançou-se de joelhos diante de Jesus e disse: «Senhor, afasta-te de mim, que sou um pecador!». Ele e os que estavam com ele ficaram admirados por causa da quantidade de peixe que tinham pescado. O mesmo se deve dizer dos companheiros de Simão, Tiago e João, filhos de Zebedeu. Jesus disse então a Simão: «Não tenhas medo. A partir de agora, serás pescador de homens». Então eles puxaram os barcos para a praia, deixaram tudo e seguiram Jesus.
* «Não tenhas medo. Agora, serás pescador de homens». Deus serve-Se de muitas maneiras para nos chamar para cumprir uma determinada missão. E, mais exatamente, cada um é chamado à sua maneira, pelo que não há um chamamento igual a outro. Talvez isso explique o facto de que cada evangelista fale do assunto da vocação à sua maneira. Seja como for, no caso do chamamento dos quatro primeiros discípulos de Cristo, Lucas descreve-o com anotações próprias; e, nomeadamente, depois duma demonstração de «força» por parte de Jesus. Mas o que interessa é que, para além das circunstâncias, esse chamamento exige uma resposta. Essa vocação dá-se no contexto dum facto extraordinário. A vocação dos primeiros quatro discípulos de Jesus é enquadrada no ambiente e estilo de vida do lago. Tudo contribui, por um lado, para que os chamados tomem plena consciência da própria fraqueza, e, por outro, que descubram também que há neles a capacidade para superar os obstáculos graças ao facto de estarem ancorados na força e na palavra de Jesus. Além do mais, parece-me ser possível entrever também uma maneira de o evangelista Lucas antecipar um assunto que lhe interessa de maneira particular, ou seja, relevar o carisma e o primado de Pedro na Igreja de Jesus. Seja como for, o seguimento de Jesus é exigido não só a Pedro, mas também a todos os outros. Devo acrescentar que também a resposta deles é positiva.
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* Quem hei-de mandar?
* Cristo morreu pelos nossos pecados.
* Serás pescador de homens. |
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AFASTA--TEDE MIM,QUE SOUPECADOR |
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Falar em nome de Deus
Ficou dito, no comentário ao domingo anterior, que a Igreja no seu todo, ao constituir-se Corpo de Cristo, tem a obrigação de ser profeta, ou seja, mensageira do próprio Deus. No entanto, não se pode esquecer que, para anunciar a Deus, para ser seu mensageiro, para falar em seu nome, para ser seu porta-voz, é preciso «conhecê-lo». É claro que, em termos teóricos, sabemos que Ele se revelou aos homens ao longo da história, mas será que, na realidade, nós estamos sempre dispostos a escutá-lo?
No decorrer da história - que continua a repetir-se - há a tendência a tratar do «assunto» Jesus como se fosse um assunto como outro qualquer. Mas certamente me será permitido afirmar que a forma de O tratar tem que se reger por outros «paradigmas». Jesus, como «Deus-connosco», é tão original e sobretudo tão «totalmente Outro» que não nos é possível conhecê-lo através dos nossos silogismos, enquadrando-o nos esquemas do nosso raciocínio. De resto, só é possível chegar até Ele através da revelação. E a revelação de Deus é algo de totalmente livre e gratuito. Pelo que o homem não se pode arrogar, de maneira nenhuma, qualquer poder sobre Deus. O profeta, ou seja, no caso, aquele que fala em nome de Deus, ou aceita esse facto ou então não é profeta. Por isso, como profeta, não tem o direito de anunciar uma doutrina abstrata, puramente humana, mas tem a obrigação de anunciar uma Pessoa. E, por isso, só é verdadeiramente profeta aquele a quem Deus chama e envia a falar em seu nome. Vocação e missão estão, pois, intimamente relacionadas. Nem todos podem pretender usurpar a missão de profeta a são ser que seja escolhido para falar oficialmente em nome de Deus. Só os chamados para esse fim; mesmo que, em termos humanos, não sejam de facto os mais sábios e inteligentes (cf. Mt 11,25). É deste tema que nos fala a liturgia da palavra de hoje.
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Vocação para uma missão
As três leituras deste domingo propõem um idêntico conceito de vocação. Isaías viu a glória de Deus antes de ser enviado. Os apóstolos viram a Jesus ressuscitado antes de serem enviados a percorrer o mundo a anunciar a sua mensagem. Paulo inicia a sua grande obra de apostolado entre os pagãos, depois de lhe ter aparecido pessoalmente, no caminho de Damasco, o próprio Jesus, a quem perseguia na pessoa dos crentes (cf. Act 9,1ss).
