1ª leitura (Dn 7,13-14): Contemplando uma visão nocturna, vi vir sobre as nuvens do céu alguém que se parecia com um ser humano. Ele avançou até a um ancião, a quem foi apresentado. Foram-lhe dadas a autoridade, a glória e a realeza, para que todos os povos, todas as nações e as gentes de todas as línguas o servissem. O seu poder é um poder eterno, que dura para sempre, e o seu reino nunca será destruído.

* O seu poder é um poder eterno.

Ao comentarem este trecho do profeta Daniel, alguns entendidos lançam a hipótese de que a expressão «Filho do homem» se aplica ao «povo dos santos» (Dn 7,27). Não tenho nem autoridade nem preparação académica para me pronunciar sobre este assunto específico. Todavia, isso não impede de dizer que a expressão se possa interpretar também em sentido individual. Em todo o caso, segundo o texto que se segue a este, é um facto que o «herói» só recebe o poder após ter ultrapassado um período de perseguição. Dá-se também o caso que, mesmo os menos entendidos nestas coisas compreendem que, à luz da visão e interpretação do evangelista S. Mateus (cf. Mt 26,26; 28,18), o «Filho do homem» se identifica com Jesus. Ora, de facto, Jesus só depois de passar pela paixão, morte e entrega da sua vida terrena pelo bem de todos, é que é investido de todo o poder. E então já se compreende também que, todo o povo redimido – enquanto tem à sua cabeça o Senhor Jesus – esteja à espera do mesmo destino, ou seja, a salvação; que esta seja uma legítima espera do povo dos santos, ou seja, de todos os que acreditam em Jesus Cristo (cf. Mt 24,9-13).


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2ª leitura (Ap 1,5-8): Jesus Cristo, a Testemunha fiel, foi o primeiro vencedor da morte e o soberano dos reis da terra. Ele ama-nos e, através do seu sangue, livrou-nos dos pecados e fez de nós um reino de sacerdotes para servir a Deus, seu Pai. A Ele seja dada a glória e o poder pelos séculos. Olhai, Ele vem por sobre as nuvens! Todos O verão, mesmo os que O trespassaram. Todas as nações da terra se lamentarão por causa dele... Eu sou o Alfa e o Ómega, diz o Senhor Deus, o todo poderoso, aquele que é, aquele que era e aquele que há-de vir.

* Ele fez de nós um reino de sacerdotes para Deus.

Este trecho é tomado do prólogo do livro do Apocalipse, mas trata-se apenas dos versículos que se referem aos motivos por que Jesus deve ser considerado «príncipe dos reis da terra». Ele é a testemunha fiel, ou seja, a palavra eficaz, do Pai (para além deste texto, cf. também 2Cor 1,20), o primogénito dos mortos (cf. Col 1,18; 1Cor 15,20); ou seja, Aquele que conquistou com o seu próprio sangue, um povo, purificando-o dos seus pecados. É Aquele que pode livrar o seu povo do mal por excelência, que é o pecado, é Aquele que é digno de aparecer com poder sobre as nuvens do céu.

 

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Evangelho (Jo 18,33b-37): Pilatos chamou Jesus e perguntou-lhe: «És tu o rei dos judeus?». Jesus respondeu: «Perguntas isso por ti mesmo ou porque outros to disseram de mim?». Pilatos replicou: «Porventura sou eu judeu? A tua gente e os sumos sacerdotes é que te entregaram a mim! Que fizeste?». Jesus respondeu: «O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus seguidores teriam lutado para que Eu não fosse entregue às autoridades judaicas. Não, o meu reino não é de cá». Disse-lhe Pilatos: «Logo, tu és rei!». Respondeu Jesus: «É como dizes: Eu sou rei! Foi para isto que nasci e vim ao mundo: para dar testemunho da Verdade. Todo aquele que pertence à Verdade escuta a minha voz».

* Tu o dizes: Eu sou rei. CRISTO, ONTEM, HOJE, SEMPRE!

