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fundo

1ª leitura (Job 38,1.8-11):  ... Então, do seio da tempestade, o Senhor falou a Job nestes termos: «Quem é que pôs diques ao mar, quando, impetuoso, ele saía do seio da terra? Fui Eu que lhe dei por manto as nuvens e o enfaixei em névoas tenebrosas. Encerrei-o dentro dos limites que lhe tracei e pus-lhe portas e ferrolhos dizendo: "Chegarás até aqui e não mais além; aqui se quebrantará o orgulho das tuas ondas"».

 

* Quem é que pôs diques ao mar?

   Este trecho proposto como primeira leitura está relacionado com o Evangelho, que fala da tempestade acalmada por Jesus. Nesse sentido, serve para lançar uma certa luz sobre a missão de Jesus. Essa missão reveste-se de um dos atributos de Deus, que, no caso, é pôr limites às águas revoltas. Seja como for, como sabe quem conhece algo do tema, não é esse o sentido original do livro de Job. No contexto de todo o livro, pretende-se esclarecer uma coisa muito simples: não obstante todas as objeções de Job relativamente ao sofrimento de que não se acha «merecedor», nem ele nem nenhum de nós se pode esquecer que não passa duma simples criatura, com limites bem precisos. Por isso, no fundo, a pergunta/resposta que o livro faz é a seguinte: quem és tu para te arrogares o direito de pedir contas a Deus do que acontece? Em todo o caso, esta pergunta/resposta não explica o sofrimento, que continua a ser um mistério para o homem. Mas uma coisa é certa: o homem tem que saber conviver com o incompreensível e com o mistério. E o convite que o NT faz é, pura e simplesmente, que olhemos para o sofrimento e a morte de Jesus Cristo, para podermos intuir algo do que nos acontece a nós.

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 

2ª leitura (2Cor 5,14-17):  Irmãos, podemos concluir que o amor de Cristo nos envolve por completo, agora que reconhecemos que um só morreu por todos, o que significa que todos partilhamos da sua morte. Ele morreu por todos, para que os que vivem já não vivam mais para si mesmos, mas para quem por eles morreu e ressuscitou. Por isso, a partir de agora, não julguemos ninguém segundo critérios humanos. Mesmo que antes tenhamos conhecido a Cristo segundo critérios humanos, agora já não O conhecemos assim. Quando alguém se junta a Cristo, é um novo ser. O antigo passou e é assumido um novo ser.  

     

* Unidos a Cristo, somos um novo ser.

  Tendo em consideração que o apóstolo Paulo vê a sua própria vida como projetada para a eternidade (cf. domingo anterior), então a maneira de percorrer este estado de peregrinação tem que ser diferente do que nos dá uma visão simplesmente mundana. A visão desta vida perante o facto - para Paulo indiscutível - da ressurreição de Cristo tem uma importância capital: a partir deste dado, Paulo já não pode confinar o seu procedimento aos ditames sujeitos apenas a critérios humanos; o antigo já passou e é assumido um novo ser. Por outras palavras - e é isso que custa a entrar na mentalidade de todos os tempos - Jesus ou é levado a sério ou não. Se é levado a sério, então a vida dos que dizem aceitá-lo tem que mudar. Daí se poder concluir que, sendo embora «politicamente incorreto», se calhar, de cristãos há muito mais de nome apenas do que cristãos a sério.

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 

Evangelho (Mc 4,35-40):  Na tarde daquele mesmo dia, Jesus disse aos discípulos: «Vamos para a outra margem (do lago)». Então eles afastaram-se da multidão. Os discípulos subiram para o barco onde Jesus já estava e levaram-no consigo. Havia por ali também outras embarcações. De repente, desencadeou-se um grande turbilhão de vento que arrojava as ondas contra a barca, de tal forma que esta já estava quase cheia de água. Jesus estava na popa a dormir com a cabeça numa almofada. Então acordaram-no e disseram-lhe: «Mestre, não te importas de que estejamos quase a afogar?». Então Ele levantou-se e ordenou ao vento: «Cala-te!». Depois, disse ao mar: «Acalma-te!». E o vento amainou e fez-se grande bonança. Depois, disse aos discípulos: «Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé»? E sentiram grande temor e começaram a dizer uns aos outros: «Quem é este homem a quem até o vento e o mar obedecem»?

 

* Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?

  Este trecho evangélico de Marcos faz parte duma secção de quatro milagres cujo objetivo, em meu entender, é responder a uma pergunta simples que o evangelista parece querer dirigir aos seus leitores e aos fiéis das suas comunidades: para ti quem é Jesus? Para quem esteja um pouco familiarizado com a «cultura» e a terminologia bíblica, é claro que a referência ao facto de Jesus amainar as águas implica que Ele tem sobre ela o mesmo poder que o próprio Deus e, por isso, o episódio, pretende, de alguma forma, «provar» que, afinal este Jesus que vive com os apóstolos, também Ele é Deus. Só não está em condições de o entender quem está ainda submerso nas trevas da incredulidade ou da falta de fé. Quem acredita verdadeiramente nele, não tem medo da morte, porque sabe que Ele é o autor da vida e não da morte. Quando na nossa vida diária irrompe a tormenta - como no caso dos apóstolos e no caso de Job - , quando o mal aparenta triunfar, há que manter a fé e a confiança, porque Deus sabe o que faz e sabe qual é o momento mais exato para intervir para o nosso maior bem.

