Temas de fundo. |
1ª leitura (Dn 12,1-3): Naquele tempo, surgirá Miguel, o grande Príncipe que protege os filhos do teu povo. Haverá então um período duma angústia tal como não houve outro semelhante desde que existem as nações. Quando chegar esse tempo, de entre a população do teu povo, serão salvos todos os que estiverem inscritos no livro (de Deus). Muitos dos que dormem no pó da terra acordarão: uns para a vida eterna, outros para a ignomínia e reprovação eterna. Os sábios resplandecerão com toda a luminosidade do firmamento; e os que tiverem ensinado a muitos os caminhos da justiça brilharão como estrelas para sempre.
* São salvos os inscritos no livro. Nos livros do AT a serem escritos em último lugar, há claramente identificado um tema ou uma noção que parecia estranha à mentalidade anterior. Trata-se da noção de ressurreição depois da morte física. Se bem que, quanto a esse tema, se possa dizer que há também algumas referências implícitas em Isaías e Ezequiel, talvez seja forçar um pouco a nota. Agora, já não é assim quando se fala do livro de Daniel, cuja versão final terá aparecido por ocasião da morte de Antíoco IV, em 165-164 a.C. Portanto, já quando os gregos dominavam o mundo de então. Antíoco IV foi quem levou por diante a tentativa de «paganizar» a fé, os usos e os costumes dos judeus. O que provocou até que os irmãos Macabeus se revoltassem contra os invasores (cf. naturalmente os livros com o respetivo nome). A dolorosa experiência por que tinha passado o povo tinha-lhe deixado uma amarga sensação: a de que, afinal de contas, limitar-se a esperar que a situação fosse «reposta» apenas nesta vida era uma utopia que não se realizava. Ora, precisamente este texto de Daniel é utilizado pelos evangelistas (Mt 13,43; 16,27; Jo 5,29; Act 24,15) e por Paulo (veja-se Rm 2,5-11; e sobretudo 1Cor 15,41-42) para falar do mesmo tema. É certo que as «contas» levam tempo a saldar e a sua verificação definitiva só se realizará na outra dimensão, mas é precisamente essa a ideia que nos é transmitida, porque as coisas não podem continuar a ser pura e simplesmente como são agora.
PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.
2ª leitura (Hb 10,11-14.18): Cada sacerdote apresenta-se dia a dia para celebrar o culto e para oferecer muitas vezes os mesmos sacrifícios; mas estes nunca podem apagar os pecados. Ao contrário, Cristo ofereceu, uma vez por todas, um único sacrifício, que tirou os pecados para sempre. Depois, sentou-se para sempre à direita de Deus, à espera que os seus inimigos sejam postos como estrado dos seus pés. De facto, com uma só oferta, Ele tornou perfeitos para sempre os que são santificados. Ora, quando há perdão dos pecados, já não há necessidade de outro sacrifício pelo perdão dos pecados.
* Jesus tirou os pecados duma vez por todas. Continuando a leitura da Carta aos Hebreus, o trecho escolhido para hoje insiste na ideia de que o sacrifício oferecido por Cristo não tem comparação com os sacrifícios de animais, porque se trata de um sacrifício único, absolutamente irrepetível e definitivo. Não há, portanto, necessidade de qualquer outro sacrifício para a remissão dos pecados. Embora pareça não ter a ver com as outras duas leituras de hoje, «forçando» talvez um pouco, eu diria que, com o sacrifício de Cristo, cujo mérito é de infinito valor, é dada a «garantia» infalível de que a nossa conta nunca poderá ficar sem saldo e que, por isso, podemos alimentar toda a esperança de que tudo «funcionará» como deve. Se isso dependesse só de nós, tratar-se-ia de algo impossível. Mas, uma vez que, pela bondade de Deus, os méritos de Cristo como que foram colocados na coluna do nosso crédito, então as coisas ficam resolvidas. PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. Evangelho (Mc 13,24-32): Nesses dias (após a aflição), o Sol vai escurecer-se, a Lua não dará a sua claridade, as estrelas cairão do céu e as forças que há no espaço serão abaladas. Aparecerá, então, o Filho do Homem sobre as nuvens com grande poder e glória. Ele enviará os anjos e reunirá os seus eleitos dos quatro ventos, da extremidade da terra à extremidade do céu. Aprendei da parábola da figueira: quando os seus ramos ficam tenros e brotam as folhas, sabeis que o Verão está próximo. Assim também, quando virdes acontecer estas coisas, ficai a saber que o Filho do Homem está perto, mesmo à porta. Em verdade vos digo: não passará esta geração sem que estas coisas aconteçam. O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não hão-de passar. Quanto a esse dia ou a essa hora, ninguém sabe quando chegarão: nem os anjos do céu, nem o Filho; só o Pai. * As minhas palavras não passarão. É só mera coincidência que, no Evangelho de S. Marcos, seja o capítulo 13 a falar do discurso escatológico, ou seja, dos sinais que falam do fim dos tempos, da perseguição aos discípulos, da destruição de Jerusalém, da vinda de falsos messias e também da vinda do Filho do Homem. Ora bem, a linguagem apocalíptica pode «meter um pouco de medo», mas não é essa a intenção do evangelista. De resto, devo acrescentar que não há que entender a linguagem apocalíptica em sentido literal, sob pena de perder a mensagem. No fundo, se pensarmos bem, o discurso apocalíptico e escatológico não é um anúncio de terror, mas sim de libertação. Afinal, o discurso escatológico é como que a confissão de que, feitas todas as somas, o único que conta é Aquele que veio do Pai e voltou para o Pai, para nos preparar um lugar, ao mesmo tempo que está sentado à direita dele a interceder por nós. Este tipo de linguagem tem a intenção de alertar as pessoas para a necessidade de ir aprendendo, paulatinamente, a relativizar as coisas - mesmo as importantes - para fixar a atenção naquele que é o único Absoluto: o próprio Deus. Tudo o resto é relativo. PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO. |
* Naquele tempo o teu povo será salvo.