A Bíblia em geral - e o NT em partircular - não é uma espécie de reportagem sobre o que realmente se terá passado ou sobre o que terá sido dito, mas é, antes de mais, uma exposição teológica; ou, simplificando, pretende ser uma espécie de aula de caquetese. Por isso, seja o que for que tenha acontecido de documentalmente comprovado diante de Pilatos, a mensagem a retirar é que, para compreender a pessoa e o ensinamento de Jesus, não basta utilizar a razão, digamos assim. Em certos assuntos - e o da salvação integral é um deles - tem que se deixar agir o coração, a interioridade; como, de resto, já alguém disse: «o coração tem razões que a razão desconhece» (Blaise Pascal). Em todo o caso, até os cristãos têm que fazer um esforço, de vez em quando, para entender que o reino de Jesus não é deste mundo. E também que os planos de Deus e o «modus operandi» de Deus não são precisamente os nossos (cf. Is 55, 8-9).

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* Realeza: ponto de chegada


    A celebração da realeza de Cristo é a solenidade que fecha o ciclo do ano litúrgico. No coração da assembleia cristã, ergue-se assim a figura soberana do Salvador que parece querer congregar todos os seus «súbditos». Mas, neste caso, seja-me permitido repetir o que está claro no texto evangélico e que diz que o reino de Jesus não é deste mundo.

    Como os soberanos da terra, também Ele é geralmente imaginado como estando sentado num trono e rodeado de toda a sua corte pronta a servi-lo. Todavia, não é bem essa a imagem que Ele quis deixar. Na sua experiência terrena, preferiu não ser rei; pelo menos segundo a conceção de realeza que então corria por entre os seus concidadãos.

    Os reis da terra são (ou pelo menos eram) geralmente despóticos, egocêntricos. Jesus não podia ser um deles. Não pediu aos homens para sacrificarem a sua vida por Ele; antes pelo contrário, ofereceu a própria vida por eles, demonstrando assim que não há maior amor do que o daquele que dá a vida por quem ama (cf. Jo 15,13). É, sem dúvida, um rei muito especial. Se há um ideal messiânico ao qual faz apelo não é certamente o de «filho de David», mas o de «Servo sofredor».

    Sendo assim, a perspetiva dominante da Solenidade Cristo Rei é claramente escatológica. Jesus é o Alfa e o Ómega, é fim e sentido da história humana, juiz da humanidade, sendo declarado rei glorioso. Mas também não deixa de ser verdade - repito pela segunda vez - que o seu reino não é deste mundo, ou seja, a sua realeza não segue as coordenadas dos reinos deste mundo.

    Ao pensarmos na realeza de Cristo, temos que enfrentar alguns factos da sua vida, as suas escolhas de fundo, a sua morte; verdades que não são as verdades dos reis deste mundo. Segundo a sua forma de pensar e agir, domina (se é que se pode usar esta palavra) quem serve, vence quem sabe perder; o verdadeiro rei é aquele que se constitui como base para sustentar a todos com o amor e a solidariedade. Cristo é um rei que não faz concorrência nenhuma aos reinos terrenos.

   Durante toda a sua vida pública, Jesus teve extremo cuidado em que não se desse uma interpretação política e meramente social à sua missão. Em várias ocasiões, querem fazê-lo mesmo rei por aclamação, mas Ele recusa sempre.

* Rei dum reino diverso

    Apesar de a monarquia não ser hoje uma instituição na crista da onda (pelo menos entre nós), há, todavia, exemplos de monarcas que não têm nada a invejar, em matéria de governo, de justiça social, de progresso económico e de solidariedade, a outros que se auto-proclamam, por vezes com demonstração de gabarolice, de democratas.

    Como é evidente, não é minha intenção falar aqui e agora de política. O que quero realçar é simplesmente o facto de que, mesmo para quem não tenha fé, a realeza de Cristo não coloca nenhuma dificuldade, desde que ela seja apresentada segundo as coordenadas evangélicas. Com efeito, todos estão mais que dispostos a aceitar um rei que é classificado como rei de paz, de justiça, de amor, completamente alheio a qualquer aspiração de tipo político.

    Só que não basta ter um rei semelhante apenas no plano doutrinal. É preciso que os cristãos sejam realmente «súbditos» dum rei assim. Ora, o que acontece é que muitos cristãos, com frequência, pretendem (como o pretendiam os contemporâneos de Jesus e até os seus próprios apóstolos e amigos) um rei que dê cabo de tudo com a força e o poder. Individualizando o pensamento, não será que nós - eu e você - julgamos e pretendemos que Jesus, como rei, leve tudo à sua frente.

    Muitos cristãos, na prática, facilmente se esquecem que Jesus Cristo é rei por ser o único mediador da salvação; que nele todas as coisas têm a sua verdadeira consistência. Cristo é aquele por quem tudo foi feito. Ele é o primogénito de toda a criação. Só Ele é a imagem perfeita do Deus invisível. Só Ele (biblicamente e por excelência) é o «rei da criação».