 

PARA ULTERIOR APROFUNDAMENTO, VEJA EM BAIXO.

 

 *    Aqui se quebrará

       o orgulho

       das tuas ondas.

 

 *    Passou

       o que era velho.

       Eis que tudo

       se faz novo.

 

 *    Quem é este a quem até o vento e o mar obedecem?

AO SOM

DA SUA

PALAVRA,

A TEMPESTADE

AMAINOU.

 

 

  • Deus presente nas dificuldades

 As comunidades cristãs e as pessoas que alimentam o anseio dum país e dum mundo justos, igualitários e fraternos, sentem-se perplexas perante o panorama político e social que se lhes depara: miséria, doença, fome, corrupção, injustiça, impunidade, mortes no campo e na cidade, crise moral e social, falta de compromisso dos políticos e agentes da autoridade, poderosos sem escrúpulos e falsos cristãos.

 

Tudo isso é «mar tempestuoso» que ameaça engolir os anseios de vida e liberdade. E as pessoas perguntam-se: qual é o papel de Deus nesses dramas? Estará Ele porventura a dormir? Não terá abandonado as «fiéis» e as comunidades à mercê dos caprichos dos grandes donos do mundo? Não estará a «pecar» por omissão? Não terá chegado a altura de Ele fazer valer os seus direitos, de mostrar quem é que, afinal, manda neste mundo?

 

Tudo isto é um grande e difícil teste para todas as pessoas de boa vontade. Apesar de tudo, a questão é a seguinte: trata-se de continuar a acreditar em Deus e a praticar a fé que transforma em vida situações de morte. Ora, dadas as circunstâncias, essa é uma tarefa complicada, mas é possível, pois a força que anima as comunidades cristãs é o amor de Cristo. Há, pois, momentos em que é necessário renovar a confiança neste amor que tudo pode, porque é o amor do próprio Deus.

 

  • Deus é soberano sobre tudo

 O trecho de Job (uma peça de teatro, digamos assim) foi escolhido para servir de suporte veterotestamentário ao trecho evangélico deste domingo. Antes de entrar no âmago da questão e mais que fazer qualquer consideração sobre o texto, convém fazer uma breve síntese do livro. Segundo a premissa inicial do livro, Job (que me parece seja erroneamente tido como o tipo de pessoa paciente, porque o não é) vê-se envolvido, sem saber porquê, numa aposta entre Deus e Satanás. Não é tido nem achado sobre o assunto.

 

Deus sabe que Job é íntegro e recto. E Satanás também, mas deixa claro que a integridade e a rectidão desse homem são interesseiras: se lhe tirarem os bens (animais, terras, filhos e saúde) - sugere  Satanás - Job bem depressa amaldiçoará a Deus. Os sofrimentos de Job que se seguem parecem ser o preço a pagar ou o resultado dessa aposta.

 

Ao longo do livro, Job reivindica e faz apelo à sua inocência. Os seus «amigos» (Alifaz, Baldad e Sofar), defensores duma sua «teologia» da retribuição, tudo tentam para o levar a reconhecer no sofrimento um castigo pelo mal cometido: ele pecou e, como consequência, está a pagar por isso. Mas Job recusa-se terminantemente a admitir essa hipótese, porque tem consciência de que não é verdade, na medida em que sempre procurou fazer o bem.

 

O livro levanta, portanto, a seguinte questão: «Se Job é inocente, porque é que sofre? Se Deus é justo, porque é que faz sofrer ou permite que sofram pessoas as inocentes?». É esta, em poucas palavras, a tese de fundo do livro e, de resto, é esta a barreira mais difícil de transpor que as pessoas de todos os tempos encontram no seu caminho.

 

  • Para além da racionalidade

 Pode-se afirmar que a grande vitória de Job, em todo o seu drama, é ter descoberto finalmente a resposta de Deus. De facto, nos capítulos 38 a 41 do livro, Deus responde a Job, sem violência e sem o acusar de pecados e delitos. Através dum longo discurso sobre as maravilhas da criação, Deus mostra que Job sofre de «arrogância atrevida», embora a sua contestação, humanamente falando, tenha razão de ser.

 

Assim, chegamos ao texto de hoje, onde Deus responde a Job na tempestade (daí a sua relação com o texto evangélico). O trecho pretende demonstrar que Deus é soberano sobre as forças que geram o mal, aqui simbolizadas pelo mar. O autor do livro crê que o mar nasce do seio da terra (portanto, é uma criatura que obedece a alguém); ao nascer, Deus dá-lhe as nuvens como roupa e as névoas como fraldas. Apesar de impetuoso e assustador, a sua força é quebrada pela areia das praias. Job (e o leitor com ele) é convidado a concluir que Deus, portanto, não permite que o mal avassale o mundo e as pessoas. Ele só vai até onde Deus o permite.