* Cristo tornou perfeitos os que são santificados.
* O Filho do Homem reunirá os seus eleitos dos quatro ventos. |
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AS MINHAS PALAVRAS NÃO HÃO-DE PASSAR. |
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As últimas realidades
À medida que nos vamos aproximando do fim do ano litúrgico, foi sendo apresentada uma ideia do fim dos tempos; e, concretamente no domingo passado, foi feita já uma referência, se bem que velada, àquilo que está subjacente à ideia de «escatologia», ou seja, à realização das últimas realidades (para traduzir o conceito com palavras muito simples). Ora bem, devo acrescentar que, nessa perspetiva, me parece natural que este tema venha ao de cima; claro, não para meter medo a ninguém, mas precisamente para nos pôr diante dos olhos a precariedade e a relatividade desta dimensão temporal.
Seja como for, com o cristianismo, tem início a inauguração dos últimos tempos, enfim, dito doutra maneira, «o cristianismo é escatologia do princípio ao fim, e não apenas em apêndice. Toda a pregação cristã, toda a existência cristã e a própria Igreja no seu todo são caracterizadas pela sua orientação escatológica». Quem o diz é alguém que sabe por experiência pessoal da sua especialização: o teólogo Moltmann. De facto, com a ressurreição de Jesus, o mundo e a história entram na sua fase final, na plenitude dos tempos. As promessas de Deus cumprem-se e é inaugurada a dimensão dos novos céus e da nova terra. Em Cristo, Deus diz a sua palavra definitiva. Em nós foi depositado o Espírito que é o único capaz de nos fazer intuir a origem das realidades futuras. É certo que ainda estamos a caminho, mas a realidade deve ser essa.
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O futuro já começou
Na ótica cristã, podemos dizer então que o futuro já começou. Esta parece só uma frase de efeito, um título de filme de ficção, mas é a tradução duma realidade. O cristão é - ou deve ser - o «homem do futuro». Isto significa não tanto que o cristão é o homem que «espera o futuro» (que lhe será oferecido depois da morte física), mas sim sobretudo aquele que constrói, já partir de hoje, o futuro.
Nesta perspetiva, com a vinda de Jesus, tudo começou de novo. Ou seja, em termos rigorosos, já não se espera mais nada de substancialmente novo. No entanto, não deixa de ser também certo que ainda tudo está por fazer, pois é ainda necessário fazer «passar» toda a criação pela esfera de Cristo, o qual, no fim desse «processo», vai recapitular todas as coisas. «Recapitular todas as coisas em Cristo»: é essa a grande tarefa da Igreja de sempre e que não está ainda terminada. As comparações, como se costuma dizer, claudicam sempre, mas eu atrever-me-ia a propor como termo de comparação o início duma qualquer revolução: tudo começa de novo (seja qual for o tipo de revolução) e, no entanto, parece que tudo está ainda por fazer.
Produz-se, digamos assim, uma nova mentalidade, uma nova maneira de conceber a realidade, mas é apenas o início dum processo que levará muitos anos (aliás, séculos) a realizar-se. A diferença é que, enquanto qualquer processo de mudança humana é sempre provisório, a mudança operada por Cristo é definitiva. S. Paulo vê a natureza como uma força em tensão para a redenção, nos seus gemidos como os de uma mulher que está para dar à luz (cf. Rm 8,12-22). Ou seja, todas as coisas tendem para Cristo que «recapitulará em si toda a criação» (cf. Ef 1,9).