Em cada um destes casos (como em todos os casos de vocação para a missão de falar em nome de Deus) há, antes de mais, uma «visão», uma experiência pessoal profunda. E isso por uma razão muito simples. É que, no fundo, ninguém fala em nome de alguém que não conhece. A pessoa escolhida poderá apresentar as suas objeções (como sempre acontece), mas não pode ficar indiferente ao facto de Deus se lhe ter «revelado». Mais: essa pessoa tem obrigação de estar sempre atenta à voz de Deus, pois Deus continua a revelar-se, como sempre fez com todos os profetas, bem como com todos aqueles que Ele quis mandar dizer alguma coisa ao seu povo.
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Hoje, Deus revela-se em Jesus
A Carta aos Hebreus diz que Deus se revelou de muitas maneiras no passado, mas que, quando chegou o tempo oportuno (plenitude dos tempos), se revelou através do seu Filho, Jesus Cristo (cf. Hb 1,1). Pois bem! Nós somos os herdeiros desse tempo oportuno, também conhecido pela expressão «últimos tempos». Se bem que ainda não tenham terminado, os útimos tempos já começaram com a chgada do enviado por excelência de Deus. É Jesus o iniciador do novo Reino. É através dele que agora os homens têm acesso ao caminho que conduz ao Pai, depois de serem libertados da condição de pecadores inclinados para o mal. Deus quis que fosse através de Jesus que os homens se tornassem de novo seus colaboradores perfeitos na consecução da salvação.
A partir da sua dispersão fora da Palestina, as primitivas comunidades cristãs começaram bem cedo a chamar-se «Igrejas». O termo grego «ekklesía» para designar essa realidade quer dizer à letra «assembleia», que é uma «reunião de pessoas convocadas, chamadas (por Deus). Mas, para serem tais, devem precisamente ser convocadas por alguém que tenha recebido esse mandato da parte de Deus. Segundo Paulo, os discípulos do Senhor devem ter a convicção de ser chamados por Deus em Jesus Cristo, que deu esse poder aos apóstolos. É esse reconhecimento por parte da assembleia que constitui o critério privilegiado de discernimento dessa chamada. Os campos em que cada um exerce a sua atividade são diferentes, mas «quem» chama e o fim para o qual se é chamado é único: Deus e a edificação do seu Reino.
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A missão como libertação total
Ninguém se pode arrogar o direito de falar em nome de Deus, a não ser, evidentemente, os que são investidos desse poder (e, mesmo nesse caso, ninguém se pode propriamente «arrogar»). Mas, por outro lado, não é menos certo que todos os que são convocados através da sua Palavra não podem ficar indiferentes às exigências do Reino. É por isso que, na Igreja de Cristo, a missão de ser portador da Palavra não é um privilégio que alguns se possam arrogar. Mas isso não quer dizer que haja quem se sinta dispensado, porque cada um tem que fazer a sua parte à sua maneira. Nesse sentido, a missão de levar a Palavra de Deus aos outros é um dom (que é dever) e, nesse sentido, é concedido a todos.
E, nesse capítulo, é já costume dizer-se, e com razão, que há ainda muito a fazer. Costuma-se dizer também que a humanidade se encontra numa encruzilhada difícil. Também esta será uma frase feita, mas isso não tira que os sinais de tensão aí estejam a prová-lo. Por outras palavras, o mundo tem que melhorar: é o que todos dizem. Mas o egoísmo e a sede do poder a todo o custo não são as melhores bases para fundamentar a sociedade justa e igualitária de que tanto se fala e por que tanto se anseia. As ofertas ideológicas nessa linha já provaram que não é por esse caminho que a humanidade pode avançar.
É então responsabilidade dos cristãos apontar perspetivas e soluções alternativas. E não apenas em teoria, porque, nesse capítulo, mesmo que sejam extraordinários, não conseguem convencer porque as suas propostas não são as da facilidade. Mas - repito - não em termos de ideologia, pois, no fundo, as ideologias equivalem-se. O que é preciso é propor uma prática de humanidade diferente, fundada na premissa bíblica de que todos os homens são irmãos e que, portanto, têm que ser tratados como tais. O exemplo de comunidades convocadas pela Palavra de Deus em pleno «funcionamento» será o único caminho a seguir para que as pessoas cheguem realmente a reconhecer que as «Igrejas» são grupos de homens e mulheres que se reconhecem e se tratam como iguais, como irmãos e como discípulos de Jesus Cristo.