* A realeza da liberdade


   A «realeza» de Cristo é universal e tem um poder real sobre todos e tudo, embora se situe numa outra esfera de actuação e influência que não a da simples realeza humana. É nessa esfera que nenhuma realidade humana escapa ao seu domínio e ao seu juízo supremo.

   Obviamente, não é preciso repetir que, quando aqui se fala em realeza, se está a fazer um «discurso» de cariz religioso. Sendo Ele, como é, o próprio Filho de Deus, com a sua morte livrou a todo o género humano do pecado. Quem resgata alguém duma escravidão, de alguma forma é o seu patrão. Pois bem, a realeza de Cristo é um tema cristológico abundantemente tratado em teologia, mas as consequências que da doutrina se tiram em relação ao papel a desempenhar pela Igreja no mundo é que nem sempre são as mais lógicas.

   Infelizmente, ao longo da história, a pretexto de implantar em todo o mundo o reino de Cristo, cometeram-se muitas «barbaridades» que a mesma história tem imensa dificuldade em esquecer. Na prática, deu-se aquilo que o próprio Cristo se esforçou por evitar a todo o custo: que a sua realeza se apresentasse sob a capa de instituição política.

* Regresso ao passado?


    A Igreja não tem argumento escriturístico nenhum para justificar uma situação de privilégio nem no campo político nem em qualquer outro; a não ser, na peugada do Mestre, o privilégio do serviço aos outros: «O Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos (todos)» (cf. Mc 10,45; Mt 20,28). Todos nós o sabemos perfeitamente em teoria. Infelizmente, há ainda, mesmo a nível de Igreja, certas correntes que de bom grado voltariam a certas práticas e processos que não se compadecem nem com a verdade bíblica nem com as circunstâncias do mundo actual.

    Não podemos, como cristãos, apelar para a realeza de Cristo para defender certas instituições e para combater os «inimigos» da Igreja com um espírito que não é o espírito do mandamento de Cristo: amar os próprios inimigos ou, melhor ainda, tudo fazer para não ter inimigos.

    Por um lado, vivemos numa sociedade que põe cada vez mais dificuldades e entraves à actividade dos cristãos; mesmo nos países tradicionalmente cristãos. Mas, por outro lado, por linhas tortas talvez, a concepção da realeza de Cristo é pouco a pouco purificada de elementos espúrios que em nada contribuíam para que a real mensagem de Jesus penetrasse nessa mesma sociedade.

* Realeza de Cristo, realeza do homem


    Quando Pio XI instituiu, em 1925, a festa de Cristo Rei, tinha a intenção de reagir simultaneamente contra dois excessos: o do laicismo moderno que queria prescindir por completo de Deus; e também combater um certo clericalismo do passado que tentava «servir-se» de Deus; Deus é que devia ser servido. Mas a herança do passado era de tal ordem que alguns cristãos tomaram esta festa como uma arma para defender a ordem antiga e para recusar o mundo novo que estava a chegar.

    Por outro lado, os laicistas (também designados por modernistas) entrincheiraram-se nas suas posições de recusa. Hoje, há o perigo de que alguns cristãos vejam numa festa destas um impedimento para que Cristo seja aceite pela massa da humanidade. Enquanto nos deixarmos levar por esta vertente, continuaremos a pôr mal o problema e, portanto, a não encontrar solução.

    Ora, a Festa de Cristo Rei deve ser uma ocasião para aprofundar uma verdade essencial da fé e para revalutar o seu conteúdo em relação ao mundo. Não se pode fugir do campo da fé para enfrentar e discutir este tema. Cristo é Rei para reunir um povo real, livre de qualquer tipo de servilismo, de qualquer exploração do homem pelo homem; para reunir um povo capaz de acolher as virtualidades e riquezas de todos os povos, a fim de as purificar e de as elevar (cf. LG 13).

    Em particular, os leigos, participantes da realeza de Cristo, ver-se-ão obrigados a trabalhar pela promoção da pessoa humana, para animar de espírito evangélico as realidades temporais, para testemunhar que Deus amou de maneira os homens que se fez irmão deles em Jesus; para que, por sua vez, eles fossem todos irmãos uns dos outros e descobrissem que a exploração de uns pelos outros é um pecado de lesa-fraternidade que é preciso combater em conjunto.