Salvador do homem, Cristo é-o também de todo o universo. E, para isso, quer ter o homem ao seu lado. Neste esforço, o cristão é chamado a desempenhar um papel insubstituível. É ele que, com o seu trabalho, com a sua dedicação e também com a sua oração, «humanizará» este mundo e preparará aquela transformação do universo que, de algum modo, consubstanciará os «novos céus e a nova terra» com os quais se inaugurará o Reino definitivo de Deus.
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Escatologia é outra dimensão
Quase todo o texto hodierno de Marcos é constituído por textos apocalípticos mutuados, digamos assim, do AT. Há uma referência evidente à parusia, ou seja, à vinda (de Jesus) no fim dos tempos. Só que neste capítulo, há ideias preconcebidas que é preciso evitar. Ou seja, ao falar de fim do mundo, pensa-se logo em coisas más e acontecimentos horrorosos. Ora, há que entender que essa vinda não se identifica nem se reduz a uma simples hecatombe universal em que tudo será destruído. Se assim fosse, a vinda de Jesus no fim dos tempos não teria nada a ver com uma «Boa Nova».
O texto evangélico é como que dirigido aos que pensavam que o fim da história humana estava próximo. Mas isso não quer dizer que seja possível renunciar àquilo que está no centro da fé, judaica e cristã. Não, a vinda do Reino de Deus estende-se para além da história humana. A história humana deixa de se fazer apenas nesta dimensão (como alguns pretendem), para se passar a fazer também numa outra dimensão.
De resto, como não podia deixar de ser, o texto é bastante genérico em relação à data da parusia. Com efeito, a expressão «naqueles dias» não é senão eu diria quase uma frase-feita, comum tanto aos profetas como aos outros autores bíblicos quando se referem a um acontecimento de ordem sobrenatural não datável. Querer, portanto, deduzir dessa expressão a «verdade» de que o evangelista pensava que o «fim do mundo» estava para breve é uma conclusão sem legitimidade e, além do mais, extemporânea. De resto, há um pormenor que, segundo a minha opinião, não permite colocar a vinda final de Cristo num futuro próximo. O Filho do Homem «mandará os seus anjos para reunir os seus eleitos dos quatro ventos, duma extremidade da terra à extremidade do céu». Parece-me que essa abundantíssima «messe» de fiéis em todo o mundo requer um tempo bastante longo; pelo menos o necessário para proclamar o Evangelho a todos os povos.
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O cristão não está só
O cristão é um peregrino nesta terra. Não é um «cidadão» com morada permanente, mas um «exilado», um «imigrante», cujo objetivo é voltar à Pátria definitiva. Por outras palavras, este mundo é para ele não uma morada fixa nem um ponto de chegada, mas sim e apenas a etapa duma viagem. Mas o facto de ser uma etapa intermédia, não quer dizer que não tenha importância. É de importância decisiva.
A provisoriedade desta vida é um facto absolutamente incontroverso a nível bíblico. Mas isso não quer dizer que a vida terrena não tenha importância. Uma interpretação unilateral que combatia a realidade humana com um tipo de pregação incompleta e errada levou muita gente dos nossos dias a olhar para a religião com alguma desconfiança, na medida em que é vista como inimiga do mundo, da criação, da vida, do progresso, do empenho humano...
Em certos casos (mas não há que generalizar), deu-se uma ideia de religião como evasão, como falta de empenho, como renúncia passiva, como «ópio» que adormece o homem e o distrai de qualquer interesse pela cidade terrena. Isso aconteceu de facto, ao arredio das primeiras páginas da Bíblia, mas, por outro lado, afirmar que se trata de uma posição de todos os cristãos, ou seja, da Igreja como tal, é igualmente uma posição unilateral que não pode ser aceite.
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O papel do cristão no mundo
Como escreve um autor relativamente recente, «o papel do cristão no mundo não pode ser reduzido a essa visão limitada, redutora e parcial. O cristão não é um evadido, mas ao contrário um comprometido como pessoa no desenvolvimento, no sucesso e na salvação do mundo. Sabe que todo o universo tem um só princípio de consistência e movimento: Cristo; porque, "por meio dele, foram feitas todas as coisas e nele têm consistência" (cf. Cl 1,16-18)».
«Cristo é assim o grande ponto de força que trabalha no íntimo das almas e das coisas, a fim de as santificar, unir e para tudo consagrar para a glória de Deus. O cristão empenha-se, de forma consciente e voluntária, nesta empresa grandiosa, no seu lugar de trabalho, no seu tempo, com os seus próprios recursos. O cristão não trabalha sozinho: colabora... Trabalha com coragem, pois o trabalho é duro; com fé, porque a tarefa é misteriosa e desproporcional às forças humanas; trabalha para fazer crescer o universo e para fazer desabrochar a nova criação através de um esforço caótico e doloroso, pleno de esperança e de afano; esforço que, no entanto, não é o da agonia, mas o dum parto» (J. Mouroux).