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Todos pescadores de homens
Na sequência deste subtítulo, é caso para dizer que «há pescadores de homens e... pescadores de homens»! Mas a verdade é que todos devem participar em todas as iniciativas tendentes a evitar que a humanidade siga pelo caminho do hedonismo, do egoísmo, do facilitismo e do relativismo, porque isso conduz ao barranco da perdição. Nem todos estarão na linha da frente. Mas isso é evidente, porque, para que alguém possa estar na linha da frente, outros têm que estar na retaguarda. Nem todos terão que ir para o alto-mar (passe a imagem da pesca), mas a todos compete dar o seu contributo para que a faina da pesca seja coroada de êxito.
A igualdade, a paz estável, a possibilidade de progresso aberto a todos indistintamente, não são possíveis sem a adopção de medidas de base que estão do lado oposto do egoísmo e da sede de poder, ou seja, de subjugação dos homens pelos homens.
Em todo o caso, a Igreja nunca poderá fazer acreditar na sua missão de «pescar homens» se os seus membros estiverem à margem das iniciativas e movimentos de salvação tendentes a mudar o curso das coisas. A Igreja não pode revelar o amor de Deus senão partilhando este amor pelos homens. Trata-se de um amor que se traduz não só em belas teorias e até em planos pastorais (que, por vezes, não passam do papel), nem apenas sonhos, suspiros e boas intenções, mas em realizações concretas em favor do melhoramento integral das condições de vida do homem. Não será que por vezes se fica tranquilo porque se realizou um determinado número de reuniões sobre um determinado assunto, mas nada passou à prática?
TAIZÉ: CARTA SOBRE CHAMAMENTO ESPECIAL
«....
Será que permaneço livre se obedeço a um chamamento de Cristo?
Foi «ao passar» (Marcos 1,16 e 2,14) que Jesus reparou nos seus primeiros discípulos. Neste «ao passar» há um sopro de liberdade. Jesus não vinha com uma estratégia bem planeada; ele vê os seus futuros discípulos e chama-os. Diz-lhes muito pouco sobre o que espera deles e também muito pouco sobre o que eles podem esperar dele. Os discípulos descobrem isso a pouco e pouco. Jesus quer que eles sejam tão livres como ele. Ou melhor: livres da mesma maneira que ele é livre.
«Tu, segue-me!»: são as últimas palavras de Jesus nos Evangelhos (João 21,22). Ressuscitado, ele continua a chamar para o seguirem. Ele vem sempre «ao passar». Não sou eu que escolho o momento. Um dia, há uma palavra do Evangelho que me toca. Um encontro ou um acontecimento marcam-me e levam-me a comprometer-me com ele. Um chamamento é em primeiro lugar algo que me acontece.
Onde está então a minha liberdade, uma vez que não sou eu que escolho encontrar Cristo, mas é ele que me encontra? E quando me perguntam porque me comprometi desta forma, tenho dificuldade em responder, pois, como para os primeiros discípulos, as coisas parece que aconteceram um pouco por acaso. «Ao passar, Jesus viu...» e Levi, sem hesitar um segundo, «levantou-se e seguiu-o» (Marcos 2,14). Não terá sido um pouco depressa demais para que a escolha fosse consciente, responsável e livre? O que é certo é que Levi, ao levantar-se, torna-se livre. Até então ele dispunha livremente de si mesmo e do seu posto de cobrança de impostos. A partir daquele momento, o seu horizonte vai alargar-se.
Apesar do chamamento de Cristo se ter imposto a Levi com uma evidência imediata, ele não viola a sua liberdade. Pois onde está Cristo está também o Espírito Santo. O chamamento de Cristo corresponde a algo que está no mais profundo do meu coração. Chega simultaneamente do exterior – de uma palavra lida ou ouvida, de um acontecimento ou de um encontro – e do interior. Ele liberta, mais de que manda. Ao mesmo tempo que Cristo me chama, o Espírito Santo solta em mim o que está amarrado, alivia o que está atribulado.
Jesus não determina antecipadamente o caminho dos seus discípulos. Ele gostava de lhes colocar perguntas: «E vós, quem dizeis que eu sou?» (Marcos 8,29), «também vós quereis ir embora?» (João 6,67), «tu amas—me?» (João 21,15-17). A nossa liberdade e o nosso envolvimento são importantes para ele. É só com a minha resposta que o seu chamamento se torna certo para mim. São os meus próprios passos que traçam o caminho para eu o seguir. «Chamando-te, Deus não te prescreve o que deves fazer. O seu chamamento é antes de mais um encontro.» (Carta a quem gostaria de seguir Cristo).»