 

E, de facto, Job, depois de exaurir a sua argumentação, vê-se obrigado a admitir que Deus está para além disso tudo e que é maior e mais forte que todas as tragédias humanas.

 

  • Quem é Jesus? Ele é como Deus

 No domingo passado, reflectíamos sobre a força do Reino de Deus, expressa e explicada por meio de parábolas, tendo chegado à conclusão de que o projecto de Deus, embora sob aparências humildes, tem um dinamismo irresistível. Ora, depois do discurso em parábolas, Marcos apresenta quatro milagres cuja finalidade é dar uma resposta à pergunta fundamental do seu Evangelho: quem é Jesus Cristo?

 

O episódio de hoje é o primeiro duma série e serve de teste para as comunidades cristãs. Se o Reino, como uma semente, possui uma força irresistível, como é que se repercute na vida dos cristãos? Se, na vida dos cristãos, não há sinal da força do Reino, não será que talvez ele ainda não exista no coração deles nem sequer como semente? Mais: não será que os cristãos - e os homens em geral - continuam a combater cheios de medo contra a fúria das águas tempestuosas e nem  chegam a descobrir que, por ali perto, está Alguém que pode acalmar as ondas?

 

O Evangelho de hoje é, pois, o símbolo e o testemunho da existência dessa energia extra nos conflitos que têm que enfrentar os que seguem a Jesus. É bom salientar que não se trata de um teste individual, mas comunitário. É toda a comunidade que se encontra no alto-mar batida pelo furacão.

Jesus participa na travessia cheia de perigos e conflitos. Marcos acrescenta que «havia ainda outras barcas com Ele». O que pode ser um símbolo e sinal de que não apenas a comunidade dos primeiros discípulos, mas as de todos os tempos e lugares, são convocadas para a travessia e ao mesmo tempo convidadas a fazê-la com a ajuda de Alguém que tem poder absoluto sobre a fúria dos elementos e as dificuldades do dia a dia.  

 

O mar sintetiza e simboliza as forças geradoras do mal e hostis ao projecto de Deus. Não se pode, pois, ler o episódio da tempestade no lago de Genesaré como simples fenómeno natural, de resto frequente nesse lago. Não é demais realçar que a cena toda possui carácter simbólico e catequético, tendo por objectivo ajudar a procurar, descobrir e superar todos os conflitos que emperram ou tentam sufocar o projecto de vida e liberdade.  

 

  • Jesus é Deus, mesmo quando não parece

No meio dos conflitos e dificuldades, as pessoas em geral, e talvez sobretudo os crentes, têm a sensação de que Deus continua alheio aos dramas e tempestades que ameaçam a vida diária. À semelhança do que aconteceu com os discípulos, o medo e a descrença perante o futuro é um pouco a sensação dos apóstolos que não acreditam fortemente na força que levam consigo no barco.

 

De facto, as ordens de Jesus ao vento e ao mar... e a consequente bonança que se segue às suas ordens para que a tempestade cesse, revelam quem é Jesus. Aplacar o vento e amansar as ondas do mar é, segundo o AT, prerrogativa exclusiva de Deus. E o evangelista sabe disso e, por isso, sabe também que os seus leitores são capazes de tirar esta simples conclusão: em Jesus age Deus. As ordens dadas ao vento e ao mar fazem também parte das narrativas e da prática do exorcismo, mas, mais ainda, indicam a maneira como Deus actua: Ele diz, Ele fala, e as coisas acontecem. É precisamente o mesmo que faz Jesus. Portanto - e a conclusão para os leitores é simples - Jesus tem o mesmo poder que Deus. Ora só pode ter o mesmo poder de Deus quem é Deus...

 

  • A força da comunidade cristã

 A força da comunidade cristã é a presença e o amor actuante de Cristo (cf. 2Cor 5,14a). A incondicionalidade desse amor, digamos assim, mede-se pela aceitação da própria morte de Jesus em nosso favor. Isso quer dizer que é possível ir ao encontro da morte para poder a partir dela transmitir a vida. Na morte de Cristo, todos nós morremos para a finitude deste mundo, a fim de vivermos para Ele. Tal é o objectivo da morte de Jesus: resgatar a humanidade da desobediência e da dívida, conduzindo-a novamente à vida sem fim que se realiza em Deus.

 

A consequência é clara. Os adversários de Paulo acusavam-no de não ser apóstolo por não ter andado com Jesus de Nazaré. Paulo responde que pensar assim é agir segundo critérios humanos. O importante não é ter caminhado com Jesus pela estradas da Galileia, mas estar comprometido com o anúncio e com a vivência da sua morte e ressurreição.

 

A morte e a ressurreição de Jesus são o ponto de partida da novidade de Deus: «Se alguém está em Cristo, é nova criatura. Passou o que era velho e já se fez uma nova realidade». Por outras palavras, o mundo novo já foi inaugurado pelo evento pascal. Estar em Cristo significa participar, como Paulo e como todos os que aderem a Ele, dessa nova realidade, superando rivalidades e divisões, pois a grande força que impele a comunidade à vida é o amor de Cristo levado até às últimas consequência.